"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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MINHAS PÉROLAS

quarta-feira, 30 de abril de 2025

O Direito de Aprender ("A inclusão acontece quando se aprende com as diferenças, não apesar delas." — Mel Ainscow)

 

O Direito de Aprender ("A inclusão acontece quando se aprende com as diferenças, não apesar delas." — Mel Ainscow)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Li a notícia como quem tropeça numa pedra invisível no meio do caminho. Daquelas que nos fazem parar, olhar ao redor e questionar em que mundo, afinal, estamos vivendo. Dois irmãos — crianças, neurodivergentes — tiveram a matrícula recusada por uma escola particular. E não foi por falta de vaga, mas por excesso de preconceito disfarçado de protocolo.

A sentença foi clara. O juiz, com o peso sereno das palavras bem ditas, afirmou que havia discriminação. Determinou a matrícula imediata e fixou indenização por danos morais. A escola, previsivelmente, tentou se justificar: excesso de alunos com necessidades especiais, reorganização interna, orientações da Secretaria de Educação. Mas as provas contavam outra história — em outras turmas, aceitavam-se mais de três alunos com diagnósticos semelhantes. A norma não era o problema. O problema era quem se escondia por trás dela.

Enquanto lia, tentei imaginar a cena: a mãe, com esperança nos olhos, liga para a escola, pergunta sobre a matrícula, fala dos filhos, menciona os laudos. Do outro lado da linha, a resposta — educada, mas atravessada por camadas de indiferença — nega o que deveria ser um direito. Depois disso, silêncio. Descaso. Portas que nunca se abrem.

Na sequência, deparei-me com outro caso. Um menino de nove anos, com autismo nível 2 e não verbal, foi vítima de maus-tratos numa escola pública. A mãe só descobriu o que acontecia quando outra criança, da mesma turma, gravou — escondido na mochila — os gritos e xingamentos das professoras. Era violência pura, vestida de rotina. O tipo de coisa que não aparece no boletim, mas que destrói por dentro.

Não conheço essas mães. Tampouco os filhos. Mas conheço bem esse sentimento de impotência que nos atravessa quando uma instituição que deveria acolher decide excluir. E reconheço com clareza quando um discurso institucional serve apenas de cortina de fumaça para a intolerância.

Enquanto isso, muitos fingem normalidade. Afinal, dizem, as crianças “especiais” já exigem demais, já têm “suas escolas”, “seus profissionais”. Como se inclusão fosse uma concessão — e não um direito. Como se viver fosse um privilégio que precisasse de autorização.

A verdade é que, para muitas famílias, a porta da escola é o primeiro muro. E não há trava mais cruel do que aquela que se instala nas mentes — e se repete nos corredores, nas salas de reunião, nos quadros de aviso.

Não sei quanto tempo ainda levaremos para entender, de verdade, o que significa uma escola para todos. Mas sei que, enquanto houver juízes dispostos a chamar as coisas pelo nome — e cidadãos atentos o bastante para não se calarem — talvez ainda possamos transformar essas manchetes em passado.

Por ora, fecho o jornal e respiro fundo. A crônica da exclusão, infelizmente, ainda é escrita todos os dias. Mas hoje — pelo menos hoje — o ponto final veio acompanhado de justiça.


https://www.migalhas.com.br/quentes/420813/tj-df-condena-df-por-maus-tratos-contra-crianca-autista-em-escola (Acessado em 30/04/2025)


Relendo minha crônica com a sensibilidade de um professor de Sociologia, percebo como ela expõe feridas sociais profundas sobre a inclusão e o respeito nas instituições. Com base nas ideias apresentadas, formulei 5 questões discursivas simples para estimular a reflexão sociológica sobre esses temas:


1. O texto descreve a recusa de matrícula de crianças neurodivergentes, apontando para um "preconceito disfarçado de protocolo". Como a Sociologia analisa de que forma normas ou práticas dentro de instituições (como escolas) podem, intencionalmente ou não, gerar exclusão e discriminação contra certos grupos de pessoas?

2. A crônica contrasta a ideia de uma "escola para todos" com a realidade de portas fechadas ou de maus-tratos a alunos com necessidades especiais. O que significa, sob uma perspectiva sociológica, o direito à educação inclusiva, e quais barreiras sociais, além das legais, dificultam sua plena realização?

3. O narrador menciona a vulnerabilidade das crianças e a falha de algumas instituições em acolher. Como a Sociologia estuda as dinâmicas de poder em ambientes como a escola e como essas dinâmicas podem afetar a experiência de alunos considerados mais vulneráveis, como aqueles com deficiência?

4. A crônica aponta para discursos que parecem justificar a exclusão de crianças "especiais". De que maneira os preconceitos e estereótipos presentes na sociedade influenciam as atitudes das pessoas e das instituições em relação à deficiência, contribuindo para a discriminação?

5. O texto mostra a justiça sendo acionada para garantir direitos e reparar danos. Qual o papel do sistema legal e das decisões judiciais, na visão da Sociologia, na luta contra a discriminação e na busca por maior justiça e igualdade social para grupos que enfrentam preconceito?

terça-feira, 29 de abril de 2025

O Dia Mundial da Educação ("A influência de um professor é para a eternidade; ele nunca pode dizer onde sua influência para." — Henry Adams)

O Dia Mundial da Educação ("A influência de um professor é para a eternidade; ele nunca pode dizer onde sua influência para." — Henry Adams)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Abril chegou ao fim, e com ele se fez presente mais um 28 no calendário: o Dia Mundial da Educação. Para muitos, talvez apenas uma data simbólica; para mim, ressoa com a força de um chamado antigo, vindo do tempo em que o mundo cabia inteiro no pequeno universo de uma casa e na sabedoria contida em pilhas de cadernos. É um dia que me convida a desacelerar e observar com mais atenção os frutos que a educação silenciosamente cultiva ao longo dos anos.

Foi assim que me vi pensando nele — o filho da professora. Não era um menino extraordinário aos olhos apressados do mundo, mas havia nele uma calma determinada, como se carregasse um legado invisível. Sua história com a educação não começou nos bancos escolares, mas em casa, onde a mãe, professora da rede pública, trazia no corpo o cansaço dos dias e, na alma, o perfume do giz. Ela chegava envolta naquele cheiro inconfundível — uma mistura de papel, lápis e o sentido de que, entre aquelas paredes escolares, algo essencial acontecia.

Eu o vi crescer sob a luz das madrugadas, enquanto a mãe corrigia provas, preparava aulas, e, sem palavras, ensinava a lição mais profunda: a da dedicação. Ele brincava de escola com bonecos alinhados em fila, segurando uma régua, imitando os gestos maternos. Naquele chão simples da infância, vi germinar a semente de um respeito sincero por tudo aquilo que a educação representa. Era a mãe quem repetia, com a firmeza serena das mulheres que educam pelo exemplo: "O conhecimento é o único patrimônio que ninguém pode tirar de você."

Essa herança silenciosa moldou o rumo de sua vida. Lembro-me de quando, já adulto, ele falava sobre o momento em que compreendeu seu propósito. Não buscou cargos de prestígio, nem palcos de notoriedade. Em vez disso, encontrou sua missão ao lado de professores, dentro de salas de aula, em bibliotecas improvisadas, em rodas de leitura no chão da escola. Percorre caminhos, conversa com educadores, escuta os estudantes. Tornou-se formador, multiplicador de ideias, alguém que não deseja fama, mas transformação.

Hoje, quando o vejo em ação, percebo que seu trabalho é um eco daquela infância. Seu foco está em diminuir a distância entre o saber e aqueles que o desejam. Promove oficinas de leitura, desenvolve metodologias, procura despertar nas crianças o mesmo fascínio que um dia o guiou. Em cada rosto infantil que ele observa, há um reflexo da própria jornada — olhos famintos por sentido, curiosos diante do mundo. O ciclo virtuoso que começou com sua mãe se perpetua nele, e, de alguma forma, alcança também quem o acompanha de perto.

Neste 28 de abril, enquanto tantos lembram da data como uma formalidade, ele a vive como um compromisso. O Dia Mundial da Educação, instituído em um fórum com a meta de universalizar o ensino de qualidade, é para ele um chamado diário à ação. Ele sabe que as maiores transformações não vêm, necessariamente, dos altos cargos ou dos títulos sonoros, mas de quem insiste em fazer a diferença onde está. A educação que o moldou, que lhe abriu os olhos e o coração, não pode ser um privilégio de poucos; deve ser um direito inegociável de todos.

É por isso que, enquanto houver nele o sopro da vida e a paixão por essa causa, ele continuará. Em Goiás, ou onde for preciso, lutará para que cada criança tenha a chance de descobrir o poder libertador do saber. Porque a educação, quando toca fundo, faz mais do que mudar destinos — "ela molda almas." E almas moldadas pela luz do saber, ao se iluminarem, inevitavelmente iluminam o caminho dos outros, criando uma corrente de esperança que não se interrompe.

Ao final deste dia, ao observá-lo em silêncio, levo comigo uma certeza renovada: na educação, meus caros leitores, repousa nossa mais profunda esperança de um futuro melhor. Não como uma promessa distante, mas como um compromisso diário, tecido com humildade e coragem. Que a história desse filho de professora, que encontrou na educação não apenas seu caminho, mas seu maior patrimônio, nos sirva de lembrete: investir em educação é plantar, hoje, a semente do amanhã que todos desejamos colher. Um futuro onde o conhecimento seja sempre a chave que abre todas as portas.



Como seu professor de Sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseadas nas ideias principais da crônica sobre a educação e o "filho da professora". Elas buscam explorar os aspectos sociais que a história apresenta.


1. O texto enfatiza a influência da mãe professora na infância do filho, mostrando como ele aprendeu o valor do conhecimento em casa. Sob a ótica da Sociologia, qual a importância da família como agente de socialização primária na transmissão de valores e saberes, especialmente em relação à educação formal e informal?

2. A crônica sugere que a educação "moldou o rumo de sua vida" e o levou a encontrar um propósito como formador. Como a Sociologia analisa o papel da educação como um fator de mobilidade social e de construção da identidade e do projeto de vida dos indivíduos?

3. O texto valoriza o trabalho da mãe professora e, posteriormente, do filho como alguém que "faz a diferença onde está". De que maneira a Sociologia compreende a função social dos educadores e de outros profissionais que atuam na área da educação para a transformação dos indivíduos e da sociedade?

4. A crônica defende que a educação "deve ser um direito inegociável de todos". Do ponto de vista sociológico, por que o acesso universal à educação de qualidade é considerado essencial para a redução das desigualdades sociais e para a promoção de uma sociedade mais justa?

5. A história mostra como a dedicação da mãe e a paixão do filho pela educação criaram um "ciclo virtuoso" que ilumina o caminho de outros. Como as ações e o exemplo de indivíduos dedicados podem influenciar positivamente seus grupos sociais ou comunidades, gerando impacto e esperança?

domingo, 27 de abril de 2025

O Boné e a Fúria: Uma Escola sob Ameaça ("A violência é o último recurso da incompetência." — Isaac Asimov)

 

O Boné e a Fúria: Uma Escola sob Ameaça ("A violência é o último recurso da incompetência." — Isaac Asimov)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A manchete me saltou aos olhos como um projétil: "Jovens tentando invadir a escola para matar a coordenadora e são detidos em Vila Velha". Li e reli, sentindo a descrença pesar no peito. Em Vila Velha, no Espírito Santo. O local parecia próximo, real demais, enquanto a notícia soava absurda a ponto de ser difícil de acreditar. Matar uma coordenadora de escola? A mente buscava um motivo, qualquer explicação que pudesse, minimamente, justificar tamanha fúria. E então, a reportagem trouxe a resposta — mais chocante do que a própria violência: tudo começou por causa de um boné.

Aparentemente, a centelha que acendeu o pavio foi esse objeto banal. Um adolescente, dentro da sala de aula, recusou-se a seguir a norma básica de retirá-lo. A coordenadora, no exercício de sua função, advertiu-o. Diante da persistência na desobediência, a situação escalou para a sala da coordenação. O boné permaneceu na cabeça; o desafio, no ar. A escola, seguindo o protocolo, acionou a família do estudante para uma conversa — uma tentativa rotineira de resolver o conflito em seu nascedouro. Mal sabiam eles a tempestade que se formava.

A reação, no entanto, foi brutalmente desproporcional. Após o término das aulas, o adolescente, tomado por uma raiva incontrolável e acompanhado de alguns amigos, retornou à escola. Não para dialogar, não para compreender a regra, mas para atacar. Tentaram forçar o portão, em um acesso de fúria que danificou a estrutura da instituição. Gritos e ameaças ecoaram, todos direcionados à coordenadora. A Guarda Civil foi acionada e chegou a tempo de evitar uma tragédia, mas o grupo, percebendo a aproximação dos agentes, fugiu antes de ser capturado. O ar da noite em Vila Velha agora carregava o eco sinistro daquela tentativa frustrada.

O que veio a seguir beirou o inacreditável. Mesmo após a intervenção da guarda e a reunião com os pais, o grupo não desistiu. No dia seguinte, com a mesma determinação aterradora, voltaram à escola. Desta vez, armados com uma faca, como detalhou a notícia. Eram quatro: uma jovem de 19 anos, dois adolescentes de 16 e 15, e uma adolescente de 14. Uma perigosa mistura de idades unidas por um plano violento, motivado por uma advertência sobre um boné. A Guarda Municipal agiu novamente, conseguindo detê-los antes que invadissem a escola e colocassem a vida da coordenadora em risco real. O alívio da prisão veio misturado à perplexidade.

Foram levados à delegacia especializada: a mais velha, autuada por organização criminosa; os adolescentes, responsabilizados por ato infracional análogo. As aulas, estranhamente, seguiram seu curso normal naquele dia, apesar da gravidade dos fatos que se desenrolaram à sombra dos portões.

É essa desconexão que me assombra. Um ato de violência planejada contra uma educadora, desencadeado por uma regra simples do ambiente escolar, não ecoou como deveria por todo o país. Parece que estamos perigosamente próximos de normalizar a violência que invade os muros da escola, de aceitar que a fúria de poucos possa ameaçar a segurança de tantos, de desvalorizar a integridade de quem dedica a vida a ensinar. Todo aquele ódio, toda aquela determinação em ferir... por um boné. A desproporção é gritante e dolorosa.

Não podemos, de forma alguma, fechar os olhos para isso. A escola é um espaço sagrado de aprendizado e convivência; aqueles que nela trabalham merecem respeito e segurança. A violência — não importa sua origem nem a aparente "pequenez" do estopim — jamais pode ser a resposta. Que este episódio em Vila Velha sirva de alerta, um lembrete cruel de que a banalização do descumprimento de regras e a escalada da agressividade podem conduzir a tragédias. É urgente olhar para nossas escolas, para nossos jovens e para a maneira como lidamos com os conflitos. É hora de valorizar, proteger e garantir que a paz seja a única norma inegociável dentro e fora de nossas salas de aula. Nossas coordenadoras, professores e estudantes merecem viver e aprender sem medo.



https://www.agazeta.com.br/es/policia/grupo-e-detido-por-planejar-matar-coordenadora-de-escola-em-vila-velha-0425 (Acessado em 27/04/2025)



Elaborei 5 questões discursivas e simples, baseadas nos pontos centrais da minha crônica "O Boné e a Fúria: Uma Escola sob Ameaça". O objetivo é provocar uma reflexão sociológica sobre os eventos e as questões sociais levantadas pelo texto.


1. O texto inicia com o choque de uma regra simples (o boné) levando a uma tentativa de violência extrema. Sob a ótica da Sociologia, como podemos entender a relação entre normas sociais (como as regras escolares) e a escalada de conflitos que podem resultar em atos de violência desproporcional?

2. A crônica descreve a escola como um "espaço sagrado de aprendizado e convivência". Como a Sociologia analisa a importância da escola como instituição social para a formação dos indivíduos e da própria sociedade, e de que forma a violência pode comprometer esse papel?

3. O grupo envolvido no incidente era composto por adolescentes e uma jovem adulta. Que fatores sociais e de interação grupal (como a influência de pares ou a dinâmica do grupo) a Sociologia considera relevantes para analisar comportamentos de risco e violência entre jovens?

4. O narrador expressa preocupação com o fato de a notícia não ter ecoado nacionalmente, sugerindo uma possível "normalização da violência" na escola. Explique, sociologicamente, como certos tipos de violência ou problemas sociais podem acabar sendo banalizados ou recebendo pouca atenção pública.

5. A crônica menciona a tentativa da escola de resolver o conflito inicial chamando a família. Quais são alguns dos desafios sociais complexos que as escolas e as famílias enfrentam hoje na mediação de conflitos e na garantia de um ambiente seguro para educadores e alunos?

sábado, 26 de abril de 2025

A Nova Língua da Vida: Linguagem-Neutra. ("As palavras nunca são as mesmas quando a alma não é a mesma." — Machado de Assis)

 

A Nova Língua da Vida: Linguagem-Neutra. ("As palavras nunca são as mesmas quando a alma não é a mesma." — Machado de Assis)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Acordei naquela manhã com um aperto estranho no peito, como se o próprio tempo tivesse decidido me pregar uma peça. Enquanto me preparava para a rotina de sempre — café, notícias, algumas reclamações para espantar o sono —, uma manchete capturou minha atenção e quase me fez engasgar com o pão de queijo: "STF derruba restrições municipais ao ensino em linguagem neutra." Confesso que meu primeiro impulso foi de espanto. Como assim? Nossa língua portuguesa, tão rica e estruturada, agora poderia ganhar novos contornos nas salas de aula?

Por um instante, pensei ter lido errado. Pisquei, ajustei o foco, reli. Não era engano. A língua portuguesa, essa velha senhora que sempre me ensinou que "eu, tu, ele" vinham antes de "nós, vós, eles", agora ganharia traços mais fluidos — talvez até escorregadios.

O café esfriava na xícara enquanto eu me aprofundava na notícia. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal havia formado maioria para invalidar leis municipais do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais que proibiam o uso e o ensino da chamada linguagem neutra nas escolas. O ministro relator, André Mendonça, argumentava que legislar sobre a língua portuguesa era competência federal, não municipal. Para eles, a língua é um projeto nacional, um grande guarda-chuva sob o qual cabem todas as nuvens. Alguns ministros discordaram — vozes isoladas tentando remar contra a maré —, mas a maioria venceu, como quase sempre acontece nesses tribunais onde a caneta é mais poderosa do que qualquer argumento.

Imaginei meu filho — aquele mesmo que outro dia me perguntou como se escrevia "amizade" — voltando da escola para me ensinar que agora éramos "amigue" e que, na nova gramática da vida, "todes" era mais bonito do que "todos". Não era mais uma questão de certo ou errado; era outra história sendo escrita, talvez com lápis de cera, talvez com palavras que ainda nem sabíamos pronunciá-las direito. A imagem mental me arrancou um sorriso nervoso, desses que surgem quando não sabemos exatamente como reagir diante do desconhecido.

No entanto, algo ainda me incomodava. Não era exatamente a decisão em si, mas o burburinho que se formava nas redes sociais. Vi compartilhamentos alarmistas sugerindo que, a partir de agora, as crianças aprenderiam apenas a "língua do Mussum" ou seriam obrigadas a falar "todes" e "amigues". Que exagero! Como se nossa língua nunca tivesse passado por transformações ao longo dos séculos.

Enquanto ouvia análises e comentaristas, uma memória infantil veio à tona: minha professora de português, dona Coraci — severa, mas justa —, martelando a concordância verbal até nossas cabeças doerem. Ela dizia que a língua era o que nos unia como povo, que a gramática era o alicerce da nossa compreensão mútua. Senti saudades daquele tempo, em que a simplicidade do certo e do errado era suficiente para dar sentido ao mundo.

Lembrei-me ainda de quando era criança e meu avô reclamava das "novidades" que os jovens traziam para o português: — "No meu tempo, ninguém falava 'você'; era 'o senhor' e 'a senhora'"- , dizia ele, indignado. E hoje? Quem ainda se espanta com o uso de "você"? As línguas são organismos vivos, mutáveis, que respiram e evoluem com as sociedades que as utilizam.

Quando me pus a refletir com mais calma, percebi que a linguagem neutra era apenas uma proposta de inclusão. Não se tratava de obrigar ninguém a falar de determinada maneira, tampouco de substituir nossa gramática tradicional. Era mais uma possibilidade, uma forma de acolher pessoas que não se identificam exclusivamente com o masculino ou o feminino. Ainda assim, vejo uma geração sendo chamada a falar uma língua que não aprendi e que, confesso, mal entendo. Uma língua que não nasceu das ruas, mas dos palanques; que não floresceu da necessidade popular, mas da vontade política. Não culpo quem defende a inclusão — todos merecem ser vistos, ser ouvidos. Mas me pergunto: estaremos, nesse processo, ensinando a expressar ou a confundir?

Terminei meu café já frio e fiquei pensando em quantas outras transformações linguísticas ainda testemunharei ao longo da vida. Talvez, em algumas décadas, o que hoje nos parece estranho se torne tão comum quanto um "você". Ou talvez não se fixe, permanecendo como uma expressão datada de um período específico.

O fato é que nossa língua portuguesa, com mais de mil anos de existência, já sobreviveu a invasões, colonizações, acordos ortográficos e revoluções culturais. E continuará sobrevivendo, adaptando-se aos tempos e às necessidades das pessoas que a utilizam. Afinal, a língua não pertence a gramáticos ou tribunais — pertence a cada um de nós, que a moldamos em nossas conversas diárias, em nossos textos, em nossos silêncios eloquentes.

Respiro fundo. O mundo gira, e eu, ainda meio atordoado, percebo que não adiantará gritar contra o vento. Quando meu filho voltar da escola, talvez me chame de "pãe" ou me pergunte se prefiro ser tratado como "amigue". Eu sorrirei, como quem tenta equilibrar passado e futuro sobre uma corda bamba, e ensinarei a ele o que sempre acreditei: mais importante do que falar bonito é falar com o coração.

Enquanto fechava a tela do celular, decidi que conversaríamos sobre isso. Não para impor minha visão, mas para ouvir a dele. Porque, se há algo que aprendi em todos esses anos, lidando com adolescentes, no papel de professor de Língua Portuguesa, é que a maior riqueza de uma língua está justamente na diversidade de vozes que a compõem.

E você, o que pensa sobre essas transformações linguísticas? Talvez seja hora de nos abrirmos para o diálogo, sem pânico e sem extremismos. Afinal, como diria Guimarães Rosa, "a língua é a casa do ser." E que casa seria completa sem espaço para todos os seus habitantes? Porque, no fim das contas, as palavras mudam, mas a verdade que carregamos dentro delas — essa, espero eu, continuará a mesma.


https://www.brasil247.com/brasil/stf-derruba-restricoes-municipais-ao-ensino-em-linguagem-neutra (Acessado em 26/04/2025)



Como seu "professor de sociologia" para esta análise, preparei 5 questões discursivas simples baseadas no texto. Elas visam estimular a reflexão sobre os aspectos sociais que emergem da narrativa sobre a linguagem e suas transformações.

Aqui estão as questões:


1. O texto descreve diferentes reações à notícia sobre a linguagem neutra, desde o espanto inicial do narrador até o "burburinho alarmista" nas redes sociais. Sob uma perspectiva sociológica, o que essas diferentes reações revelam sobre a relação das pessoas com a mudança nas normas sociais e culturais, como a língua?

2. A crônica menciona que a professora de português dizia que "a língua era o que nos unia como povo". Considerando o debate sobre a linguagem neutra apresentado no texto, de que maneira a língua pode ser vista tanto como um fator de união quanto de possível divisão ou tensão em uma sociedade?

3. O texto aborda a decisão do STF, destacando a competência federal sobre a língua. Qual o papel das instituições, como o sistema judiciário e a escola, na normatização ou na promoção de mudanças em aspectos culturais e sociais como a língua?

4. Através das lembranças do narrador sobre sua professora, seu avô e a expectativa em relação ao filho/sobrinho, o texto sugere diferentes visões sobre a mudança linguística ao longo do tempo e entre gerações. Sociologicamente, como podemos analisar a forma como as diferentes gerações lidam com as transformações nas práticas sociais e culturais?

5. A linguagem neutra é apresentada no texto como uma "proposta de inclusão". Pensando na relação entre linguagem e identidade social, explique como a forma como usamos as palavras pode influenciar a inclusão ou exclusão de determinados grupos de pessoas na sociedade.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Quando João Parou de Pular ("Morrer é nada; horrível é não viver." — Victor Hugo)

 

Quando João Parou de Pular ("Morrer é nada; horrível é não viver." — Victor Hugo)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Naquela manhã abafada, enquanto os ventiladores antigos se esforçavam para empurrar o calor para fora da sala, ele saltava de uma mesa a outra como se fosse dono do espaço e do tempo. Carregava a leveza de quem ainda não conhecia o peso das regras e a urgência dos que vivem como se o amanhã estivesse sempre prestes a ser roubado.

João Vitor era desses que ocupam todo o ambiente, apesar do corpo pequeno para a idade. De camisa vermelha e olhar inquieto, trazia no rosto uma mistura de desafio e sobrevivência. Chamavam-no de Barroto — talvez por ironia, talvez por carinho, talvez por medo. Ninguém jamais explicou. E ele, por sua vez, nunca se importou em se corrigir.

A professora hesitava diante dele. Sua autoridade vacilava, não apenas por conta da indisciplina escancarada, mas por algo mais profundo — talvez o medo de tocar numa ferida que nem ela saberia nomear. João não respeitava os limites da sala, da escola, do corpo. E ninguém ousava repreendê-lo com firmeza. Não porque fosse forte, mas porque trazia no semblante um tipo de fúria que não se aprende na infância: se herda.

Via-o em vídeos que circulavam entre os grupos de professores: pulando janelas, rindo alto, provocando os colegas, desafiando a lógica dos cadernos e das carteiras alinhadas. E agora me pergunto: onde começa a culpa? Será que ele era mesmo o problema? (Há que diga que a culpa é da professora!).

Os noticiários sensacionalistas o mostraram em close — óculos escuros, camisa chamativa — o retrato de um “menor problema”, como gostam de dizer. Mas, na legenda fria, uma sentença definitiva: *executado com oito tiros enquanto dormia*. O que me engasga não é a quantidade dos disparos, mas a ironia brutal de um descanso interrompido. Dormia — justo ele, que nunca parava.

João vivia com a mãe — dizem que envolvida com o tráfico. Dizem também que o menino, desde cedo, já conhecia o valor da rua, dos esquemas, das moedas trocadas no escuro. Dizem muita coisa. Mas, ninguém diz o que lhe faltou. Ninguém fala das vezes em que, talvez, ele só quisesse ser ouvido sem precisar gritar. (Agora há quem diga que a culpa é da sociedade).

Neste momento, cá estou eu, refletindo entre pilhas de provas e planejamentos, tentando ensinar ética a adolescentes que vivem à margem de um mundo em ruínas. Às vezes, me pergunto se temos dado a eles algo além de regras e avaliações.

João parou. Parou de pular, de provocar, de viver. E com ele, foi-se mais uma chance de corrigirmos o que está errado — antes que seja tarde. A escola perdeu. A rua venceu. E, como sempre, quem paga a conta é a infância. (Também há quem diga que a lei da causa e efeito é injusta).


https://www.instagram.com/reel/DI0kunXOtn7/?utm_source=ig_web_copy_link (Acessado em 24/04/2025)



Olá! Com base na crônica acima, que nos traz reflexões importantes sobre infância, violência, educação e sociedade, elaborei 5 questões discursivas simples, como um professor de sociologia faria, para estimular o pensamento crítico sobre os temas abordados:


1. O texto descreve João Vitor como alguém que transitava entre a escola e a "rua", com comportamentos que desafiavam as normas escolares. Pensando sociologicamente, como os diferentes ambientes sociais (família, escola, rua) podem influenciar a formação e as escolhas de um jovem?

2. A crônica menciona a hesitação da professora e a dificuldade da escola em lidar com João Vitor. Qual o papel social da instituição escolar em comunidades vulneráveis, e quais são os desafios que ela enfrenta ao tentar educar e proteger crianças expostas a múltiplas dificuldades?

3. O narrador reflete sobre "ensinar ética a adolescentes que vivem à margem de um mundo em ruínas" e conclui que "a rua venceu". Como a desigualdade social e a falta de oportunidades podem contribuir para que jovens como João Vitor sigam trajetórias de risco e violência?

4. João Vitor foi retratado pela mídia como um "'menor problema'". Como a forma como a sociedade e os meios de comunicação rotulam (ou estigmatizam) jovens, especialmente os mais vulneráveis, pode impactar suas vidas e a maneira como são tratados?

5. O texto levanta repetidamente a questão da "culpa" pela trajetória e morte de João Vitor (professora, sociedade, causa e efeito). Do ponto de vista sociológico, como podemos analisar a responsabilidade por tragédias como essa, considerando tanto as ações individuais quanto as estruturas e condições sociais?