Silvaneide na sala onde o coração se cala: Coordenação. ("O fardo é leve quando levado por muitos." — Ovídio)
Foi numa sexta-feira comum — dessas em que os ponteiros do relógio correm apressados, indiferentes à dor — que o tempo, de repente, hesitou. Marcava meio-dia, mas ali, naquele instante, algo se quebrou. O som abafado da rotina deu lugar a um silêncio espesso, quase sólido, como se o ar carregasse o peso de uma despedida que ninguém soube prever.
Eu não estava lá. Mas consigo imaginar. Vejo, com a nitidez dos que sentem além da visão, a professora Silvaneide sendo chamada no corredor. Não conhecia seu andar, mas posso vê-la caminhando depressa, talvez preocupada, talvez apenas habituada à urgência que nos empurra pelos dias. Vejo seu olhar atento, talvez cansado, mas firme. E um sorriso — daqueles que ainda acolhem, mesmo quando o mundo já não merece tanto cuidado.
Ela ensinava português como quem borda sentidos com paciência e afeto. Era dessas professoras que acreditam, com fé antiga, que uma palavra bem dita pode redesenhar destinos. Mesmo quando tudo parece desmentir isso.
Naquela sexta, foi chamada à sala da pedagogia. Mais uma reunião. Mais uma cobrança. Mais uma justificativa para o injustificável. A rotina escolar transformada em tribunal — onde se julga quem ensina, mas não quem exige. A cada nova plataforma, um novo sufoco. A cada meta imposta, uma nova ferida aberta.
Não sei o que foi dito lá dentro. Sei apenas o que veio depois: um comunicado seco, um murmúrio que tentava esconder o grito. Ela caiu. Primeiro o corpo. Depois o silêncio. E, por fim, a certeza — não era apenas um desmaio.
O socorro chegou. Mas tarde demais. O coração de Silvaneide, espremido há anos sob o peso de exigências absurdas, finalmente desistiu. Não suportou.
Naquela tarde, provavelmente, não houve mais aula naquela unidade escolar. Mas, houve lições. Duras. Inadiáveis. Aprendemos que a pressão adoece. Que mata. Que reuniões podem ser tão letais quanto o descaso. E que os ombros dos professores, por mais largos que sejam, também têm limite.
Nos dias que se seguiram, vieram os comunicados, os posts, as homenagens. O sindicato, as redes sociais, os colegas — todos repetiam a palavra que agora pesa mais do que nunca: “pressão”. E eu só consigo pensar em quantas outras Silvaneides continuam em pé, adoecendo em silêncio, por puro amor à profissão.
Ela tinha 56 anos. Uma filha. Um marido. E tantos sonhos que nunca verão o tempo passar.
Na sala onde seu coração se calou, ficaram perguntas que ninguém ousa responder. Até quando faremos da escola um lugar de medo? Até quando aceitaremos a cobrança como método e a desumanidade como norma?
Hoje, ao olharem a cadeira vazia na sala dos professores, talvez seus colegas sintam que não dá mais para seguir como antes. Que a morte de Silvaneide não pode ser apenas mais um número numa planilha fria, mas um alerta. Um grito. O mais triste dos gritos — pedindo apenas um pouco de humanidade.
E, se há algum consolo possível, que ele venha em forma de mudança. Porque já não é mais possível fingir que está tudo bem. Não quando uma professora morre tentando explicar por que seus alunos não aprenderam a redigir bem, enquanto o mundo, lá fora, ainda não aprendeu a escutar. https://appsindicato.org.br/nota-de-pesar-pelo-falecimento-da-professora-silvaneide-monteiro-andrade/ (Acessado em 01/06/2025)
A Minha crônica oferece uma perspectiva tocante e crítica sobre as condições de trabalho dos professores e o impacto da pressão no seu bem-estar. Vamos a 5 questões discursivas para explorar as ideias centrais sob um olhar sociológico:
1 - A crônica descreve a morte da professora Silvaneide durante uma reunião de cobrança de metas. Como a Sociologia do Trabalho analisa a relação entre pressão no trabalho e a saúde dos trabalhadores, e quais elementos específicos do ambiente escolar podem contribuir para o aumento do estresse e do adoecimento dos professores?
2 - O texto menciona a transformação da rotina escolar em um "tribunal" onde se julga quem ensina. Sob a perspectiva da Sociologia das Instituições, como podemos analisar as mudanças nas dinâmicas de poder e nas formas de avaliação dentro da escola, e quais as consequências dessas mudanças para os profissionais da educação?
3 - A reação dos colegas de Silvaneide e do sindicato aponta para a "pressão" como um fator crucial na sua morte. Como a Sociologia pode nos ajudar a compreender a construção social da pressão no ambiente de trabalho e de que maneira essa pressão se manifesta especificamente na profissão docente?
4 - A crônica questiona até quando a escola será um lugar de medo e a cobrança será aceita como método. Utilizando conceitos da Sociologia da Educação, discuta o papel da cultura organizacional da escola e como ela pode influenciar o bem-estar dos professores, promovendo ou inibindo um ambiente de trabalho saudável.
5 - O final do texto clama por uma mudança e por mais humanidade. De que forma a Sociologia pode contribuir para a reflexão sobre a humanização das relações de trabalho na educação e quais mecanismos sociais e políticos poderiam ser implementados para promover um ambiente mais saudável e acolhedor para os professores?
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