O MAL, DOMÍNIO DE CLASSE ("O céu não me quer, mas o inferno teme o meu domínio". — Cristina Wright)
Desde sempre, nutri uma desconfiança — saudável ou teimosa — das inovações que chegam à escola como ondas passageiras. Não se trata de medo da mudança, mas de cansaço. Cansaço de ver, por trás do verniz moderno, interesses politiqueiros, vaidades institucionais e vaivéns de conveniência. A mentira tem pernas curtas, e a pedagogia, para ser legítima, precisa calçar sapatos de verdade duradoura.
Foi com esse sentimento que, ontem, ao observar uma colmeia no jardim da escola, percebi: a educação se assemelha a esse universo das abelhas — complexo, cooperativo, mas vulnerável ao menor sinal de ameaça. E eu, admito, me sinto como um apicultor desajeitado, tentando extrair o mel do conhecimento sem provocar ferroadas de ressentimento ou medo.
Diante dessa colmeia chamada escola, finquei meus pés em princípios que não saem de moda. A cada metodologia milagrosa apresentada em reuniões pedagógicas, observo em silêncio. Ouço colegas defenderem que “alunos precisam ser controlados para aprenderem”, enquanto me pergunto: desde quando o medo educa? Que ex-aluno volta à escola por saudade de um professor repressor, administrador de castigos e silêncios?
São quase sempre os rígidos que sacrificam o ritmo natural da aprendizagem em troca da aprovação dos superiores. E, no entanto, é esse modelo que tentam me empurrar — talvez porque ninguém queira ir sozinho para o inferno da artificialidade.
Aprendi, na pele, o custo de seguir por outro caminho.
Lembro-me de uma tarde de quinta-feira. A sala dos professores estava vazia. O cheiro de café queimado no ar misturava-se ao do giz. Sentei-me junto à janela, contemplando meus vinte anos de magistério. Dias antes, adoecera com "Dengue", que me afastou por semanas. Nenhum coordenador veio me visitar. Recebi apenas ligações perguntando se a licença da Junta Médica estava devidamente protocolada. A frieza da burocracia institucional contrastou com um calor inesperado: na semana seguinte, fui surpreendido pela visita de um ex-aluno, Lino Junior.
Entrou tímido, trazendo lembranças, perguntas, um livro que eu havia recomendado — e boas lembranças. “Vim devolver e agradecer”, disse. Era simples, mas desconcertante.
Enquanto conversávamos, uma frase martelava em minha mente: “O verdadeiro respeito nunca nasceu do medo.” Lino Junior não voltou porque fui autoritário ou dominei sua rebeldia com punhos de ferro. Voltou porque, mesmo com divergências, construímos algo raro: intimidade intelectual. Naquele momento, tive certeza de que a educação que vale é a que se cultiva com paciência, não a que se impõe com rigidez.
A visita iluminou mais do que o sol da primavera que entrava pela janela. Mas também revelou sombras.
Há colegas que me evitam, cochicham quando viro as costas, me chamam de instável, temperamental, sem perfil. Talvez tenham razão — perfil, só tenho nas redes, e mesmo assim, mal administrado. Mas recuso ser mais um que repete fórmulas vencidas só para manter o sistema funcionando. Não distribuo notas para maquiar resultados, nem me orgulho de ser temido. Quero ser conhecido — ainda que não gostem do que veem. Afinal, é mais fácil detectar um “mau-caráter” quando ele não se parece conosco. A autenticidade assusta porque confronta os disfarces alheios.
Existe, porém, uma forma ainda mais sutil de dominação que circula impune nos corredores escolares: o falseamento dos fatos, as meias verdades, a omissão conveniente. O embuste pedagógico não está apenas no grito, mas também no sussurro calculado que diz: “Isso o aluno não pode saber.” Muitos se esquecem de que o verdadeiro poder do apicultor não está em não assustar a colmeia, mas em entendê-la.
E quando o conhecimento é manipulado, quando se recompensa mais a aparência do que a substância, cria-se um sistema em que se extrai o mel da colmeia sem considerar o bem das abelhas — ou de seus próprios filhotes. Eu me recuso a participar desse jogo de cartas marcadas.
Confesso: ainda não descobri a melhor forma de tirar o mel sem me ferir. Às vezes, monto colmeias que devoram o próprio mel — fruto de um trabalho que não alimenta, que não consola. E sim, de vez em quando, ainda me ferro. Às vezes, me fecho. Mas nunca me traio.
Se há algo que jamais farei é terrorismo pedagógico. Não controlo pelo medo, nem construo autoridade com gritos. Como disse Albert Camus, “Nada é mais desprezível que o respeito baseado no medo”(Fora Maquiavel). O respeito que almejo nasce da confiança, da intimidade construída pela verdade — por mais amarga que ela seja. E mesmo quando o mel parece escasso, essa integridade é minha maior colheita.
O sucesso, talvez, não esteja na ausência de críticas ou nos aplausos oportunistas. Está, sim, em seguir inteiro por dentro, fiel a um propósito que vai além do que se vê.
O sol se põe sobre o pátio da escola enquanto planejo estas linhas. Vejo alunos retardatários, conversando animadamente sobre algo que aprenderam. Talvez matemática, literatura, ou quem sabe a arte difícil de questionar o mundo. Sorrio, pensando que sou apenas um intermediário nesse processo mágico. E, se há uma lição que aprendi ao longo desses anos, é que a verdadeira educação floresce em solo de confiança — não em campo de batalha.
Podemos extrair o mel do conhecimento com violência e obter resultados imediatos. Ou podemos cultivar colmeias saudáveis, que produzirão mel por gerações.
Quando Lino Junior partiu, deixou-me um abraço com as seguintes palavras: “Obrigado por nunca ter nos tratado como recipientes vazios a serem preenchidos, mas como colmeias já repletas de possibilidades.”
E então me pergunto, leitor: quantos de nós, educadores, temos coragem de renunciar ao papel de extratores de mel para nos tornarmos verdadeiros guardiões de colmeias?
Talvez essa seja a única inovação pedagógica que realmente importa. E se for loucura, que bom. Pior seria adoecer por dentro só para parecer saudável por fora.
Minha crônica "O MAL, DOMÍNIO DE CLASSE" é uma reflexão contundente e poética sobre os dilemas éticos e práticos do magistério em um sistema complexo. A forma como uso a metáfora das abelhas e do apicultor para descrever a dinâmica escolar e a busca por um "mel" genuíno é brilhante. Vejo em meu texto profundas análises sobre as relações de poder, as práticas institucionais e o custo da autenticidade. Com base nas minhas ideias principais, preparei 5 questões discursivas simples:
1. A crônica descreve a escola como uma "colmeia" com suas próprias regras e dinâmicas, onde "inovações" podem servir a "interesses politiqueiros ou egoístas". Como a Sociologia analisa a escola enquanto uma instituição social com sua própria cultura organizacional, poder e interesses, e de que forma esses elementos influenciam as práticas pedagógicas e as relações entre seus membros?
2. O texto contrasta o controle e o "respeito baseado no medo" com a busca por "intimidade intelectual" e confiança na relação professor-aluno. Do ponto de vista sociológico, como as relações de poder se manifestam na interação entre professores e alunos, e quais são as implicações sociais e pedagógicas de diferentes estratégias de manejo da sala de aula (baseadas em controle versus confiança mútua)?
3. A crônica critica o "embuste pedagógico" das "meias verdades", "falseamento dos fatos" e "omissão conveniente". Como a Sociologia investiga as formas de comunicação (ou a falta dela) e a circulação de informações (ou a manipulação delas) dentro de instituições como a escola, e o impacto dessas práticas na confiança e na legitimidade do sistema educativo?
4. O narrador se recusa a ser uma "mentira ambulante" ou um "ator social" que sacrifica sua autenticidade para "parecer correto". Como a Sociologia compreende a construção da identidade profissional, e quais são os desafios éticos e emocionais enfrentados por profissionais (como professores) para manterem a autenticidade em face das pressões institucionais por conformidade ou performance?
5. A crônica utiliza a metáfora do "mel" para o conhecimento e a conexão, e do "ferrão" para o ressentimento ou medo. Como a Sociologia da Educação analisa o "produto" ou o "objetivo" da educação – que vai além do conteúdo formal – incluindo o desenvolvimento de capital social (relações de confiança) e o cultivo da autonomia e do pensamento crítico nos alunos?