A Caneta e a Consciência: Diário de um Professor "Insilenciado" ("Resista muito e obedeça pouco." — Rui Barbosa)
Era início de dezembro quando me vi, mais uma vez, diante do diário eletrônico — aquele retrato digital do ano letivo, onde cada nome listado carregava um silêncio profundo. Em muitas linhas, a ausência era completa: de corpo, de alma, de vontade. Eram nomes que atravessaram os meses como sombras, sem deixar marcas de participação, aprendizado ou esforço. Mas não demorou para que, como em todos os anos, surgisse a visita que transforma o diário em campo de tensão.
A diretora entrou na sala. Com sua fala polida e estratégica, comunicou, sem rodeios, que “não podíamos reprovar tantos alunos”. Havia metas a cumprir, índices a preservar, relatórios a compor. “Você vai mudar essas notas, é pelo bem da escola”, disse, com uma naturalidade cortante. O verbo *vai* ecoou como uma ordem indevida — um peso sobre minha consciência.
Naquele instante, minha mente revisitou cada falta, cada trabalho não entregue, cada silêncio em sala de aula. O que me pediam não era um mero ajuste numérico — era um gesto de conivência. Era apagar a verdade com um clique, rasurar a realidade em nome de uma política de resultados imediatos.
A sala dos professores, então, tornou-se uma trincheira muda. Olhares evitavam o confronto. Uns, resignados, justificavam: “é melhor passar do que ter esse aluno de novo”. Outros alegavam não querer problemas. Mas, ali, diante do impasse, compreendi: aprovar sem mérito não é um ato de compaixão — é uma violência contra a educação.
Lembrei-me de Cláudia, uma colega de literatura que há décadas sustenta seus princípios com serenidade. Um dia, diante do mesmo dilema, ela me disse: “Notas não são apenas números. São diagnósticos. E mais: são declarações de princípios. Ao assinar o diário, você declara se aquele aluno aprendeu — ou se você se rendeu.” Suas palavras voltaram como âncora em meio à tempestade.
Naquela noite, em casa, repassei mentalmente não apenas as vivências do ano, mas também a legislação. Recordei que o professor é o único responsável pela atribuição das notas. Que qualquer alteração sem seu consentimento configura falsificação. Não era apenas uma questão ética — era também legal. E, acima de tudo, era moral.
No dia seguinte, entrei na sala da diretora com o diário nas mãos e a convicção no olhar. “As notas estão lançadas conforme a aprendizagem demonstrada”, declarei. “Não posso alterá-las para maquiar índices. Se queremos melhorar resultados, precisamos melhorar o ensino — não fraudar os registros.” Educa-se mais, sim, reprovando os incompetentes — no sentido de reconhecer que a educação é, antes de tudo, compromisso com a verdade e com o esforço legítimo. Aprovar sem mérito é desmoralizar o mérito; é fingir que a ponte foi atravessada por quem sequer saiu da margem. A frase de Chamfort é preciosa: prestígio sem mérito gera aparência sem substância, bajulação sem respeito. Quando a escola aprova sem critério, não forma cidadãos — apenas aduladores do sistema. É na reprovação pedagógica, feita com critério e ética, que o aluno é confrontado com a realidade: não se avança sem preparo. A meritocracia, nesse caso, não é um privilégio, mas uma forma de justiça.
Ela tentou argumentar. Citou a secretaria de educação, os impactos institucionais. Mas não me demovi. Porque sei que promover automaticamente quem não aprendeu é apenas transferir o fracasso para o próximo ano, para outro professor, para uma escola que herdará o aluno ainda mais desestimulado e sem base. É iludir o próprio aluno, impedindo-o de reconhecer seus limites e potencialidades.
Sim, há alunos que se esforçaram apesar de todas as adversidades — familiares, emocionais, econômicas. A esses, devemos respeito. Mas, ao aprovar indiscriminadamente, sem critério, apagamos também a luta deles. Nivelamos por baixo e corroemos o valor da conquista.
Ser professor é, muitas vezes, caminhar na contramão das conveniências institucionais. É dizer “não” quando o sistema clama por obediência cega. É sustentar a verdade do processo educativo, mesmo quando isso implica incompreensão, isolamento ou retaliação. A caneta que carrego não é leve, mas traz consigo o peso da responsabilidade e da esperança.
Deixei a sala da diretora com o coração ainda agitado, mas com a consciência limpa. Reprovar não é castigar. É reconhecer que aprender exige esforço. É oferecer ao aluno a chance de reconstruir, refazer, recomeçar — e não ser empurrado adiante como um número que serve a um gráfico, mas não à vida.
A escola adoece, sim, mas não será com minha conivência. O verdadeiro sucesso educacional não se mede por planilhas ou relatórios. Ele se revela no brilho dos olhos de quem supera dificuldades, na coragem de quem sustenta a integridade mesmo sob pressão, na aprendizagem sólida que, mesmo silenciosa, ecoa no futuro.
Que sejamos lembrados, nós, professores, não pelos diplomas que assinamos, mas pelas verdades que ousamos sustentar. A nota que não se dobra é também a consciência que não se vende.
Como seu professor de Sociologia, ao reler minha crônica, fui levado a pensar sobre as complexas dinâmicas sociais que atravessam o ambiente escolar, especialmente as tensões entre normas institucionais, métricas de desempenho e o trabalho pedagógico real. Com base nessas reflexões, preparei 5 questões discursivas simples:
1. O texto descreve a pressão da direção da escola para que o professor altere as notas, visando melhorar os índices de avaliação externa (IDEB). Como a Sociologia analisa a influência de avaliações externas e metas de desempenho na gestão das escolas e nas práticas pedagógicas dos professores?
2. O narrador se posiciona como o responsável pela "verdade do processo educativo" ao atribuir as notas. De que forma a Sociologia entende o papel do professor como um agente de avaliação dentro do sistema escolar, e quais são os desafios éticos e profissionais que podem surgir nesse papel?
3. A crônica critica a "promoção automática" por considerar que ela "ilude o próprio aluno" e "transfere o fracasso". Quais as possíveis consequências sociais, a curto e longo prazo, de políticas educacionais que priorizam a aprovação sobre a aprendizagem efetiva, tanto para os estudantes quanto para o sistema educacional?
4. O texto mostra a tensão entre a conveniência institucional (melhorar índices) e a integridade profissional do professor. Como a Sociologia investiga os dilemas éticos enfrentados por profissionais em diferentes áreas e os fatores sociais que podem levar à pressão por comportamentos que contrariam a ética?
5. O professor decide "resistir" à pressão da diretora, defendendo sua autonomia e o valor da aprendizagem real. De que maneira a Sociologia estuda os atos de resistência individual ou coletiva dentro de instituições e por que, em alguns casos, indivíduos optam por defender seus princípios mesmo diante de possíveis retaliações?
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