Quando Ensinar se Torna Subversão ("Posso não concordar com o que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de o dizer." — Voltaire (atribuído))
Naquela manhã abafada de início de semestre, Débora atravessou o pátio da escola com passos firmes e uma pasta cheia de ideias. Quinze anos de magistério não haviam apagado o brilho nos olhos, tampouco o incômodo de ver os corredores escolares cada vez mais estreitos para quem ousava pensar diferente. Lotada no Centro de Ensino em Período Integral Gracinda de Lourdes, no centro de Goiânia, carregava mais que diários e planejamentos: trazia um projeto de seis meses, cuidadosamente elaborado e amparado pelas normas da própria Secretaria de Educação.
O tema não era gratuito. Direitos humanos, diversidade, cidadania — palavras que, para alguns, soavam perigosamente inflamáveis. Mas, para Débora, mestranda no Núcleo de Direitos Humanos da UFG, essas palavras faziam parte do cotidiano. Queria levá-las aos alunos, dar-lhes carne, rosto e voz. Para isso, convidara duas mulheres de currículo extenso e militância robusta: a professora Ângela Café e a doutora Amanda Souto.
Todos os detalhes foram informados à coordenação: datas, temas, biografias, até os trajetos das convidadas. Débora seguira os trâmites com rigor quase burocrático. Ainda assim, o silêncio foi a única resposta.
Dez dias depois do envio do cronograma, chegou a data marcada para a palestra da professora Ângela. Ela viera de forma voluntária, sem cobrar nada, movida apenas pela urgência de dialogar com os jovens. Mas, ao chegar, foi barrada.
Débora foi chamada à coordenação. A justificativa era seca: não havia autorização da instância superior. A visita, portanto, não poderia acontecer. A professora, que já aguardava na portaria da instituição, precisaria ir embora — como se fosse um incômodo, uma intrusa num espaço que deveria ser plural.
Débora contestou. Citou a Constituição. Apontou o artigo 206, inciso II, que garante a liberdade de ensinar. Lembrou que músicos, psicólogos e até lideranças indígenas já haviam sido recebidos sem a menor burocracia. Tudo em vão. Disseram-lhe que, por não haver resposta oficial, ela não deveria ter levado ninguém.
Foi então que, como quem resgata do fundo do peito um gesto de dignidade, ela reagiu. Disse que a professora Ângela entraria, sim. “Porque a escola era pública. Porque os alunos eram dela, naquele turno. Porque o saber não se curva ao silêncio administrativo.” Permitiram a entrada — não sem constrangimento —, mas impuseram uma condição: a próxima palestrante, doutora Amanda, deveria ser desmarcada.
Débora não cedeu. Exigiu que, se houvesse negativa, viesse por escrito. Ninguém quis assumir a caneta.
Naqueles corredores, entre cartazes de projetos antigos e olhares jovens sedentos por novidade, revelava-se uma contradição do tamanho do sistema: ensinar sobre direitos humanos e ser impedida de exercê-los. Era como distribuir sementes e ver alguém, às escondidas, cimentar a terra.
A situação não era isolada. Em muitas escolas do estado, diretores eram reconduzidos sem processo democrático. O espaço do diálogo dava lugar ao autoritarismo sorrateiro, disfarçado de gestão. E a autonomia docente era tratada como ameaça.
Débora não se calou. Não por vaidade, mas por princípio. Gravou um vídeo. Contou o ocorrido. Expôs a incoerência. E pediu que outros professores fizessem o mesmo: falassem, denunciassem, resistissem.
Porque, no fim das contas, ensinar nunca foi só uma profissão. Para alguns, é uma missão. Para outros, um incômodo. E, para quem entende sua potência, ensinar, hoje, é um ato político — um sopro de liberdade num ambiente onde, cada vez mais, querem fechar as janelas e trancar as portas.
Mas, há sempre frestas. E, por elas, Débora acredita, a luz entra.
https://www.instagram.com/reel/DKNapqbuBeV/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA== (Acessado em 29/05/2025)
O relato da professora Débora levanta questões sociológicas cruciais sobre a autonomia docente, a liberdade de cátedra e as tensões entre diferentes visões sobre o papel da escola na sociedade. Vamos a 5 questões discursivas para aprofundar o tema:
1 - O texto narra a dificuldade de Débora em trazer palestrantes para abordar temas de direitos humanos, apesar da liberdade pedagógica prevista. Como a Sociologia da Educação analisa o conceito de liberdade de cátedra e quais os limites e desafios para a sua efetivação no contexto escolar brasileiro?
2 - A reação da coordenação da escola em impedir a palestra sob a alegação de falta de autorização superior sugere um controle sobre o conteúdo pedagógico. Como a Sociologia do Poder examina as relações de poder dentro da instituição escolar e de que maneira instâncias superiores podem influenciar ou restringir a autonomia dos professores?
3 - Débora menciona a recondução de diretores sem processo democrático em várias escolas do estado, associando isso a um "autoritarismo sorrateiro". Como a Sociologia Política e a Sociologia das Organizações analisam a importância da participação democrática na gestão escolar e quais os potenciais impactos da sua ausência na dinâmica da comunidade educativa?
4 - A escolha de temas como direitos humanos, diversidade e cidadania é vista por alguns como "perigosamente inflamável". Como a Sociologia analisa a politização do currículo escolar e as diferentes visões ideológicas sobre quais temas devem ou não ser abordados na educação?
5 - A atitude de Débora em resistir e gravar um vídeo para denunciar o ocorrido demonstra uma forma de ação coletiva e de defesa da autonomia docente. Como a Sociologia dos Movimentos Sociais analisa as estratégias de resistência e a importância da mobilização dos professores na defesa de seus direitos e da qualidade da educação?
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