Meias Coloridas Não Salvam a Educação ("Amar não basta." — Ideia inspirada em Paulo Freire)
Foi numa terça-feira cinzenta que coloquei, pela primeira vez, minhas meias coloridas para dar aula. Roxo e verde-limão — uma combinação que arrancou sorrisos imediatos dos meus alunos do 7º ano quando me sentei na mesa e deixei que aparecessem sob a barra da calça. A ideia veio de um daqueles workshops motivacionais que a Secretaria de Educação nos obrigava a frequentar mensalmente: “Traga alegria para sua sala de aula”, dizia a palestrante de voz estridente, “e a aprendizagem virá como consequência”.
O experimento funcionou por algumas semanas. As crianças passaram a tentar adivinhar quais meias eu usaria no dia seguinte, e alguns começaram a trazer suas próprias versões coloridas. Criamos até um pequeno ritual antes das provas: “Mostre suas meias, professor, para dar sorte.” E eu mostrava, claro, enquanto distribuía as folhas de questões sobre leitura e interpretação textual que muitos ainda não compreendiam.
Não me entendam mal. Não nego o valor de um olhar acolhedor, de um sorriso que encoraja, da mão estendida que ampara no ambiente escolar. O afeto é fundamental. Mas focar a narrativa apenas nessas experiências sensíveis parece perigosamente obscurecer os verdadeiros entraves da nossa educação – aqueles muros altos e pesados, de natureza estrutural, socioeconômica e institucional, que insistem em limitar o voo de tantos alunos e professores.
O problema é que as meias não resolviam dúvidas gramaticais, nem supriam a falta de carteiras. Não silenciavam o barulho ensurdecedor do ventilador quebrado ou do aparador de grama, que parecia funcionar apenas durante as aulas. Tampouco enchiam a barriga dos cinco alunos que eu sabia que vinham sem café da manhã. A dura realidade é que, quando romantizamos excessivamente o afeto e a ação individual — a criatividade isolada do professor, a meia colorida usada para chamar atenção, o nariz de palhaço que arranca um riso — corremos o sério risco de transformar a exceção em regra.
É o que ocorre, por exemplo, nas reuniões de conselho de classe. Diante das várias reprovações em português e matemática, a coordenadora pedagógica perguntou, com genuína curiosidade: “Mas você não estava usando aquela técnica da afetividade: trajando-se de palhaço que deu tão certo?”
Respirei fundo antes de responder. Queria dizer que meias não são técnica pedagógica. Que meus alunos precisavam de material didático adequado, de recuperação paralela, de professores menos sobrecarregados. Vejo nessa ênfase exagerada no afeto como “solução mágica” um perigo real: o de desresponsabilizar quem detém o poder de promover mudanças — o Estado. É como se disséssemos: “Ah, o importante é o professor amar, ter afeto, o resto se resolve.” E, com isso, esvaziamos o papel fundamental do currículo e reduzimos a atuação docente a um mero exercício emocional.
Em vez de expressar essas reflexões, apenas assenti com a cabeça e prometi tentar “mais estratégias lúdicas” no próximo período. A romantização do cotidiano escolar gera um peso injusto nos ombros do professor. Quando a narrativa oficial insiste que “basta amar” para ensinar, o docente que se dedica, mas enfrenta salas superlotadas e falta de recursos básicos, sente-se culpado por um fracasso que não é seu.
Voltei para casa pensando na Maria, que desenha como ninguém, mas não consegue interpretar um enunciado de matemática porque nunca desenvolveu habilidades básicas de leitura. No João, que falta às aulas para cuidar dos irmãos enquanto a mãe trabalha em dois empregos. E na estrutura escolar que desaba um pouco mais a cada chuva forte — no sentido literal e figurado.
A aprendizagem que realmente transforma exige mais do que vínculo e calor: exige método, conteúdo sólido, criticidade para ler o mundo. Lembrei do Paulo Freire que li na faculdade e que agora, após quinze anos em sala de aula, compreendo com clareza dolorosa: “Amar não basta.” É preciso mais que meias engraçadas ou um nariz de palhaço para construir a educação transformadora que sonhamos.
Não se trata, jamais, de negar o valor do amor e da empatia na relação pedagógica; trata-se de reconhecer seus limites diante de um sistema adoecido. Ensinar exige respeito aos saberes do aluno, sim, mas esse respeito inclui, fundamentalmente, oferecer a ele o acesso ao melhor da ciência, da técnica e da pedagogia disponíveis — e não apenas o calor humano, por mais vital que ele seja.
Amanhã usarei meias pretas comuns. Não porque desisti do afeto — jamais desistirei dele —, mas porque compreendi que meu amor por esses estudantes precisa se manifestar também na minha indignação, na minha exigência por melhores condições, no meu compromisso com um ensino rigoroso e libertador.
Ao final dessa reflexão, chego à mesma conclusão, dura e necessária: educar é, em sua essência mais profunda, um gesto político. Uma ação que se dá no campo das relações humanas, sim, e onde o afeto tem seu lugar, sem dúvida. Amar, sim — um amor que se traduz em cuidado, respeito e dedicação. Mas esse amor precisa vir acompanhado de estrutura, de reflexão crítica sobre a prática e, acima de tudo, de um compromisso coletivo — da sociedade, do Estado, de todos nós.
O afeto na educação não pode ser a cortina colorida que esconde as rachaduras na parede. Deve ser, antes, a força que nos move a derrubar paredes e construir novos espaços — espaços onde nossas crianças tenham o direito não apenas ao sorriso de um professor bem-intencionado, mas a todo o conhecimento e estrutura que merecem.
As meias coloridas continuam na minha gaveta. Talvez eu volte a usá-las algum dia. Mas agora sei que, se o fizer, será apenas como complemento — nunca como substituto — de uma educação verdadeiramente libertadora. Que não nos contentemos com meias coloridas e narizes de palhaço como única resposta. A estrutura da casa precisa de alicerces sólidos, não apenas de cortinas bonitas na janela.
Como seu professor de Sociologia, minha crônica é um material riquíssimo para pensarmos as complexas relações entre o individual, o institucional e o estrutural na educação. Minha experiência com as meias coloridas nos leva a questionar visões simplistas e a olhar para as raízes sociais dos desafios educacionais. Com base nessas ideias, preparei 5 questões discursivas simples:
1. O texto aponta que o afeto e a ação individual do professor (como usar meias coloridas) não resolvem problemas como falta de material, salas superlotadas e alunos com fome. Como a Sociologia explica que os problemas da educação estão frequentemente ligados a questões estruturais e socioeconômicas mais amplas, e não apenas à dedicação individual de professores?
2. A crônica critica a "romantização do afeto" por achar que ela "desresponsabiliza" o Estado e ignora a necessidade de "estrutura" e "compromisso coletivo". De que forma a Sociologia analisa a distribuição de responsabilidades pela educação na sociedade e por que é importante olhar para as políticas públicas e o investimento no sistema educacional como um todo?
3. O narrador conclui que "educar é, em sua essência mais profunda, um gesto político". O que significa essa afirmação para a Sociologia? Como a educação pode ser vista como um campo de disputa e de busca por transformações sociais, e não apenas um processo neutro de transmissão de conhecimento?
4. O texto menciona que a ênfase excessiva no afeto pode gerar "culpa" nos professores diante de problemas que não conseguem resolver sozinhos. Como a Sociologia estuda as pressões e os dilemas éticos e emocionais enfrentados por profissionais (como os professores) que atuam em instituições com recursos limitados e desafios sociais complexos?
5. A crônica defende que a aprendizagem de verdade exige "método, conteúdo sólido, criticidade", além de "vínculo e calor". Como a Sociologia da Educação compreende os diferentes elementos necessários para uma educação de qualidade, e por que é importante considerar tanto os aspectos relacionais quanto os curriculares e estruturais?
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