Hoje me senti como O Maior Abandonado, da canção de Cazuza, buscando alguém em quem pudesse me apoiar. Como alternativa, encontro-me à deriva — talvez seja conveniente dizer isso, pois ainda tento me adequar a uma realidade instável, onde regras e condições mudam o tempo todo, quase como o final de cada dia na escola. "Migalhas dormidas do teu pão / Raspas e restos / Me interessam / Pequenas porções de ilusão / Mentiras sinceras me interessam..." Esses versos exprimem meu estado: aceito migalhas porque a fome existencial cobra qualquer alimento, mesmo quando nasce da mentira.
Durante a quarentena, perdi fragmentos de mim mesmo. Às vezes penso que precisaria de outra quarentena para me reorganizar. A vida, então, parece uma viagem circular, confusa, que não aponta destino algum. Não enxergo opções — ou talvez me falte a capacidade de saber o que fazer com elas. Sinto-me isolado; meus movimentos parecem estéreis, incapazes de gerar avanço, seja no campo profissional, nos relacionamentos ou nos meus próprios valores. Pergunto-me se essa estagnação vem da minha dificuldade de prever aonde cada escolha me levará. Desejo ser desencorajado da inutilidade. Minha inércia mental enfraquece até minha comunicação, especialmente no pós-pandemia, quando passo a ser alvo de julgamentos moldados pela emoção alheia. Carrego um misto de medo e curiosidade. Ainda assim, é essa fragilidade que me mantém aberto a ouvir diferentes pontos de vista — sou, à minha maneira, um filósofo da vida. Nada é perda de tempo; tudo se transforma em aprendizagem.
Sempre renunciei a algo para conquistar algo melhor. Deixei os prazeres e o descanso das noites de sábado para preparar boas aulas. Troquei a distração fácil da televisão pelo estudo. Afastei-me de amigos que ocupavam minhas horas, para alimentar a alma com o silêncio necessário da solidão. Também me distanciei de familiares que, por mais que ainda acreditassem em mim, já não caminhavam na mesma direção. Recusei empregos financeiramente mais vantajosos para ser um bom professor. E por isso afirmo: abandonei porque deixaram de ser interessantes. Eram vínculos vazios, sem verdadeira amizade.
Mas a vida é cíclica. Quando precisarem de mim, eles voltarão — os prazeres, as diversões, os amigos, as farras, a família. E, inevitavelmente, eu também os procurarei outra vez, embora desde já lhes assegure: nada disso será para sempre. Quem abandona um amigo já havia rompido o laço antes. A troca de posições também nos oferece conhecimento. E eu, o maior abandonado, sigo aprendendo.
-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/
1. Crise de Identidade e o Conceito de Anomia
O narrador se sente o "Maior Abandonado" e está "perdido" em uma situação onde as regras e condições mudam sempre, sentindo que a vida é uma "viagem circular, confusa, que não me leva a lugar algum". Defina o conceito sociológico de Anomia (Durkheim) e explique como essa sensação de perda de referências e de propósito na vida do professor se relaciona com a crise de identidade na sociedade contemporânea (ou "modernidade líquida").
2. A "Fome Existencial" e a Aceitação de "Migalhas"
O uso dos versos de Cazuza ("Migalhas dormidas do teu pão... Mentiras sinceras me interessam...") é justificado pela "fome existencial" do autor, que o leva a aceitar "qualquer alimento, mesmo que mentiroso". Discuta como essa aceitação de "migalhas" e "mentiras sinceras" reflete a dificuldade de estabelecer vínculos sociais autênticos e profundos. O que a "fome existencial" revela sobre a carência de sentido e pertencimento que o indivíduo sente na sociedade atual?
3. Renúncias e Investimento no Capital Cultural
O professor lista diversas renúncias (prazeres, tempo livre, amizades, empregos melhores) para se dedicar à docência e "alimentar a alma com o silêncio da solidão". Ele afirma que abandonou esses vínculos porque "deixaram de ser interessantes". Analise essa série de renúncias como um investimento no Capital Cultural (Bourdieu) e na construção da identidade profissional e intelectual. Qual o custo social e emocional de trocar a convivência imediata por um valor pessoal ou intelectual percebido como superior?
4. Relações Líquidas e a Substituibilidade dos Vínculos
O texto aborda o caráter cíclico das relações, onde ele abandona os amigos e prevê que eles voltarão a procurá-lo quando precisarem, e ele fará o mesmo, mas "não será para sempre". Utilizando o conceito de Modernidade Líquida (Bauman), discuta como essa visão de substituibilidade e de transitoriedade dos vínculos se manifesta na vida do narrador. Como a crença de que "Quem abandona o amigo já quebrou a amizade antes" justifica a fragilidade dessas relações?
5. Inércia Mental e Vulnerabilidade ao Julgamento Social
O narrador menciona que sua "inércia mental enfraquece minha capacidade comunicativa" e o submete a "julgamentos motivados pela emoção alheia" no pós-pandemia. Relacione a inércia mental (crise interna) com a vulnerabilidade ao julgamento social. De que forma a dificuldade em se comunicar de forma assertiva torna o indivíduo mais suscetível à classificação e estigma impostos pelos outros, e como a fragilidade pode, paradoxalmente, abrir o indivíduo a "diferentes pontos de vista"?