"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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terça-feira, 30 de junho de 2009

A (Lei)tura ex...amin(ativa)



Crônica

A (LEI)TURA EX...AMIN(ATIVA)

terça-feira, 30 de junho de 2009
Claudeci Ferreira de Andrade

         Escrevi, com muito esmero, a crônica: “Gramática é sério”, com o propósito sublime de incluí-la num projeto de livro que estou preparando para ser publicado. Estava ansioso que alguém a lesse para eu verificar a reação desse alguém à leitura: aprovação ou reprovação; comentários positivos e negativos. Assim, procedo com todos os meus textos, só dou por definidos depois de submetidos a várias leituras probatórias de pelo menos três pessoas diferentes. Sou humilde o suficiente para aceitar a possibilidade de melhora. Aliás, uso as observações para enriquecer meus trabalhos. Então, forneci uma cópia da tal crônica para a chefe do departamento em que trabalhei (projetos da SME). A sala estava pouco movimentada, assim, achei ser aquela a hora certa. Ela fitou a página por quatro minutos infrutíferos, estava paralisada com a folha diante dos olhos, depois simplesmente a largou em cima da mesa, junto com uma papelada danada, e saiu dizendo:
          — Tenho que ler mais uma vez para lhe falar alguma coisa sobre o texto.
           Foi ela virar as costas, e em nome do zelo, recolhi aquela cópia preciosa do meio daquela papelada, como um garimpeiro limpando suas pepitas. De repente, passou um vulto na janela, reacenderam minhas esperanças, corri até a porta para ver, era a colega da sala ao lado: departamento pedagógico. Chamei-a, pedi que lesse a crônica, ainda naquela tarde, para comentar comigo. Foi rápido, menos de dez minutos, ela retorna à sala de projetos, assenta-se à minha frente e com um ar de suspense, fez caras e bicos. Eu estava apreensivo, mas aguardei em silêncio até que ela me dissesse alguma coisa; finalmente:
          — Olha, a crônica está muito boa, gostei muito! Só esse final que poderia ser mudado, pode desagradar alguns políticos.
          Levantou-se e saiu. Não tive nenhum argumento iminente! Naquele instante, ela fez referência apenas ao óbvio! Então refleti pelo resto de tarde e parte da noite: Como gostaria que meu leitor tivesse modos tão ampliados de ler para realizar leituras mais extensivas, de forma que possa estabelecer vínculos cada vez mais estreitos entre o texto e outros textos, construindo referências sobre o funcionamento da literatura e entre esta e o conjunto cultural! Ou estou exigindo demais?
           Este assunto é muito sério! Para você vê, ontem havia deixado um rascunho desta história que estou lhe narrando agora, em cima de minha escrivaninha, com o título: (Lei)tura Ex...amin(ativa). Minha esposa leu e perguntou:
          — Como seria essa leitura "examinativa"?
          Respondi que é o exame textual como prática daquele que sabe, de fato, atingir o pensamento alheio e visualizar com amplidão o objeto do texto, ou melhor, é um processo vivo de apuração tão profunda que vá até os elementos implícitos, estabelecendo relações entre o texto e o conhecimento prévio do leitor ou entre o texto e outros textos já lidos.
          — E como adquirir essa leitura? – perguntou-me novamente.
          Continuei respondendo que a leitura competente faz parte da luta pela dignidade humana, é mais uma responsabilidade que um privilégio, para ser mais específico, é uma técnica de leitura particular da criatividade de cada um. E que não é difícil constatar que as manifestações mais substanciosas vêm geralmente daqueles que se aprofundam no conhecimento criterioso da realidade abjetiva. É o que vemos na vida de trabalho e de esforço das pessoas comuns e/ou das bem dotadas, num extraordinário empenho que as leva à superação de si mesmas, ou em termos, dos seus próprios limites.
          Se elas me compreenderam, não sei, o importante é que nunca mais lerão esse texto como o fizeram, agora sempre em nível mais profundo.
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 19/08/2009
Código do texto: T1761917

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (autoria de Claudeci Ferreira de Andrade,http://claudeko-claudeko.blogspot.com). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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ALCANÇANDO AS VITÓRIAS (Dobradinha brasileira)




Crônica

ALCANÇANDO AS VITÓRIAS  (Dobradinha brasileira)

Claudeci Ferreira de Andrade

          Já era sabido que nosso Personagem Atleta tinha uma pergunta favorita nos locais de inscrição:

          — A Vitória vai correr?

           Tratava-se de uma cobiçada jovem. A princípio, ninguém entendia qual era sua preocupação, pois somava condições físicas superiores, por ter mais tempo de atletismo, e, também, porque nessa modalidade, mulher não disputa o mesmo prêmio com homem, mas ele não conseguia imprimir uma velocidade superior a da Vitória. Ele a tinha como uma espécie de puxadora. Mas, por que ele preferia ser puxado num correr tão lenta? E o pior, ele não reagia a nenhum incentivo dos espectadores, corria sempre bem concentrado. Em quê? Não sabemos, quero dizer, não sabíamos até que, de tão manso, no final de uma dessas “provas de rua”, foi flagrado numa fotografia, na qual apareciam o Personagem Atleta e a Vitória; pela disposição das imagens, percebeu-se claramente que ele não fora convidado para posar, estava um pouco desajeitado, porém seu olhar estava bem direcionado nas partes inferiores da moça. Agora as peças do quebra-cabeça começaram a se organizar. É verdade, ela corre sempre com esse shortinho de lycra rosa, curtinho! Desse jeito, ele nem precisava de muita imaginação para ficar preso por alguns momentos de devaneios. Ainda, passando a fotografia de mão em mão e em meio comentários maldosos, alguém concebeu uma ideia brilhante para ajudar o Personagem Atleta, era um teste de atração fatal.

          — Mas, que ideia brilhante é esta? — perguntou um dos que ali estavam em meio às gargalhadas.

           O outro explicou o plano que era convidá-la, com os mesmos trajes, para na próxima competição, fazer o percurso no "carro madrinha". Assim o fizemos, e ela aceitou, nem precisou muito dinheiro! O carro foi preparado de forma que ela ficasse bem exposta como quem ia apontando o caminho. Estava com o pé direito enfaixado para dissimular, ou melhor, adotava um comportamento de fachada. É chegada a hora, e o carro “isca” estava diante do pelotão pronto para a largada. Quem estava bem na frente, logo atrás do carro isca, era o Personagem Atleta! Parecia-nos sedento para mordê-la.

          Foi dada a largada, para a prova de 10 km, que contava com a participação de 400 atletas. Era o aniversário de uma das cidades satélite de Goiânia. Por ser feriado, o beirado de todo percurso estava repleto de muitas pessoas. Todos os demais atletas tinham motivação suficiente para fazer uma boa corrida. Porém, o nosso Personagem Atleta tinha motivação extra. Depois de alguns minutos, ele foi visto no km 5 de boca aberta, babando, todavia liderando a prova, pois o carro o puxava e controlava a sua velocidade, de maneira alguma ele queria perder o objeto de vista. E com essa mesma obsessão, tivemos de aplaudi-lo! Ganhou uma competição pela primeira vez. Campeão! A Vitória e a vitória foram conquistadas!
Como ajudar alguém alcançar a vitória quando esse alguém só quer a Vitória?
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 18/08/2009
Código do texto: T1760423


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CONFISSÃO DE UM ANJO (A consequência do pecado de um anjo da guarda)




Crônica

CONFISSÃO DE UM ANJO (A consequência do pecado de um anjo da guarda)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

          Acompanhei, ao departamento pedagógico da subsecretaria, o professor-tutor Ci. Vi Ci quando entrou para entregar um levantamento do número de alunos, de salas e a capacidade das mesmas, para o reordenamento de rede escolar. Ele procurou pela senhora Li, coordenadora do grupo de técnicos auxiliares das escolas dessa regional 
(dupla pedagógica, tutores), para receber as boas-vindas como um servo bom e fiel, mas a cara dela estava para poucos amigos. Ele, por sua vez, estava apreensivo, pois não sabia se tinha realizado a tarefa como deveria. Afinal, recebera ordem truncada, não fora um documento escrito (ofício). Contudo, sentou-se à mesa que a ilustre estava atendendo e quebrou o gelo.

          — Bom dia! Aqui estão as informações.

          — Onde estão os Gestores das escolas de sua responsabilidade?
– perguntou Li corpo a corpo.

          Ele respondeu exatamente o que ela esperava ouvir, pois não havia nenhum Gestor ali.

          — Foram convocados e até assinaram meu relatório de visitas, aqui está (eram três folhas abordando o objetivo das visitas do tutor), se não compareceram, é porque julgaram não ser tão importante assim!

          Vi Ci pôr à mesa três folhas de relatório devidamente assinadas, porque a coordenadora nem sequer estendeu a mão para pegá-las. Assim, depois de um minuto de embaraçoso silêncio, Li concorda:

          — Então, vamos fazer o que dá para fazer já que eles não vieram.

          Percebi que ela não estava disposta; pareceu-me estressada. Mas, organizou seus formulários e começou o interrogatório, parecia uma delegada, criando armadilhas para pegar o culpado.

          — Quais as medidas das salas? Por onde começa a numeração das salas? Quantas salas são? Que escola é essa? Quais turmas funcionam na sala nº. 1 nos três turnos? Blá blá blá...?

          De vez em quanto, entre um telefonema e outro, ela voltava à mesa para mais um raud. Senti-me na obrigação de abrir a contagem para salvar quem estava na “lona”, porém vi Ci, desta vez, levantar-se cambaleando para o golpe final.

          — Você não me pediu quais turmas funcionam em tais e tais salas, nos três turnos, mas posso telefonar para as escolas e providenciar essas informações que deseja, agora.

          Foi aí que ela esbofou, como um soco fatal, usando palavras numa organização não muito didática:

          — Eu estou cheia desses tutores e, se depender de mim, não vou escolher você para o próximo ano (2004).

          Eu não sabia verdadeiramente o que se passava na mente dela, porque o anjo seu era outro, contudo era uma “competição” desleal. Assim, justifiquei-me e roubei aquelas folhas de relatório.

          Durante o recesso de final de ano, vi Ci, por várias vezes, falando ao Pai, pedindo que eu o ajudasse na escolha: continuar na função de tutor ou voltar à regência em sala de aula. Impossível, não fui autorizado ajudá-lo! Cometi um pecado, por isso o Pai não me promoveu, agora sou o anjo dela.
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 17/08/2009
Código do texto: T1759365


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SER CRISTÃO OU "CRISTUDO", EIS A QUESTÃO! (O homem de palavra fácil e personalidade agradável raras vezes é homem de bem. — Confúcio )





Crônica

SER CRISTÃO OU "CRISTUDO", EIS A QUESTÃO! (O homem de palavra fácil e personalidade agradável raras vezes é homem de bem. — Confúcio )

Claudeci Ferreira de Andrade

           Era uma manhã comum, quando o chamado à sala da diretora transformou o corredor em um caminho interminável. Cada passo ressoava como um tambor em minha mente, prenunciando a repreensão que eu sabia que viria. Assim que me sentei, a porta se abriu e um homem de aspecto distinto entrou, empunhando uma Bíblia. Tive a impressão de que estavam combinados.
           — "Eu sou o pastor fulano de tal" — ele começou, — "da igreja aqui perto. Minha filha [a fulana], estuda neste colégio há três anos. Ela tem apenas dezesseis anos e já é funcionária pública no Programa Jovem Cidadão. Cursa o primeiro ano do Ensino Médio no turno matutino; esta semana, ela faltou, por motivo de força maior."
            Ele fez uma pausa, como se estivesse reunindo forças para o que viria a seguir. — "Estou aqui para denunciar o professor dela que a reprovou no ano passado. Agora ele anda dizendo umas coisas esquisitas que, acredito, vai reprová-la de novo. Ele disse, em sala de aula, que vai trabalhar para desenvolver as competências dos alunos. Então, ele está chamando minha filha de incompetente?" —Sua voz tremia de indignação. — "Ele falou que adota a filosofia educacional cujo centro é o aluno. Nisso também, eu queria saber se ele não dá importância à matéria de estudo, e as outras coisas? Minha filha falou que ele leu um texto na sala, afirmando que o homem nasce bom, e a sociedade o corrompe. Isso é antibíblico, absurdo!"
           Ele continuou, cada palavra sua estava carregada de emoção: — "A Bíblia ensina que desde a transgressão de Adão, as crianças nascem com uma tendência para o mal, que se fortalece, ainda mais, com o passar dos tempos. Em desafio a isso, cremos ser possível converter esta tendência para o bem, até a perfeição, somente quando o indivíduo aceita Jesus."
            Ele fez uma rápida pausa, olhando para a diretora. — "Uma educação que não preencha as necessidades e ajude o homem, tão dessemelhante de Deus, a cumprir o propósito para o qual foi destinado [amar, servir a Deus e a seu semelhante] não tem razão de ser. Ele também fica cantando as alunas com elogios, o incrível é que nenhuma delas quis testemunhar contra ele, deve ter alguma coisa por trás disso! Senhora gestora, estou fazendo esta denúncia não só por minha filha, mas também pelos outros. Ouvi dizer que ele é professor de Língua Portuguesa e fala muito errado, besteira até, na sala. Será que ele não sabe, a língua é um dom Divino que precisa ser trabalhado para promover o bem, pois além de expressar as ideias e os pensamentos, forma a consciência? Ele deve ensinar que cada um tem de prestar conta de cada palavra emitida. Também em uma outra aula, ele expôs um cartaz contendo os órgãos sexuais e falou de camisinha, isso é papel da família; ensinou para minha filha que o homem hoje é resultado do desenvolvimento evolutivo das associações humanas, com essas ideias do evolucionismo, extrapolou a vontade de Deus. Sabe, para mim, o aluno deveria aprender que as normas de seu ambiente deveriam ser aprovadas à luz da Palavra de Deus e que a instrução ideal provém quando se combina o natural com o sobrenatural. Será que a senhora diretora não conhece a extrema importância de um professor para a concretude de uma educação ideal! Pois, ninguém subestime a influência extraordinária que o bom professor exerce sobre a mente dos alunos. Por isso, mudanças profundas terão que acontecer aqui ou, então, eu vou à Secretaria de Educação Estadual, pedir um professor que possua ideais nobres, instintos generosos e normas éticas elevadas para que minha filha manifeste características tais. Sou membro do Conselho Escolar e tenho este direito."
            O pai saiu apressado sem, nem mesmo, ouvir o que eu tinha para lhe dizer e deixou-me a visão de que a escola é a "prostituta da sociedade". Depois, a gestora confirmou minhas impressões dizendo: — "Eu acho que ele estava falando de você! Não preciso lhe dizer mais nada."
           Ela aformoseou de boca torta um sorriso cínico e baixou a cabeça.

Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 16/08/2009
Código do texto: T1756883

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GRAMÁTICA É SÉRIO (O alfabetizado é escravo e o analfabeto é miserável e o semianalfabeto tolo)




Crônica

GRAMÁTICA É SÉRIO (O alfabetizado é escravo e o analfabeto é misirável e o semianalfabeto tolo)

terça-feira, 30 de junho de 2009
Claudeci Ferreira de Andrade

          Era de costume, a professora pedagoga de formação parcelada, como "boa profissional" que era, sempre chegava mais cedo para escrever os recados da semana no quadro de avisos da sala dos professores. Apesar de serem recados úteis, ninguém os lia; um ou outro passava apenas os olhos e ria porque, quase sempre, estavam subscritos: à direção. Planejei usar, como desculpa, a crase mal empregada e dizer que o recado não era para mim, mas para a direção. Achei que os outros pensavam o mesmo. De tão cansada e desestimulada por não vê nada, do planejado acontecendo, ela então foi ao extremo quando, numa segunda-feira, ao me aproximar para ler os anúncios daquela semana, deparei-me com um forte apelo, em letras garrafais, colocado na parte superior do quadro, bem destacado: “LEIÃO”. Foi em um instante, enquanto fui ao bebedouro dos alunos tomar um copo d’água, que quando retornei, logo aquele quadro de avisos chamou-me a atenção novamente, agora com mais força. Um colega havia interpretado o então atrevido apelo, com uma boa pitada de humor, usando uma conjugação verbal um tanto estranha: “Se não puder leiar então leiam”. Disseram-me que a frase foi arte do professor Joaquim. Eu já tinha visto a conjugação do verbo Xerocar e, mais artisticamente, eu Tvjo que significa: ver televisão na primeira pessoa do presente do indicativo, mas naquele momento, tive que refletir um pouco mais sobre aquela locução verbal numa espécie de futuro do subjuntivo: “...puder leiar...”! Porém, para chegar alguma conclusão, precisei pensar em outra direção, não gramaticalmente. Questionei, para mim mesmo, a qualidade da formação acadêmica do profissional da educação, ou melhor, questionei minha qualidade profissional. Ao sair da sala dos professores, perguntei ao professor coordenador de turno Joaquim: Por que um bom número de profissionais da educação pública mantém seus filhos nas escolas particulares? Você não acha incoerente? Eu queria saber se esse comportamento tinha a ver com a qualidade de ensino público.
          — Eu colocaria minha filha para estudar numa escola pública sem receio algum! E você Rapelle?— pergunta ele para a coordenadora pedagógica em questão, na busca de apoio.
          — Meus filhos estudam em uma escola municipal e minha conclusão final é: não existe escola ruim e/ou professor ruim, mas, aluno ruim.
          Então me perguntei novamente: E o que é aluno ruim? Fui resmungando até a sala em que eu ia ministrar minha primeira aula daquela noite. Era uma turma de 8a série que tinha aluno cujo seu próprio nome não sabia escrever corretamente. Nessa turma, propus-me, com a ajuda da coordenadora pedagógica, ensinar os tipos de redação; no final do mês, então, pedi um texto dissertativo para somar nota àquele primeiro bimestre. Investi muito esforço e paciência para corrigir, folha por folha, os textos que me entregaram.
          No dia seguinte, ao devolvê-los corrigidos para que eles tomassem consciência das deficiências textuais, fui coroado com um abaixo assinado, contendo muitas assinaturas, reprovando-me como professor deles. Pelas conversas informais no pátio e pelas confidências até pensava que tinha alguns bons estudantes, ali! Fui traído!
          Passaram-se os dias; não pude me esquecer daquele dia, no qual, bem intencionado, havia decidido ensiná-los melhor, motivado pela reflexão feita sobre os erros ortográficos da professora coordenadora, responsável pelos os anúncios para os professores. E então, me perguntei quem era o ruim: eu, ou a escola, ou o aluno?
          Hoje depois de seis meses, retornei àquela escola para rever os amigos que ali deixei. O quadro de funcionários já não é o mesmo, mas o professor Joaquim continua lá com o mesmo espírito de humor, agora está lecionando matemática, contudo me contou um fato interessante, pareceu-me que ainda se lembrava da teoria de Rapelle: “... ruim é o aluno”.
           — Professor, tenho uma novidade para lhe contar, — disse-me ele entusiasmado — este ano vieram duas moças bonitas do colégio vizinho, ambas as moças acabaram de concluir o terceiro ano do Ensino Médio, magistério, foram colegas na mesma sala: uma veio para assistir aulas de reforço na 8a série porque se sentia fraca; a outra veio lecionar matemática para a mesma 8a série porque se achava muito forte.
          Não me convenceu. Ele, no final, se contradisse sem sentir. Já na saída, depois de termos cruzado com um senhor distinto.
          — Você viu esse senhor educado que passou aqui agora por nós! — disse Joaquim — É o pai da jovem professora de matemática da 8a série, minha colega. Ele é um político muito influente na cidade e consegue muitas coisas para nossa escola!
          Lamento pela evidente conclusão que o alfabetizado é escravo e o analfabeto é miserável e o semianalfabeto tolo.
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 15/08/2009
Código do texto: T1755025

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MEU NOME, MINHA HONRA (O cara tinha o meu próprio nome!)




Crônica

MEU NOME, MINHA HONRA (O cara tinha o meu próprio nome!)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

           Em nome da beleza, faz-se de tudo até passar fome! Porém, existem pessoas que pensam que é “bonito ser feio” e se valem de seus traços naturais para tirar proveito em algumas situações da vida. Como se não bastasse sua feiura tridimensional, um determinado sujeito levantou-se da cadeira de espera, com um ar ríspido e nervoso, usando passadas largas e pisadas fortes, dirigiu-se ao balcão da clínica que estávamos há horas e perguntou à moça recepcionista:
          — Que hora vou ser atendido?
          — Já lhe falei, – disse a moça enfadadamente – o atendimento aqui é por ordem de chegada.
          — Pois é por isso mesmo, – retrucou ele – por ordem de minha “chegada”, pois mudo o critério de atendimento, agora é por grau de beleza, não vê que sou o mais bonito aqui! (risos).
           — Eu falei de chegada e não de sua “chegada” – brincou a moça, jogando com as palavras, mas ele não estava para brincadeira.
          Foi aí que olhei mais atentamente para o sujeito. Queria ver se algum traço, daquele que se dizia lindo, se assemelhava com algo em mim, queria me sentir bem as suas custas.  Mas que 
figura mal traçada! Olhei seus cabelos lambidos, nada! Sua cara avolumada, nada! Suas roupas mascadas, nada! Enfim, seu aspecto pipa, nada! Era mesmo desalinhado de cima a baixo! Desejei que ele se virasse de perfil, mais uma vez, para que eu pudesse confirmar minha estética superior, esguia. Todavia, o homem apesar de muito querer ser atendido rapidamente, não discutiu mais e fez finca-pé para sair, quando a moça esbofou em um grito:
            — Espere, seu Claudeci, nós vamos atendê-lo, agora é sua vez.
           Mexi-me na cadeira novamente para aquela direção, pois ouvi meu nome, a palavra mais doce que meus ouvidos já provaram, porém foi difícil digerir. Ele voltou ao balcão com rapidez, enquanto eu conferia seu andar gravemente cambaleante, porque puxava da perna direita. O cara tinha o meu próprio nome! Então comecei refletir melhor, como um artesão diante de uma porção de massa de modelar disforme, querendo construir uma obra perfeita. Agora era uma questão de honra ao nome. De repente um raio de luz convenceu-me; é verdade, o nome Claudeci tem o mesmo morfema lexical de Claudicar, que significa manquejar, por isso, este nome é mais dele que meu! Assim, nessa introspecção, esforcei-me para me desvencilha totalmente daquela figura mal educada, porém não pudia, uma força moral nos unia. E agora já consigo ver que seus olhos tinham o formato dos meus! Seus sapatos eram tão grandes quanto os meus! E não é que ele pisava um pouco para fora como faço quando caminho! O médico dele era exatamente o meu médico! O seu problema deveria ser semelhante ao meu! Ele demorou ali, ao meu alcance visual, por apenas mais dois minutos, mas o suficiente para eu perceber, também, que a sua camisa era do mesmo vermelho que a minha. Agora eu como um artista comecei a trabalhar sua própria imagem, e meu olhar salvador restaurou-me também a alma, porque já admitia sua lógica. Ele tinha razão quando disse que era o mais bonito, pois estava me elogiando também, por extensão. O que não entendi até hoje, é por que fui atendido só depois dele se cheguei primeiro, e o atendimento era por ordem de chegada?! Tudo se acomoda a um ponto de vista cativo.
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 14/08/2009
Código do texto: T1754328


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A BABILÔNIA DE BRANCO (O pecado justificado)




Crônica

A BABILÔNIA DE BRANCO (O pecado justificado)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

          Por que está assim impecável, toda no linho branco?!
          — Hoje sou a pregadora oficial em minha igreja, é santa ceia! Não estou bem assim?
          Claro, é que a última vez que vi alguém todo vestido de linho branco, fiquei impressionado, esse não poderia ser uma pessoa comum porque não era Réveillon; talvez um fantasma! Porque de longe me parecia muito estranho, mas era meio-dia, na porta de um dos restaurantes mais movimentados de Goiânia! O que um fantasma faria ali em pé, escorado no portal, olhando para a rua? Seria um pagodeiro! Não, pagodeiro geralmente é negro, ele era loiro de olhos claros!
          À medida que fui me aproximando, reconsiderei, pode ser um Anjo! Por que não? Hoje, nos tempos finais, os Anjos visitam nosso meio! Ou não é assim que diz a Bíblia? Mas, as asas que vi eram apenas os reflexos da luz da porta desajustada. Por um instante, subiu-me às narinas um cheiro de incenso, então, agora me pareceu um pai-de-santo! Não, não podia ser, era muito jovem para isso! O cheiro vinha do detergente da lavanderia ao lado, foi fácil descobrir. Um garçom? Também não seria, pois eles não gostam de sair à rua uniformizados! Era um marinheiro que havia deixado o quepe na mesa do almoço, enquanto dava uma olhadinha aqui fora? Não, não tinha nenhuma divisa nos ombros! Eu vi quando se virou para sair. Então, desceu em direção ao açougue, do mesmo lado da rua, um pouco abaixo, mas, também, não era açougueiro porque ele vestia linho, e os seus sapatos estavam polidos! Na outra quadra, do outro lado da rua, avistei a enfermaria do Hospital São Lucas, que ficava nos fundos, desta vez, pensei que poderia ser um enfermeiro ou médico, as chances diminuíram quando levei em conta sua maleta preta na mão direita e óculos pretos no rosto, e, por último, também não entrou lá. Ele tirou do bolso da camisa um cigarro e continuou descendo a rua fumando. Não, um agente de saúde fumante não é coerente! Lembrei-me que os cabeleireiros também usam branco, porém não era o caso aqui, apesar do homem ter uns movimentos bastante delicados, ele era alto.
          E agora?! Diminuiu os passos, eu já estava a quase três metros atrás dele, quando olhou para mim, tentei disfarçar, olhando para baixo, todavia entendi que ele, apenas, queria se certificar que não estava sendo observado, nada percebendo, entrou rapidamente em uma porta de vaivém e desapareceu.
          Entretanto, para mim, a identificação daquele homem seria uma confirmação que o branco significa pureza e transmite paz, podendo o uniforme ser coerente com a função do indivíduo. Sentei-me em um banco da praça, de onde pudesse ver quem entrava e saia daquela porta que não parava de abanar. O local era um motel com placa de hotel, isto é, um lugar de encontros amorosos camuflados. Entravam e saiam constantemente pessoas acompanhadas. Por que o homem de branco entrou sozinho e até agora ninguém saiu sozinho?
          Às quinze horas, duas horas depois, quando já me preparava para desistir, de repente, uma mulher alta, mais ou menos da mesma estatura do referido homem, saiu de lá, sozinha, usando óculos pretos no rosto e uma maleta preta na mão direita, e com a outra mão empurrava um carrinho de bebê, contudo, a moça trajava-se como babá de família rica, vestia-se de branco; mas era uma saia tão curta e transparente que julguei ser uma prostituta Moderna, ou melhor, como dizem na gíria delas, uma delivery girl! Seus cabelos curtinhos, como costumam usar os homens, completaram os itens que me confirmavam a impressão de que tudo aquilo não passava de um cuidadoso disfarce. Caminhou fazendo o percurso de volta, ela andou tão rapidamente que não tive condições de acompanhá-la de perto! Porém, consegui, de relance, avistá-la quando entrou no mesmo restaurante, ali se misturou às outras mulheres que se trajavam mais ou menos parecidas. A cor branca predominava.
          Agora, quando vejo alguém vestido de branco me pergunto: Quem era o homem de branco e qual a sua ocupação profissional? Neste mundo negro, ainda tem professor que veste jaleco branco para disfarçar o pó de giz, quem dera fosse a carapuça, pois o que é branco não é sujo.
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 13/08/2009
Código do texto: T1752519


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Processador de Dinheiro Estragado PDE




Texto

Processador de Dinheiro Estragado (PDE)

Claudeci Ferreira de Andrade

          Meu companheiro, trabalhei como líder da segunda repartição dessa empresa por dois anos, só este ano, fui remanejado para cuidar deste museu que é da própria empresa e ali está o primeiro objeto de estimação, quero mostrá-lo. Desde quando chegou aqui, tem provocado grande admiração! Não sei quem o inventou, só sei que veio do Paraguai. Colocaram-no para funcionar por apenas um ano, em caráter experimental. Era um empréstimo, depois iria para outro lugar. Foi segundo as estatísticas do ano retrasado que ele foi reprogramado. No final do ano passado, preparamos a despedida: uma festinha, depois, uma reunião de avaliação das multiutilidades do tal objeto, na verdade ele é um processador. A mesma mulher que o trouxera, pretendia levá-lo. Do discurso que fizera quando o processador chegou, lembro-me, como se fosse hoje, de quase todas as palavras! Ela levantou-se da plataforma devagarzinho e pensativa, adiantou-se e disse:

           — O Processador é um instrumento gerencial de planejamento estratégico(...). O objetivo do equipamento é aprimorar a qualidade do produto final(...). Com esta tralha, a empresa ganhará autonomia para projetar o seu futuro(...). O acessório auxiliará as repartições da empresa a se organizarem de maneira eficaz e eficiente, concentrará esforços e recursos para promover melhoria, resolver seus problemas e realizar suas aspirações(...).

           Era uma senhora de aparência comum e pacata, porém ríspida em suas palavras, um tanto grosseira! Ela conduziu aquela reunião com muita destreza na qual cada um dos dezesseis departamentais relatava sua melhor experiência de trabalho com o Processador, recebia a apreciação e sentava-se. Eu permaneci, até o fim, em pé: todas as cadeiras estavam ocupadas; o anexo da secretaria estava lotado. Foram confirmadas as reservas por telefone e, como eu não tinha telefone fixo, fiquei sabendo já em cima da hora, porque um colega levou-me a tal simpósio. Tudo aconteceu no final do expediente, sob o comando da senhora IRATELY. A reunião foi iniciada às 20h. Logo após a abertura com um texto de autoajuda, ela ordenou a primeira departamental EXHIBITIVE, da repartição central, para se levantar e falar. EXHIBITIVE disse:

           — No dia em que bati meu carro, fui avisada de que não teria conserto, então depositei no gavetão da Parafernália o retrovisor, as rodas, correias, faróis, enfim todas as partes que sobraram do carro. A Parafernália devolveu-me um micromecanismo com 10.000 partes, apelidei-o de estranho projeto. Meu principal prazer é divertir a quem vem me ver com minha atividade. Ligo um interruptor e entretenho os visitantes com o toque de campainhas, a cintilação de luzes e o giro de centenas de rodas.

           — Muito bem, – disse a apreciadora – embora seu estranho projeto produza intensa e complicada atividade, ele não realiza nada que seja de fato útil!

           Tudo estava correndo muito bem! Achei que aquele momento seria o melhor para eu me manifestar, preparei-me mentalmente, respirei fundo e soltei a voz, dizendo:

           — Atenção, meu nome é CONJURER, o Processador devolveu-me um canário em uma gaiola coberta de forma que impedisse a entrada de toda luz, não posso dizer o que depositei no gavetão, segredo profissional! Mas o canário se tornou uma ave canora excepcionalmente bela. Aí percebi que as trevas que o cercavam lhe habilitaram a concentrar-se melhor na música.

           — Certo! – arriscou a apreciadora – Fica entendido que quando você fecha os olhos para as virtudes, seus sentidos, especialmente o da audição, se tornam muito mais aguçados para apurar e espalhar “desvirtudes”!

           Em seguida, a responsável pela terceira Divisão, a unidade do interior, SANDY falou:

           — Eu depositei na Tralha um saco de areia, e ela me devolveu um copo cristalino, límpido, com o qual dei a beber ao presidente geral da empresa, depois o coloquei numa redoma protetora para lembrar a visita do ilustre à nossa Divisão.

           — Ok! – fala a apreciadora animosamente – Esse copo se tornou para você uma coisa muitíssima preciosa historicamente. Muitos irão ver, ali, o copo na redoma protetora de vidro e ouvir a história de como havia dado de beber ao presidente, mas ninguém mais beberá nele da mesma forma.

           Esse copo está também neste museu, ali na exposição de objetos pequenos. Depois irá vê-lo.

           Sim, voltando ao assunto referente ao processador, a responsável pela quarta Divisão MOLTEN, num momento de desespero, fez uma loucura, e queria contar sua experiência. Ficou, então, em pé e disse:

           — Joguei-me dentro do gavetão do equipamento como uma pedra bruta, áspera e sem brilho, logo fui sugada para uma fornalha de alta temperatura, mas não perdi a consciência, senti meu corpo diluir e escorrer para uma fôrma com minhas medidas, depois fui empurrada para fora, purificada e reluzente, onde, as coisas ao meu redor, refletiam-se em meu ser!

           — É!!! – persiste a apreciadora em mostrar seu modo de ver – No ponto de fundição, as escórias foram tiradas, mas foi mentalmente tão doloroso como fogo literal. Não vale a pena ser espelho para os outros, porque tira-se-lhes a originalidade, destrói-se-lhes a personalidade e perde-se-lhes o equilibro emocional.

            A quinta participante da reunião SINGE, meio tímida, criou coragem.

           — Eu precisei de algumas cópias de uma carta de demissão para alguns funcionários pobres de espírito, mas quando coloquei estêncil e álcool no gavetão do Instrumento, imediatamente, fui lambida por uma baforada de fogo, porém sem maiores danos, apenas queimou o original da carta e a intensidade da luz cegou-me completamente. Depois o próprio Instrumento encarregou-se de fazer o milagre de reabilitação. Quando dissipou a fumaceira, voltei a enxergar.

           — Quero dizer, – a apreciadora tartamudeou — você correu grande risco de perder a vida e, por cima, terá que conviver, em todos os lugares, com os pobres, até o fim! Não é proveitoso discriminá-los.

           Nessa hora, sentir-me um pouco amparado, não que eu seja pobre de espírito, mas, é que nunca se sabe o dia de amanhã, não é verdade? Então, a apreciadora virou-se para tomar um gole d’água, enquanto isso, a sexta participante FEEDER ajeitava seu rascunho. Ela veio de longe para a reunião, como o processador ficava em uma sala nos fundos da empresa e tinha hora certa para funcionar, ela entrou por trás. Aí começou falando assim:

 — Eu não queria ser vista almoçando naquele dia, por isso escondi-me num canto da sala onde o acessório fazia sombra. Foi quando o aspirador dele recolheu os restos de comida que deixei cair, mesmo antes que eu terminasse, então em seguida, ele fez um barulho estridente, e um cheiro de massa assando incidiou o ar no ambiente. Não demorou nada, o acessório começou lançar pão por todos os lados, encheu a sala. Foi uma multiplicação maravilhosa! A partir daí, as pessoas foram atraídas para a empresa.

 — Parece-me maravilhoso! – disse a apreciadora – Todos se fartarão de pão quentinho, mas virão à empresa só para comer. Não é um bom motivo.

           Continuemos, quando da última fileira falou, quem havia acabado de chegar: FANATICALLY! Representante da sétima Divisão, ela era muito dedicada à religião, talvez por isso se atrasou, e falou como se ainda estivesse na igreja:

           — Eu desafiei a máquina, dei cinco minutos para que ela me provasse a existência de Deus! Tirei o meu relógio do pulso e joguei-o no gavetão e esperei enquanto algumas pessoas nos arredores cochicharam: “Deus nunca permitirá que ela leve a melhor nessa questão!” Mas, à medida que os minutos iam passando, eu comecei a assevera que a crença em Deus não era nada mais que uma superstição. Decorrido os cinco minutos, eu disse exultantemente: Ó Máquina, ainda estou esperando! Não aconteceu nada! Apenas perdi meu tempo e meu relógio.

           — Boa justificativa para o seu atraso, – bradou a apreciadora – agora terá que comprar outro relógio e aprender a contar melhor o seu tempo.

           Meu companheiro, você está entendendo minha explicação?

           — Estou hipnotizado com a beleza de sua narrativa e só agora entendi que os fatos são multíplices!

           É verdade, nessa seqüência vou lhe falar agora da oitava Divisão. Era a unidade de divulgação e sua responsável HELPER queria saber notícias do filho da vizinha que tinha ido para os EE.UU.

           — Solicitei ao aparelho que ele fizesse contato com o rapaz ausente. Coloquei mais dinheiro no gavetão até a quantia de mil reais. Não me importava com o dinheiro que teria que gastar, só queria encontrar o jovem. O Aparelho levou duas horas para encontrá-lo e projetá-lo na parede caiada, o qual pôde responder as perguntas dos presentes através do vídeo-fone.

          A apreciadora disse:

           — Esta pode ser a solução para se encontrar as pessoas perdidas, mas não poderá encontrar o mundo perdido! Agora, encontre o meu mundo e o traga de volta para mim.

          Meu companheiro, parece-me está um pouco distraído? O melhor reservei para o final. A nona representante TRINKET, no mesmo ritual, disse:

          — Um dia eu me aproximei do gavetão sem nada para fazer e/ou dizer. Tirei da bolsa uma laranja, descasquei-a e comecei a chupá-la. O Material intrigado com minha indiferente atitude censurou-me, abrindo uma janelinha onde atrás de uma tela, estava uma luz piscando e com uma voz metálica, perguntou: “O que podes me oferecer”? Continuei chupando a laranja sem dizer nada, fiz de conta que não ouvi nada. Quando acabei meu disfarce, volvi-me para o Material e interroguei calmamente: diga-me, a laranja era doce ou azeda? “Como posso saber, tu quem chupaste a laranja, não eu!” Então não pode adivinhar? Continuei perguntando. “Não, transformar é tudo.” Assim respondeu ele e fechou a janelinha.

          A apreciadora não suportou aquele depoimento arrastado e interrompeu:

         — Minha amiga, nunca zombe de alguém por não ter provado alguma coisa.

          Assim, como os iguais se protegem, um depoimento atrai outro semelhante. Foi então, sem que ninguém solicitasse, a responsável da décima Divisão GREEDY manifestou, cabisbaixa e lentamente, sua experiência:

           — Eu trouxe da pesquisa de campo, um punhado de pedras, carreguei-as com muito sacrifício. Coloquei-as no gavetão e o petrecho devolveu-me diamantes, rubis e outras gemas. Agora estou de fato alegre e triste: alegre por haver carregado alguns seixos, e triste por não haver carregado quantidade maior!

           — Bom investimento! – fala a apreciadora – Os que se esvaziam inteiramente da ganância permanecerão alegres para sempre. Os que não puderam receber a plena medida da alegria, por causa da ganância em sua vida, ficaram tristes, muito tristes.

          Nessa hora, fez finca-pé e levantou-se como se tivesse pressionada. Era a LUKEWARM e antão disse:

           — Descobri que fortes e estranhas correntes de vento sopravam para dentro do Utensílio quando a temperatura caia e dele para fora quando a temperatura aumentava. Então coloquei barras de gelo no gavetão; antes mesmo que eu terminasse a tarefa, elas foram sugadas para dentro do mesmo. Com o funcionamento, pouco tempo depois, a temperatura subiu no interior do Utensílio, mas o gelo não derreteu e foram sopradas para fora curiosas estruturas de cristal de gelo em coloridos tão belos que vão desde o brilhante amarelo, até o rosa, o marrom e o azul escuro. Verdadeiras obras de arte!

           — Vento simboliza profeticamente poder, – considerou a apreciadora – e, ganha-se poder ou se perde, com a variação da temperatura do mercado, porém o homem é morno socialmente. Não há quem mude!

          Meu companheiro, vire-se para cá, veja, esse C.P.F era o documento da representante da décima segunda Divisão MORTGAGER, ela tinha muitos problemas com ele. Foi assim o que ela disse:

          — Eu me sentia presa com meu nome no SPC, pensei em fugir para um país onde tivesse liberdade de consumir, mas primeiro, busquei a ajuda do Mecanismo, depositei meu documento no gavetão, decorreram 24h, estava ansiosa para receber os primeiros resultados. Quando finalmente rompeu a alvorada na cidade, mesmo cansada aventurei-me a subir ao compartimento de cima e olhar para dentro do Mecanismo. O que vi não foi tranquilizador: os números estavam lutando desesperadamente e todos os que se encontrassem àquela posição correriam o risco de perder a vida, então tratei de descer rapidamente. Por volta das onze horas da manhã do outro dia, eu, prisioneira, fui convocada ao principal vestíbulo de nosso edifício, onde o ar era muito rarefeito, para um anúncio importante. O Mecanismo comunicava que eu estava livre, contudo, tecnicamente estivesse livre, levou ainda mais nove horas para que afinal, me encontrasse em poder de mãos amigas. E foram essas últimas horas que me requereram maior paciência.

          A apreciadora dá seu parecer:

          — Essa demora destinou-se a lhe ensinar a ter paciência, e o paciente não faz dívida.

          Já a NOSEY participou de modo diferente:

           — Eu me agachei – disse ela – diante da abertura inferior para ver como a Ferramenta se comportava. E se desse algumas cutucadinhas com um cabo de vassoura? Foi quando as rodas arrebataram-no em fração de segundo e me surrou sem piedade com centenas de pedaços de madeira que quando não acertavam em mim faziam buracos na parede.

           — Então esse dia foi um dia de vitória! – ironizou a apreciadora – A Ferramenta estava indicando apenas sua ineficiência.

           E digo, meu companheiro, que com a mesma formalidade de outras mais conservadoras, participou a representante da décima quarta Divisão LANGIVITE, dessa forma falou:

           — No meu plantão de guarda para cuidar da Engrenagem nas horas noturnas, levei uma rede, pois era fácil de conduzi-la. Armei-a em uma haste móvel da Engrenagem, a outra ponta a um gancho fixado na parede que estava no lado oposto. Assim que deitei, a haste disparou em movimentos de vaivém que impeliram a rede num balanço cada vez mais alto. Perto do auge de uma oscilação, a Engrenagem, sem razão aparente, empurrou-me para fora da rede. Fui arremessada pelo ar, mas em vez de cair, planei por sobre o corredor e pousei sobre o tórax e o abdômen sem sofrer o menor arranhão!

           Fala a apreciadora:

           — É, pular naquelas circunstâncias para uma mera apresentação, isso seria presunçoso. Eis a razão por que você não se machucou, enquanto outras pessoas normais ficariam gravemente feridas ou até perderiam a vida! Isto é tudo que precisamos saber para o momento.

           Para você vê, companheiro, uma coisa puxa a outra. PURETA levanta-se inspirada na fala anterior:

           — Fui à meia-noite para uma execução com o Estrupício, pois minha atitude tinha a ver com reputação. Tirei toda a minha roupa e coloquei-a no gavetão, pois reconhecia a decadência de minha aparência, que recomendava uma reforma total. Vi, pelos vidros das pequenas aberturas do corpo do Estrupício, uma substância informe que terminaria em novas peças de roupa. Logo que me troquei, meus hábitos, planos, sonhos e perspectivas mentais sofreram alterações. Meus pensamentos concentraram-se na nova roupagem. No começo só eu, depois meu marido e então meus costureiros ficaram inteirados de que eu estava com uma nova vestimenta. Dentro de algum tempo, outros ficarão sabendo desse fato sem que lhes seja contado. Com uma nova vestimenta, nunca mais mereci um minuto de solidão.

           — Quando se recebe uma roupagem nova, – fala a apreciadora – os hábitos, as aspirações, as atitudes tomam outra direção. Os pensamentos concentram-se na aparêcia, e à medida que o caráter continua a se desenvolver, outros ficam cientes do processo.

 Todos nós já estávamos estressados, mas ainda faltava a BLINDNESS, então às apalpadelas se locomoveu até o corredor da sala, preparando-se para a saída e disse:

           — Em uma das vezes em que vim de carro para trabalhar com a Estrovenga, quando eu estava dirigindo o automóvel em alta velocidade, algo penetrou nos meus olhos e por isso me apresentei diante dos receptores da Estrovenga onde tinha espelhos que eu pudesse ver melhor os meus olhos, como se me consultasse ao médico, e um médico idoso de cuja visão já estava em declínio, depois de alguns minutos de exame, recebi um esguicho de colírio nos olhos, sentir intensa dor cauterizante e gritei! Não vi mais nada. A última imagem gravada em minha memória visual foi a do meu próprio rosto. A investigação posterior revelou que a Estrovenga velha pegou, por engano, uma outra substância que não tencionava usar.

           Fecha a apreciadora:

           — Todo o cuidado com os olhos é pouco, – admitiu ela distraidamente – quer suas intenções fossem boas ou não, o fato é que você ficou totalmente cega.

           Meu companheiro, gostaria de poder lhe contar mais sobre o PDE, porém o expediente encerrou, volte sempre, o museu estará totalmente ao seu alcance.
Claudeko
Publicado no Recanto das Letras em 12/08/2009
Código do texto: T1749610

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