O CORONAVÍRUS VEIO DE DEUS ("Existe apenas um bem, o saber, e apenas um mal, a ignorância." — Sócrates)
Ontem, folheando meu diário de professor — aquele com anotações das aulas que ministrei por mais de uma década — deparei-me com uma reflexão antiga que, agora, em tempos de pandemia, ganhou contornos quase proféticos. Sorri com ironia. As páginas amareladas traziam os embates silenciosos que vivi no quadro negro da existência, muito antes de máscaras e álcool em gel se tornarem companheiros diários.
Era uma terça-feira de março quando entrei na sala do 2º ano para discutir Nietzsche e sua provocativa declaração sobre a morte de Deus. Mal posicionei meus livros sobre a mesa e lá estava Mateus, com sua Bíblia sublinhada e o semblante fechado, como quem aguardava o momento exato para o contra-ataque.
— "Professor, o senhor acredita em Deus?"
A pergunta, carregada como um fuzil, surgia sempre nas primeiras aulas. Era um ritual de demarcação de território, como animais que se preparam para o confronto.
"Estamos aqui para discutir filosofia, não minhas crenças pessoais", respondi diplomaticamente, como recomendava o manual invisível da laicidade escolar.
Era curioso: eu, bacharel em teologia e professor de filosofia, precisava navegar naquele mar minado com a cautela de quem transporta nitroglicerina. A ironia não me escapava. Conhecia mais sobre religião do que muitos daqueles jovens fervorosos, mas não podia expressar-me livremente, enquanto eles bradavam suas convicções como estandartes.
— "Mas a Bíblia diz que..." E assim começava o desfile de versículos memorados, recitados com a convicção de quem lança a última palavra sobre qualquer tema. O estudo crítico dava lugar ao dogma; a reflexão cedia espaço à repetição.
Observava, com certa melancolia, como aqueles mesmos alunos, tão veementes na defesa da fé, eram frequentemente os que menos se dedicavam aos estudos. Suas redações claudicavam em argumentação, seus trabalhos de pesquisa eram superficiais e suas notas refletiam mais fervor do que disciplina intelectual. Uma contradição curiosa: tão zelosos das palavras sagradas, tão negligentes com as palavras do conhecimento secular.
E o mais intrigante: aqueles que se autodenominavam "guardiões da moral" eram muitas vezes os primeiros a humilhar colegas, espalhar boatos e criar ambientes tóxicos nos corredores da escola. A compaixão, virtude central de qualquer religião digna desse nome, parecia ausente em seus atos, embora abundante em seus discursos.
Quantas vezes fui chamado à diretoria após uma aula sobre existencialismo ou teoria da evolução? Perdi a conta. "Professor, os pais do Mateus estão preocupados com o conteúdo das suas aulas", dizia o diretor, sem nunca ter assistido a uma delas. E assim minha reputação ganhava arranhões, não pelo que eu dizia, mas pelo que presumiam que eu pudesse dizer.
E então veio o silêncio. Aquele março de 2020, que se estendeu por meses, por anos. As salas vazias, os corredores silenciosos, a escola hibernando enquanto um vírus invisível reescrevia nossa história coletiva.
Foi nesse silêncio que comecei a refletir sobre os versos de Raul Seixas que tanto gostava de citar nas aulas: "Buliram muito com o planeta / E o planeta como um cachorro eu vejo / Se ele já não aguenta mais as pulgas / Se livra delas num sacolejo". A metáfora ganhou cores vívidas e assustadoras.
O mundo agora discutia se o vírus era castigo divino ou fenômeno natural, se representava purificação ou calamidade. Enquanto isso, na solidão do meu apartamento, eu observava como aquele microscópico pedaço de proteína havia conseguido o que anos de filosofia não conseguiram: silenciar as certezas absolutas.
Nas aulas online que se seguiram, notei uma mudança sutil. Os mesmos alunos que outrora ostentavam certezas agora faziam perguntas. O vírus, que tirava o fôlego dos corpos, parecia ter, paradoxalmente, devolvido o fôlego ao pensamento.
— "Professor, por que Deus permitiria isso?" — perguntou Mateus em uma videochamada, a Bíblia ainda ao seu lado, mas o tom já não era de desafio, e sim de genuína inquietação.
— "Talvez essa seja a pergunta mais honesta que podemos fazer" — respondi. — "E talvez a filosofia não exista para dar respostas, mas para nos ensinar a viver com as perguntas."
Não sei se foi o isolamento, a proximidade da morte ou simplesmente o tempo amadurecendo consciências, mas nossas discussões ganharam profundidade. A dúvida, antes vista como inimiga da fé, tornava-se sua companheira necessária. O questionamento deixava de ser ameaça para ser caminho.
Hoje, olhando para trás, para aqueles embates em sala de aula e para a transformação silenciosa que a pandemia operou, compreendo que talvez o "novo normal" não seja apenas sobre máscaras e distanciamento, mas sobre uma forma mais humilde de habitar nossas certezas.
Talvez Isaías 45:7 esteja certo ao dizer que Deus faz tanto a paz quanto o mal — não porque seja caprichoso, mas porque a vida é tecida de contrastes, e é no escuro que aprendemos a valorizar a luz.
O vírus, esse professor implacável, nos ensinou que nossas convicções mais sólidas podem ser dissolvidas pelo invisível. E que talvez a verdadeira sabedoria não esteja em ter todas as respostas, mas em aprender a viver com dignidade na presença das perguntas que nunca serão plenamente respondidas.
Fecho meu diário de professor, agora com novas anotações. A escola já não é a mesma. Eu não sou o mesmo. E, curiosamente, agradeço por isso.
Aqui estão 5 questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:
1. Laicidade e liberdade de expressão no ambiente escolar: O texto aborda a tensão entre a laicidade escolar e a liberdade de expressão dos alunos, especialmente em relação a questões religiosas. Como a sociologia pode analisar essa tensão e os desafios de conciliar diferentes visões de mundo no ambiente escolar?
2. O papel da religião na construção de identidades e conflitos: O texto mostra como a religião pode ser usada como instrumento de demarcação de território e conflito entre alunos e professores. Como a sociologia pode analisar o papel da religião na construção de identidades e na geração de conflitos no ambiente escolar e na sociedade em geral?
3. A relação entre fé, conhecimento e comportamento: O texto critica a contradição entre a veemência na defesa da fé e a negligência com o conhecimento secular, além da ausência de compaixão nos atos dos "guardiões da moral". Como a sociologia pode analisar a relação entre fé, conhecimento e comportamento, e como essa relação se manifesta no ambiente escolar?
4. O impacto da pandemia na relação entre fé e razão: O texto descreve como a pandemia transformou as certezas absolutas em perguntas, e como a dúvida se tornou companheira da fé. Como a sociologia pode analisar o impacto de eventos traumáticos, como a pandemia, na relação entre fé e razão e na busca por sentido?
5. O "novo normal" e a busca por humildade nas certezas: O texto conclui que o "novo normal" não é apenas sobre máscaras, mas sobre uma forma mais humilde de habitar as certezas. Como a sociologia pode analisar a construção social das certezas e a importância da humildade e do diálogo na construção de uma sociedade mais tolerante e plural?
Ontem, folheando meu diário de professor — aquele com anotações das aulas que ministrei por mais de uma década — deparei-me com uma reflexão antiga que, agora, em tempos de pandemia, ganhou contornos quase proféticos. Sorri com ironia. As páginas amareladas traziam os embates silenciosos que vivi no quadro negro da existência, muito antes de máscaras e álcool em gel se tornarem companheiros diários.
Era uma terça-feira de março quando entrei na sala do 2º ano para discutir Nietzsche e sua provocativa declaração sobre a morte de Deus. Mal posicionei meus livros sobre a mesa e lá estava Mateus, com sua Bíblia sublinhada e o semblante fechado, como quem aguardava o momento exato para o contra-ataque.
— "Professor, o senhor acredita em Deus?"
A pergunta, carregada como um fuzil, surgia sempre nas primeiras aulas. Era um ritual de demarcação de território, como animais que se preparam para o confronto.
"Estamos aqui para discutir filosofia, não minhas crenças pessoais", respondi diplomaticamente, como recomendava o manual invisível da laicidade escolar.
Era curioso: eu, bacharel em teologia e professor de filosofia, precisava navegar naquele mar minado com a cautela de quem transporta nitroglicerina. A ironia não me escapava. Conhecia mais sobre religião do que muitos daqueles jovens fervorosos, mas não podia expressar-me livremente, enquanto eles bradavam suas convicções como estandartes.
— "Mas a Bíblia diz que..." E assim começava o desfile de versículos memorados, recitados com a convicção de quem lança a última palavra sobre qualquer tema. O estudo crítico dava lugar ao dogma; a reflexão cedia espaço à repetição.
Observava, com certa melancolia, como aqueles mesmos alunos, tão veementes na defesa da fé, eram frequentemente os que menos se dedicavam aos estudos. Suas redações claudicavam em argumentação, seus trabalhos de pesquisa eram superficiais e suas notas refletiam mais fervor do que disciplina intelectual. Uma contradição curiosa: tão zelosos das palavras sagradas, tão negligentes com as palavras do conhecimento secular.
E o mais intrigante: aqueles que se autodenominavam "guardiões da moral" eram muitas vezes os primeiros a humilhar colegas, espalhar boatos e criar ambientes tóxicos nos corredores da escola. A compaixão, virtude central de qualquer religião digna desse nome, parecia ausente em seus atos, embora abundante em seus discursos.
Quantas vezes fui chamado à diretoria após uma aula sobre existencialismo ou teoria da evolução? Perdi a conta. "Professor, os pais do Mateus estão preocupados com o conteúdo das suas aulas", dizia o diretor, sem nunca ter assistido a uma delas. E assim minha reputação ganhava arranhões, não pelo que eu dizia, mas pelo que presumiam que eu pudesse dizer.
E então veio o silêncio. Aquele março de 2020, que se estendeu por meses, por anos. As salas vazias, os corredores silenciosos, a escola hibernando enquanto um vírus invisível reescrevia nossa história coletiva.
Foi nesse silêncio que comecei a refletir sobre os versos de Raul Seixas que tanto gostava de citar nas aulas: "Buliram muito com o planeta / E o planeta como um cachorro eu vejo / Se ele já não aguenta mais as pulgas / Se livra delas num sacolejo". A metáfora ganhou cores vívidas e assustadoras.
O mundo agora discutia se o vírus era castigo divino ou fenômeno natural, se representava purificação ou calamidade. Enquanto isso, na solidão do meu apartamento, eu observava como aquele microscópico pedaço de proteína havia conseguido o que anos de filosofia não conseguiram: silenciar as certezas absolutas.
Nas aulas online que se seguiram, notei uma mudança sutil. Os mesmos alunos que outrora ostentavam certezas agora faziam perguntas. O vírus, que tirava o fôlego dos corpos, parecia ter, paradoxalmente, devolvido o fôlego ao pensamento.
— "Professor, por que Deus permitiria isso?" — perguntou Mateus em uma videochamada, a Bíblia ainda ao seu lado, mas o tom já não era de desafio, e sim de genuína inquietação.
— "Talvez essa seja a pergunta mais honesta que podemos fazer" — respondi. — "E talvez a filosofia não exista para dar respostas, mas para nos ensinar a viver com as perguntas."
Não sei se foi o isolamento, a proximidade da morte ou simplesmente o tempo amadurecendo consciências, mas nossas discussões ganharam profundidade. A dúvida, antes vista como inimiga da fé, tornava-se sua companheira necessária. O questionamento deixava de ser ameaça para ser caminho.
Hoje, olhando para trás, para aqueles embates em sala de aula e para a transformação silenciosa que a pandemia operou, compreendo que talvez o "novo normal" não seja apenas sobre máscaras e distanciamento, mas sobre uma forma mais humilde de habitar nossas certezas.
Talvez Isaías 45:7 esteja certo ao dizer que Deus faz tanto a paz quanto o mal — não porque seja caprichoso, mas porque a vida é tecida de contrastes, e é no escuro que aprendemos a valorizar a luz.
O vírus, esse professor implacável, nos ensinou que nossas convicções mais sólidas podem ser dissolvidas pelo invisível. E que talvez a verdadeira sabedoria não esteja em ter todas as respostas, mas em aprender a viver com dignidade na presença das perguntas que nunca serão plenamente respondidas.
Fecho meu diário de professor, agora com novas anotações. A escola já não é a mesma. Eu não sou o mesmo. E, curiosamente, agradeço por isso.
Aqui estão 5 questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:
1. Laicidade e liberdade de expressão no ambiente escolar: O texto aborda a tensão entre a laicidade escolar e a liberdade de expressão dos alunos, especialmente em relação a questões religiosas. Como a sociologia pode analisar essa tensão e os desafios de conciliar diferentes visões de mundo no ambiente escolar?
2. O papel da religião na construção de identidades e conflitos: O texto mostra como a religião pode ser usada como instrumento de demarcação de território e conflito entre alunos e professores. Como a sociologia pode analisar o papel da religião na construção de identidades e na geração de conflitos no ambiente escolar e na sociedade em geral?
3. A relação entre fé, conhecimento e comportamento: O texto critica a contradição entre a veemência na defesa da fé e a negligência com o conhecimento secular, além da ausência de compaixão nos atos dos "guardiões da moral". Como a sociologia pode analisar a relação entre fé, conhecimento e comportamento, e como essa relação se manifesta no ambiente escolar?
4. O impacto da pandemia na relação entre fé e razão: O texto descreve como a pandemia transformou as certezas absolutas em perguntas, e como a dúvida se tornou companheira da fé. Como a sociologia pode analisar o impacto de eventos traumáticos, como a pandemia, na relação entre fé e razão e na busca por sentido?
5. O "novo normal" e a busca por humildade nas certezas: O texto conclui que o "novo normal" não é apenas sobre máscaras, mas sobre uma forma mais humilde de habitar as certezas. Como a sociologia pode analisar a construção social das certezas e a importância da humildade e do diálogo na construção de uma sociedade mais tolerante e plural?