CONVITE versus CONVOCAÇÃO ("Em nenhum cargo você encontrará na lista de deveres a prática do assédio moral, mas há quem pratique como sendo uma das atribuições inerentes a ele". — Ednete Franca)
Naquela tarde de quarta-feira, na escola municipal, enquanto organizava meus planos de aula, deparei-me com mais um daqueles comunicados no mural da sala dos professores. O papel timbrado, com sua fonte austera característica do imperativismo reinante, anunciava uma "capacitação imprescindível" no turno matutino. Suspirei profundamente, reconhecendo o peso daquele dilema tão familiar a nós, professores concursados, que dividimos nossa jornada de 60 horas aula semanais entre as redes municipal e estadual.
Há uma década, quando prestei os concursos, a possibilidade de trabalhar nas duas redes parecia a solução ideal para compor uma carga horária digna. Organizei minha vida profissional: manhãs no colégio estadual, tardes na escola municipal. O que ninguém nos advertiu é que seríamos eternamente divididos, como equilibristas em uma corda bamba administrativa, tendo que lidar com exigências muitas vezes incompatíveis.
"Professor, o senhor vai participar da capacitação?", perguntou-me Maria, a coordenadora, com aquele olhar que mesclava compreensão e constrangimento. A pergunta ecoou em minha mente, trazendo à tona uma questão ainda mais profunda: como uma organização que verdadeiramente respeita seus funcionários pode exigir que abandonemos um compromisso profissional em favor de outro, sem sequer apresentar a relevância do evento ou o currículo do palestrante?
O mais perturbador é o teor desses comunicados, sempre finalizados com aquela frase que soa como uma sentença: "É imprescindível a presença de todos. Aqueles professores que trabalham em outra rede no horário citado, favor trazer declaração." Uma exigência que revela a arrogância institucional, tratando nossa realidade profissional — legitimada pelos próprios sistemas de ensino — como uma inconveniência a ser tolerada mediante comprovação.
Folheando diários e corrigindo redações em minha mesa, reflito sobre a incongruência do sistema. Se aceitam professores para turnos independentes, por que não repetir eventos em horários alternados, contemplando todas as jornadas? Por que não consideram que somos profissionais comprometidos com ambas as redes, e não malabaristas de declarações? E mais: que obrigação teria o colégio estadual de fornecer uma declaração para justificar minha ausência em função de um evento de interesse particular da rede municipal?
A campainha toca, anunciando o início de mais uma aula. Guardo o comunicado na gaveta, junto com tantos outros semelhantes que já recebi, pensando em como esse ciclo de assédio institucional vai, pouco a pouco, corrompendo os princípios éticos que deveriam nortear a educação. Em sala, diante dos alunos, procuro ser apenas professor — não um funcionário dividido entre redes, não um colecionador de declarações.
Enquanto caminho pelos corredores, reflito que talvez seja hora de nós, educadores, ensinarmos também às nossas instituições uma lição fundamental: a de que respeito e bom senso deveriam ser prerrogativas básicas na gestão educacional, não moeda de troca em jogos administrativos. Pois uma educação construída sobre o assédio moral e irregularidades administrativas só pode resultar em uma deseducação que contradiz todos os valores éticos necessários ao verdadeiro progresso social.
No fim do dia, o que permanece é a certeza de que a educação se constrói com diálogo e respeito mútuo, não com imposições e declarações. E que nós, professores, merecemos ser tratados com a mesma dignidade que nos exigem transmitir em sala de aula, para que possamos, efetivamente, contribuir para uma educação transformadora e eticamente comprometida.
Questões Discursivas sobre o Texto
1. O texto descreve um dilema vivenciado por um professor que trabalha em duas redes de ensino. De que maneira esse dilema revela tensões e contradições na organização do sistema educacional brasileiro, especialmente no que se refere à gestão de recursos humanos e à valorização dos profissionais da educação?
2. A crônica destaca a frase presente no comunicado: "É imprescindível a presença de todos. Aqueles professores que trabalham em outra rede no horário citado, favor trazer declaração." Como essa frase pode ser interpretada à luz dos conceitos sociológicos de poder institucional e assédio moral no ambiente de trabalho? Discuta.
3. O professor questiona a falta de diálogo e a imposição de decisões unilaterais por parte da gestão escolar. Na sua opinião, como a ausência de diálogo e a imposição de decisões afetam o clima organizacional e a qualidade do trabalho docente? Utilize conceitos sociológicos para fundamentar sua resposta.
4. Em sua reflexão, o autor menciona a "corrosão dos princípios éticos" e a "deseducação" como resultados de um sistema que negligencia o respeito e o bom senso. De que maneira a sociologia compreende a relação entre ética, educação e progresso social? Explique, relacionando com o contexto apresentado no texto.
5. O texto conclui que "a educação se constrói com diálogo e respeito mútuo, não com imposições e declarações". Considerando essa afirmação e os desafios da contemporaneidade na educação, quais seriam, na sua perspectiva sociológica, os caminhos para promover uma gestão educacional mais humanizada e que efetivamente valorize os professores?
Naquela tarde de quarta-feira, na escola municipal, enquanto organizava meus planos de aula, deparei-me com mais um daqueles comunicados no mural da sala dos professores. O papel timbrado, com sua fonte austera característica do imperativismo reinante, anunciava uma "capacitação imprescindível" no turno matutino. Suspirei profundamente, reconhecendo o peso daquele dilema tão familiar a nós, professores concursados, que dividimos nossa jornada de 60 horas aula semanais entre as redes municipal e estadual.
Questões Discursivas sobre o Texto
1. O texto descreve um dilema vivenciado por um professor que trabalha em duas redes de ensino. De que maneira esse dilema revela tensões e contradições na organização do sistema educacional brasileiro, especialmente no que se refere à gestão de recursos humanos e à valorização dos profissionais da educação?
2. A crônica destaca a frase presente no comunicado: "É imprescindível a presença de todos. Aqueles professores que trabalham em outra rede no horário citado, favor trazer declaração." Como essa frase pode ser interpretada à luz dos conceitos sociológicos de poder institucional e assédio moral no ambiente de trabalho? Discuta.
3. O professor questiona a falta de diálogo e a imposição de decisões unilaterais por parte da gestão escolar. Na sua opinião, como a ausência de diálogo e a imposição de decisões afetam o clima organizacional e a qualidade do trabalho docente? Utilize conceitos sociológicos para fundamentar sua resposta.
4. Em sua reflexão, o autor menciona a "corrosão dos princípios éticos" e a "deseducação" como resultados de um sistema que negligencia o respeito e o bom senso. De que maneira a sociologia compreende a relação entre ética, educação e progresso social? Explique, relacionando com o contexto apresentado no texto.
5. O texto conclui que "a educação se constrói com diálogo e respeito mútuo, não com imposições e declarações". Considerando essa afirmação e os desafios da contemporaneidade na educação, quais seriam, na sua perspectiva sociológica, os caminhos para promover uma gestão educacional mais humanizada e que efetivamente valorize os professores?