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MINHAS PÉROLAS

segunda-feira, 7 de julho de 2025

A Romaria Incompleta ("A fé não é um refúgio da realidade, mas uma força para enfrentá-la." — Martin Luther King Jr.)

 



A Romaria Incompleta ("A fé não é um refúgio da realidade, mas uma força para enfrentá-la." — Martin Luther King Jr.)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Não era apenas mais uma caminhada. Era a romaria do Divino Pai Eterno — uma promessa que me impulsionava a cruzar vinte quilômetros a pé até a cidade de Trindade. No fundo, queria misturar fé e sorte, fazer minha parte no sacrifício e, quem sabe, receber de volta uma bênção nos jogos da vida. Levei comigo a esperança nas pernas e uma companheira de condução que, embora tivesse o mapa da cidade na cabeça, parecia carregar outros planos nos olhos.

A saída foi ainda sob a bênção da lua, brilhava no céu quase cheia, mas ainda sorridente como só ela consegue ser, isto é, quando há silêncio interior suficiente para percebê-la. A Via dos Romeiros já fervilhava de gente — famílias inteiras, devotos solitários, vendedores aos montes — e, a cada passo, parecia que uma nova multidão se somava atrás. Havia algo de bonito naquele caos: pessoas indo em busca de algo maior, mesmo que mal soubessem nomeá-lo.

O trajeto começou em Senador Canedo. Peguei o ônibus até Goiânia e, mesmo com o direito conquistado pela idade recém-chegada, enfrentei resistência para conseguir a passagem gratuita. A velhice, percebi, não basta por si só; é preciso saber reivindicá-la. Já na caminhada, veio a primeira graça da noite: em um ponto de apoio, fui recebido com leite quente com canela, café forte e pão macio (Centro de Apoio ao Romeiro). Minha companheira preferiu chá de erva-doce, talvez tentando acalmar a ansiedade que, mais tarde, se transformaria em pressa.

Mal cheguei à igreja, a primeira missa já estava terminando, e as portas abarrotadas de gente. Quis esperar pela próxima, às 5h30 minutos, repousar os pés e o espírito, mas, a parte frustrante veio na matriz. fui surpreendido pela decisão unilateral da minha parceira de jornada: "Se você quiser seguir a procissão, fique. Eu vou embora. Não aguento mais." Disse isso com a firmeza de quem não estava aberta à negociação, e com a frieza de quem não compreendeu que o sentido da fé também pode estar em permanecer.

No pátio, ao redor do santuário, notei os trajes dos outros romeiros, aspectos que eu já havia observado no trajeto: tênis caros, camisetas fluorescentes, roupas de academia. Estavam preparados para a caminhada, mas não para o templo. Pareciam mais maratonistas do que devotos — um contraste que me deixou inquieto. Afinal, que imagem é essa da fé que vestimos hoje?

Pelo caminho, as barracas disputavam atenção com as preces. Havia de tudo: pamonha, cerveja, terço, sandália, livros. Era o capitalismo disfarçado de romaria — ou talvez o contrário. Fé e comércio já aprenderam a caminhar de mãos dadas, como velhos conhecidos que fingem ainda se estranhar.

Voltei com mais bolhas nos pés do que bênçãos na alma. Mas nem tudo foi em vão. A caminhada me ensinou, mais uma vez, que a fé também se manifesta na frustração — quando não conseguimos o que queremos, mas seguimos em frente mesmo assim. Aprendi que, entre a promessa e o milagre, há sempre o risco do desencontro. E que nem todos os que andam ao nosso lado estão indo na mesma direção.

Talvez minha romaria incompleta diga mais sobre mim do que se eu tivesse assistido todas as missas daquela noite e retornado em êxtase. Carregar uma promessa no peito e não conseguir cumpri-la por inteiro é como ser humano demais: limitado, falho, dependente dos outros e das surpresas do caminho. A fé, afinal, não está no destino alcançado, mas no gesto insistente de caminhar mesmo sabendo que nem sempre se chega onde se espera. Minha travessia, interrompida pela urgência alheia, revelou o quanto somos romeiros da própria vida — sujeitos a desvios, abandonos e frustrações que nem sempre escolhemos. Mas há beleza também nos trajetos interrompidos, pois mesmo as romarias inacabadas nos transformam. E talvez o verdadeiro altar esteja no ponto exato onde decidimos não desistir de seguir.

A romaria foi dura, mas não inútil. Porque caminhar é, antes de tudo, um ato de fé: a crença de que, ao fim da estrada, algo — ou alguém — nos aguarda. Mesmo que seja apenas o espelho da nossa própria persistência.

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Essa crônica nos leva a uma romaria, mas também a uma profunda reflexão sobre a sociedade e o comportamento humano. Vamos usar o texto como base para discutir alguns conceitos importantes da Sociologia. Leiam com atenção e respondam às questões a seguir!


1 - O texto descreve a "Via dos Romeiros" como "fervilhando de gente" e um "caos" com pessoas "em busca de algo maior". Pensando nos conceitos de aglomerado social e multidão, explique como esses fenômenos se manifestam em eventos como a romaria, e quais são os diferentes motivos que podem levar as pessoas a participar de grandes concentrações.


2 - O narrador menciona que "a velhice, percebi, não basta por si só; é preciso saber reivindicá-la" para conseguir a passagem gratuita. Discuta como o trecho ilustra a ideia de direitos sociais e a necessidade de luta por reconhecimento e acesso a esses direitos, mesmo para grupos que possuem amparo legal.


3 - No caminho, o autor observa o contraste entre os trajes "esportivos" dos romeiros e o que seria "adequado para o templo". Analise como essa observação pode nos levar a refletir sobre a secularização da sociedade e as diferentes formas como as pessoas expressam sua religiosidade e seu pertencimento a grupos sociais.


4 - A crônica aponta que "o capitalismo disfarçado de romaria" se manifestava nas barracas com "preços exorbitantes", concluindo que "Fé e comércio já aprenderam a caminhar de mãos dadas". Explique como esse trecho demonstra a mercantilização de aspectos religiosos e culturais na sociedade contemporânea e quais são as implicações sociais dessa relação.


5 - O autor experimenta a frustração da romaria incompleta e conclui que "a fé, afinal, não está no destino alcançado, mas no gesto insistente de caminhar". Relacione essa reflexão com o conceito de resiliência social e a capacidade dos indivíduos e das comunidades de lidar com adversidades, frustrações e desvios de rota em suas jornadas, mantendo a busca por significado.

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