"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

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MINHAS PÉROLAS

quinta-feira, 3 de julho de 2025

A Lição de Um Golpe ("Não confio em ninguém que se sente perfeito, pois a perfeição é o inimigo do progresso e a ilusão da verdade." — Carl Jung)

 



A Lição de Um Golpe ("Não confio em ninguém que se sente perfeito, pois a perfeição é o inimigo do progresso e a ilusão da verdade." — Carl Jung)

Foi numa tarde como tantas outras, dessas em que a sala dos professores parece uma trincheira silenciosa entre uma aula e outra. O cansaço se espalhava pelo ar junto com o cheiro de café requentado. A rotina nos unia — não pela paz, mas pelo costume da luta.

Ela entrou radiante. Usava uma daquelas bolsas que mais parecem artigo de vitrine de shopping nobre. Bonita mesmo. — “Nossa, que bolsa!”, - soltou alguém, admirada. Ela sorriu com gosto e agradeceu. Dias depois, apareceu com uma sandália prateada, daquelas que fazem barulho de status no corredor. — “É a mais cara da loja”, - comentou, sem modéstia. Uma colega, encantada, confessou: — “Meu sonho é comprar uma dessa. Mas não tenho coragem…”.

Aos poucos, os detalhes brilhantes foram se somando: um anel delicado, um brinco caro, uma bolsa nova. Cada aparição dela era uma vitrine ambulante, e cada elogio, um passo a mais na encenação de uma vida que, à primeira vista, parecia bem-sucedida. Mas no fundo, havia algo dissonante — uma beleza que não batia com o contracheque.

Foi só depois de algumas semanas que o brilho se transformou em susto. — “Gente, vocês não vão acreditar!”, - disse uma colega. — “Olha o que apareceu no meu cartão de crédito: a mesma sandália daquela professora!”. Outra completou: — “Sabe o que veio no meu? O brinco!”. E uma terceira: “No meu apareceu uma bolsa!”. Nenhuma delas tinha feito aquelas compras. A dúvida virou alarme. — “Como assim? Vamos ver nas câmeras?” E vimos.

As imagens revelaram o que ninguém queria acreditar: ela, sorrateira, vasculhando bolsas alheias, fotografando cartões de crédito como quem fotografa flores num jardim invadido. Tudo era feito com agilidade cirúrgica — um clique aqui, um clique ali, e o golpe estava armado. As vítimas, nossas colegas de café, que já contavam as moedas no fim do mês, eram as financiadoras involuntárias de uma vida de ostentação. Roupas caras. Botox. Viagens. A vaidade de quem se enfeitava com o suor alheio.

Descobre-se que aquela não era sua primeira performance. Já tinha 14 ocorrências anteriores. Como a escola contrata uma professora sem examinar seus antecedentes, ou qualquer um ser. Quando estagiária na Controladoria-Geral da União e depois no Ministério da Justiça, fazia o mesmo: usava dados dos colegas para comprar, exibir, brilhar. Em uma rede social, posava com roupas compradas com cartões clonados — verdadeiras selfies do estelionato.

O primeiro alerta surgiu no dia 22, quando uma orientadora educacional percebeu algo estranho e bloqueou o cartão. Depois dela, mais duas servidoras, que dividiam uma sala reservada, notaram as mesmas movimentações suspeitas. Numa quarta-feira, gravaram um flagrante, mas a imagem ficou escura. Só no fim de semana, depois de muito investigar por conta própria, ficou confirmado: era ela.

A gravação definitiva veio depois: ela pega o cartão da vice-diretora e, minutos depois, inicia as compras. A estratégia era simples e eficaz — um clique, uma senha, e o prejuízo estava feito.

Mesmo após ser presa, foi liberada mediante fiança. E durante a própria gravação da reportagem, mais colegas descobriram que também haviam sido vítimas. O prejuízo ultrapassava os dez mil reais. Ela tentava justificar, alegando problemas psicológicos. — “Ah, eu sou cleptomaníaca…”, - disse, como quem tenta dar nome bonito à ganância.

Era professora substituta. Circulava entre escolas, acumulava rostos, confiança e brechas. Entrava sorrindo, saía com dados. Em meio ao barulho da sala dos professores, entre o grito de um aluno e o toque do sinal, bastava uma bolsa aberta e uma distração. E o golpe acontecia.

Não precisava nem de saldo. Com o limite do Nubank, cartão virava dinheiro. “Use seu dinheiro de forma inteligente para quando precisar”, dizia a propaganda. No caso dela, usava o dos outros — com inteligência, frieza e uma pontinha de crueldade.

Agora, tudo depende das vítimas. Se houver denúncia formal, o processo anda. Se não, tudo se arquiva, como se nunca tivesse existido. Um crime pode render de um a cinco anos de prisão. Ela cometeu vários. Mas só responderá se alguém tiver coragem de representar.

Disse lamentando uma das vítimas: — "O que mais me dói, no entanto, não é o prejuízo. É a quebra da confiança. Somos uma categoria acostumada a partilhar o pouco que temos — lanche, materiais, esperança. Nunca pensei que seria preciso esconder também o cartão. A lição que fica é amarga: até entre os nossos, às vezes, se esconde o inimigo. E o mais triste é que, de tantas disciplinas que já ensinamos, esquecemos de incluir a mais urgente: 'ética cotidiana' — aquela que deveria vir antes de qualquer conteúdo".

Talvez ela não quisesse apenas consumir — queria ser vista, admirada, desejada. Havia, por trás do brilho dos acessórios e do tom afetado da voz, uma fome de pertencimento, típica de quem vive à margem dos bastidores do prestígio. Não se trata de justificar, mas de entender: sua compulsão tinha método, cálculo e vaidade, mas também solidão e um desejo doentio de reconhecimento. O problema é que, ao vestir o que não podia pagar, ela despiu a confiança de todos ao redor. O resultado não foi só o rombo financeiro — foram vínculos rompidos, colegas desconfiados, uma escola inteira em alerta. E agora, diante do inquérito aberto, ela aguarda o processo — que só andará se formos capazes de enfrentar não apenas o estelionato, mas também o silêncio.

E, talvez, agora, depois desse golpe, venha a maior prova de todas: a de que é possível seguir sendo professor… mesmo depois de aprender, na dor, que nem todos merecem o nosso caderno aberto.


https://www.youtube.com/watch?v=WELO9DXDXy4&ab_channel=CidadeAlertaRecord (Acessado em 03/07/2025)



Essa crônica é um soco no estômago, né? Ela nos mostra como o cotidiano e as relações sociais podem ser mais complexos e desafiadores do que imaginamos. Vamos usar o texto como ponto de partida para refletir sobre alguns conceitos da Sociologia. Leiam com atenção e respondam às questões a seguir!


1 - A professora do texto usava objetos caros para ser "vista, admirada, desejada", mesmo cometendo crimes para isso. Explique como a sociedade de consumo e a busca por status social podem influenciar as atitudes e a identidade dos indivíduos, a ponto de levá-los a comportamentos antiéticos.


2 - A crônica descreve como a professora aproveitava a confiança dos colegas e a "correria da sala dos professores" para fotografar os cartões. Discuta como a quebra de confiança afeta as relações sociais e o capital social dentro de um grupo ou comunidade, como a equipe de uma escola.


3 - O texto menciona que a professora já tinha um histórico de 14 ocorrências e aplicava golpes em outros locais de trabalho. Considerando o conceito de desvio social, como podemos analisar a persistência desse tipo de comportamento e o impacto de suas ações na moral coletiva de diferentes ambientes profissionais?


4 - Uma das vítimas lamenta que "nunca pensou que seria preciso esconder também o cartão" e que a "ética cotidiana" deveria vir antes de qualquer conteúdo. Explique o que é ética cotidiana e por que ela é fundamental para a manutenção da coesão social em um ambiente de trabalho ou em qualquer grupo.


5 - A crônica finaliza com a reflexão de que, mesmo depois do ocorrido, é possível "seguir sendo professor". Pensando no papel da educação e das instituições sociais, discuta como esses espaços podem aprender e se fortalecer a partir de crises de confiança, buscando reconstruir os vínculos e reforçar a integridade.

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