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MINHAS PÉROLAS

sábado, 26 de abril de 2025

A Nova Língua da Vida: Linguagem-Neutra. ("As palavras nunca são as mesmas quando a alma não é a mesma." — Machado de Assis)

 

A Nova Língua da Vida: Linguagem-Neutra. ("As palavras nunca são as mesmas quando a alma não é a mesma." — Machado de Assis)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Acordei naquela manhã com um aperto estranho no peito, como se o próprio tempo tivesse decidido me pregar uma peça. Enquanto me preparava para a rotina de sempre — café, notícias, algumas reclamações para espantar o sono —, uma manchete capturou minha atenção e quase me fez engasgar com o pão de queijo: "STF derruba restrições municipais ao ensino em linguagem neutra." Confesso que meu primeiro impulso foi de espanto. Como assim? Nossa língua portuguesa, tão rica e estruturada, agora poderia ganhar novos contornos nas salas de aula?

Por um instante, pensei ter lido errado. Pisquei, ajustei o foco, reli. Não era engano. A língua portuguesa, essa velha senhora que sempre me ensinou que "eu, tu, ele" vinham antes de "nós, vós, eles", agora ganharia traços mais fluidos — talvez até escorregadios.

O café esfriava na xícara enquanto eu me aprofundava na notícia. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal havia formado maioria para invalidar leis municipais do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais que proibiam o uso e o ensino da chamada linguagem neutra nas escolas. O ministro relator, André Mendonça, argumentava que legislar sobre a língua portuguesa era competência federal, não municipal. Para eles, a língua é um projeto nacional, um grande guarda-chuva sob o qual cabem todas as nuvens. Alguns ministros discordaram — vozes isoladas tentando remar contra a maré —, mas a maioria venceu, como quase sempre acontece nesses tribunais onde a caneta é mais poderosa do que qualquer argumento.

Imaginei meu filho — aquele mesmo que outro dia me perguntou como se escrevia "amizade" — voltando da escola para me ensinar que agora éramos "amigue" e que, na nova gramática da vida, "todes" era mais bonito do que "todos". Não era mais uma questão de certo ou errado; era outra história sendo escrita, talvez com lápis de cera, talvez com palavras que ainda nem sabíamos pronunciá-las direito. A imagem mental me arrancou um sorriso nervoso, desses que surgem quando não sabemos exatamente como reagir diante do desconhecido.

No entanto, algo ainda me incomodava. Não era exatamente a decisão em si, mas o burburinho que se formava nas redes sociais. Vi compartilhamentos alarmistas sugerindo que, a partir de agora, as crianças aprenderiam apenas a "língua do Mussum" ou seriam obrigadas a falar "todes" e "amigues". Que exagero! Como se nossa língua nunca tivesse passado por transformações ao longo dos séculos.

Enquanto ouvia análises e comentaristas, uma memória infantil veio à tona: minha professora de português, dona Coraci — severa, mas justa —, martelando a concordância verbal até nossas cabeças doerem. Ela dizia que a língua era o que nos unia como povo, que a gramática era o alicerce da nossa compreensão mútua. Senti saudades daquele tempo, em que a simplicidade do certo e do errado era suficiente para dar sentido ao mundo.

Lembrei-me ainda de quando era criança e meu avô reclamava das "novidades" que os jovens traziam para o português: — "No meu tempo, ninguém falava 'você'; era 'o senhor' e 'a senhora'"- , dizia ele, indignado. E hoje? Quem ainda se espanta com o uso de "você"? As línguas são organismos vivos, mutáveis, que respiram e evoluem com as sociedades que as utilizam.

Quando me pus a refletir com mais calma, percebi que a linguagem neutra era apenas uma proposta de inclusão. Não se tratava de obrigar ninguém a falar de determinada maneira, tampouco de substituir nossa gramática tradicional. Era mais uma possibilidade, uma forma de acolher pessoas que não se identificam exclusivamente com o masculino ou o feminino. Ainda assim, vejo uma geração sendo chamada a falar uma língua que não aprendi e que, confesso, mal entendo. Uma língua que não nasceu das ruas, mas dos palanques; que não floresceu da necessidade popular, mas da vontade política. Não culpo quem defende a inclusão — todos merecem ser vistos, ser ouvidos. Mas me pergunto: estaremos, nesse processo, ensinando a expressar ou a confundir?

Terminei meu café já frio e fiquei pensando em quantas outras transformações linguísticas ainda testemunharei ao longo da vida. Talvez, em algumas décadas, o que hoje nos parece estranho se torne tão comum quanto um "você". Ou talvez não se fixe, permanecendo como uma expressão datada de um período específico.

O fato é que nossa língua portuguesa, com mais de mil anos de existência, já sobreviveu a invasões, colonizações, acordos ortográficos e revoluções culturais. E continuará sobrevivendo, adaptando-se aos tempos e às necessidades das pessoas que a utilizam. Afinal, a língua não pertence a gramáticos ou tribunais — pertence a cada um de nós, que a moldamos em nossas conversas diárias, em nossos textos, em nossos silêncios eloquentes.

Respiro fundo. O mundo gira, e eu, ainda meio atordoado, percebo que não adiantará gritar contra o vento. Quando meu filho voltar da escola, talvez me chame de "pãe" ou me pergunte se prefiro ser tratado como "amigue". Eu sorrirei, como quem tenta equilibrar passado e futuro sobre uma corda bamba, e ensinarei a ele o que sempre acreditei: mais importante do que falar bonito é falar com o coração.

Enquanto fechava a tela do celular, decidi que conversaríamos sobre isso. Não para impor minha visão, mas para ouvir a dele. Porque, se há algo que aprendi em todos esses anos, lidando com adolescentes, no papel de professor de Língua Portuguesa, é que a maior riqueza de uma língua está justamente na diversidade de vozes que a compõem.

E você, o que pensa sobre essas transformações linguísticas? Talvez seja hora de nos abrirmos para o diálogo, sem pânico e sem extremismos. Afinal, como diria Guimarães Rosa, "a língua é a casa do ser." E que casa seria completa sem espaço para todos os seus habitantes? Porque, no fim das contas, as palavras mudam, mas a verdade que carregamos dentro delas — essa, espero eu, continuará a mesma.


https://www.brasil247.com/brasil/stf-derruba-restricoes-municipais-ao-ensino-em-linguagem-neutra (Acessado em 26/04/2025)



Como seu "professor de sociologia" para esta análise, preparei 5 questões discursivas simples baseadas no texto. Elas visam estimular a reflexão sobre os aspectos sociais que emergem da narrativa sobre a linguagem e suas transformações.

Aqui estão as questões:


1. O texto descreve diferentes reações à notícia sobre a linguagem neutra, desde o espanto inicial do narrador até o "burburinho alarmista" nas redes sociais. Sob uma perspectiva sociológica, o que essas diferentes reações revelam sobre a relação das pessoas com a mudança nas normas sociais e culturais, como a língua?

2. A crônica menciona que a professora de português dizia que "a língua era o que nos unia como povo". Considerando o debate sobre a linguagem neutra apresentado no texto, de que maneira a língua pode ser vista tanto como um fator de união quanto de possível divisão ou tensão em uma sociedade?

3. O texto aborda a decisão do STF, destacando a competência federal sobre a língua. Qual o papel das instituições, como o sistema judiciário e a escola, na normatização ou na promoção de mudanças em aspectos culturais e sociais como a língua?

4. Através das lembranças do narrador sobre sua professora, seu avô e a expectativa em relação ao filho/sobrinho, o texto sugere diferentes visões sobre a mudança linguística ao longo do tempo e entre gerações. Sociologicamente, como podemos analisar a forma como as diferentes gerações lidam com as transformações nas práticas sociais e culturais?

5. A linguagem neutra é apresentada no texto como uma "proposta de inclusão". Pensando na relação entre linguagem e identidade social, explique como a forma como usamos as palavras pode influenciar a inclusão ou exclusão de determinados grupos de pessoas na sociedade.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Quando João Parou de Pular ("Morrer é nada; horrível é não viver." — Victor Hugo)

 

Quando João Parou de Pular ("Morrer é nada; horrível é não viver." — Victor Hugo)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Naquela manhã abafada, enquanto os ventiladores antigos se esforçavam para empurrar o calor para fora da sala, ele saltava de uma mesa a outra como se fosse dono do espaço e do tempo. Carregava a leveza de quem ainda não conhecia o peso das regras e a urgência dos que vivem como se o amanhã estivesse sempre prestes a ser roubado.

João Vitor era desses que ocupam todo o ambiente, apesar do corpo pequeno para a idade. De camisa vermelha e olhar inquieto, trazia no rosto uma mistura de desafio e sobrevivência. Chamavam-no de Barroto — talvez por ironia, talvez por carinho, talvez por medo. Ninguém jamais explicou. E ele, por sua vez, nunca se importou em se corrigir.

A professora hesitava diante dele. Sua autoridade vacilava, não apenas por conta da indisciplina escancarada, mas por algo mais profundo — talvez o medo de tocar numa ferida que nem ela saberia nomear. João não respeitava os limites da sala, da escola, do corpo. E ninguém ousava repreendê-lo com firmeza. Não porque fosse forte, mas porque trazia no semblante um tipo de fúria que não se aprende na infância: se herda.

Via-o em vídeos que circulavam entre os grupos de professores: pulando janelas, rindo alto, provocando os colegas, desafiando a lógica dos cadernos e das carteiras alinhadas. E agora me pergunto: onde começa a culpa? Será que ele era mesmo o problema? (Há que diga que a culpa é da professora!).

Os noticiários sensacionalistas o mostraram em close — óculos escuros, camisa chamativa — o retrato de um “menor problema”, como gostam de dizer. Mas, na legenda fria, uma sentença definitiva: *executado com oito tiros enquanto dormia*. O que me engasga não é a quantidade dos disparos, mas a ironia brutal de um descanso interrompido. Dormia — justo ele, que nunca parava.

João vivia com a mãe — dizem que envolvida com o tráfico. Dizem também que o menino, desde cedo, já conhecia o valor da rua, dos esquemas, das moedas trocadas no escuro. Dizem muita coisa. Mas, ninguém diz o que lhe faltou. Ninguém fala das vezes em que, talvez, ele só quisesse ser ouvido sem precisar gritar. (Agora há quem diga que a culpa é da sociedade).

Neste momento, cá estou eu, refletindo entre pilhas de provas e planejamentos, tentando ensinar ética a adolescentes que vivem à margem de um mundo em ruínas. Às vezes, me pergunto se temos dado a eles algo além de regras e avaliações.

João parou. Parou de pular, de provocar, de viver. E com ele, foi-se mais uma chance de corrigirmos o que está errado — antes que seja tarde. A escola perdeu. A rua venceu. E, como sempre, quem paga a conta é a infância. (Também há quem diga que a lei da causa e efeito é injusta).


https://www.instagram.com/reel/DI0kunXOtn7/?utm_source=ig_web_copy_link (Acessado em 24/04/2025)



Olá! Com base na crônica acima, que nos traz reflexões importantes sobre infância, violência, educação e sociedade, elaborei 5 questões discursivas simples, como um professor de sociologia faria, para estimular o pensamento crítico sobre os temas abordados:


1. O texto descreve João Vitor como alguém que transitava entre a escola e a "rua", com comportamentos que desafiavam as normas escolares. Pensando sociologicamente, como os diferentes ambientes sociais (família, escola, rua) podem influenciar a formação e as escolhas de um jovem?

2. A crônica menciona a hesitação da professora e a dificuldade da escola em lidar com João Vitor. Qual o papel social da instituição escolar em comunidades vulneráveis, e quais são os desafios que ela enfrenta ao tentar educar e proteger crianças expostas a múltiplas dificuldades?

3. O narrador reflete sobre "ensinar ética a adolescentes que vivem à margem de um mundo em ruínas" e conclui que "a rua venceu". Como a desigualdade social e a falta de oportunidades podem contribuir para que jovens como João Vitor sigam trajetórias de risco e violência?

4. João Vitor foi retratado pela mídia como um "'menor problema'". Como a forma como a sociedade e os meios de comunicação rotulam (ou estigmatizam) jovens, especialmente os mais vulneráveis, pode impactar suas vidas e a maneira como são tratados?

5. O texto levanta repetidamente a questão da "culpa" pela trajetória e morte de João Vitor (professora, sociedade, causa e efeito). Do ponto de vista sociológico, como podemos analisar a responsabilidade por tragédias como essa, considerando tanto as ações individuais quanto as estruturas e condições sociais?

quarta-feira, 23 de abril de 2025

O Piano que Ela Carrega ("Eu carrego minha raça nos ombros... E peso!" — Solano Trindade)

 

O Piano que Ela Carrega ("Eu carrego minha raça nos ombros... E peso!" — Solano Trindade)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Naquela manhã, o céu exibia um cinza desbotado, como se o dia hesitasse entre começar ou desistir. O portão da escola gemeu baixinho ao se abrir e, por um instante, tudo pareceu comum: a merenda sendo distribuída, o recreio ecoando com gritos e risadas, os bilhetes amassados nos bolsos das mochilas. Mas, para Fernanda, nada mais era comum. Havia semanas que ela carregava um piano nas costas — invisível para quase todos, mas pesado como um mundo inteiro.

Era substituta. E, como todo substituto, trazia consigo o estigma da substituição — aquela sensação de ser apenas uma presença temporária, alguém que está de passagem, que não é “de verdade”. Mas Fernanda era mais que real: era mulher, era preta, era professora de língua. Ensinava como quem costura o tecido rasgado de um país que ainda se recusa a enxergar a beleza de sua própria cor.

No início, foram apenas cochichos. Risos abafados, palavras lançadas por trás dos cadernos. “Tição.” “Carvão de acender churrasqueira.” “Vaca preta.” Ofensas ditas com a mesma naturalidade com que se pronuncia o nome da capital do Brasil. Os olhos dos alunos brilhavam mais de desafio do que de ignorância. Sabiam o que faziam — e faziam porque podiam.

Fernanda tentou dialogar. Tentou ensinar com o afeto de quem acredita que as palavras também curam. Mas descobriu que há dias em que o verbo não basta.

O ponto de ruptura veio quando decidiu reorganizar a sala. Um menino — 13 anos e um olhar que misturava rebeldia com algo mais sombrio — se recusou a trocar de lugar. E então, diante de uma funcionária e de um silêncio que parecia cúmplice, ele cuspiu: “Essa preta zé-ninguém, quem ela pensa que é?”

Naquele instante, o piano pesou ainda mais.

Ela não gritou. Não chorou na frente de ninguém. Apenas saiu da sala, desceu as escadas e foi até a delegacia. Pela segunda vez. “Só sabe o peso do piano quem carrega”, disse ela ao policial, com a dignidade de quem já está cansada de ser forte o tempo todo. Ela só queria paz para ensinar. Apenas isso.

As autoridades prometeram investigar, os pais negaram, a escola emitiu notas oficiais sobre “ambientes acolhedores”, e a vida seguiu. Como sempre segue. Como sempre finge que muda. Mas algo se quebrou por dentro. Talvez não em Fernanda, que já se reconstruíra muitas vezes. Mas em todos que ouviram sua história e permaneceram em silêncio. Esses, sim, ficaram com o estilhaço da vergonha cravado na alma.

Escrevo esta crônica como quem testemunha uma cena insuportável e, por covardia ou impotência, não reage na hora. Agora, tenta, com palavras, redimir-se. Não sei se é possível.

Só sei que, enquanto este país não aprender a amar seus professores — e, sobretudo, suas professoras negras — não haverá reforma educacional que baste, nem currículo que salve. Porque a sala de aula é um espelho. E hoje, nesse espelho, muitos ainda se veem superiores, mesmo estando deitados no chão.

Fernanda não é uma zé-ninguém. É alguém que escolheu lutar onde a maioria desiste. E enquanto houver quem se disponha a carregar esse piano — mesmo em silêncio — ainda haverá música na educação.

Mas que não demore a ajuda, porque até a mais resistente das partituras precisa de pausa.


https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2025/04/23/professora-denuncia-injuria-racial-alunos-em-sala-de-aula.ghtml (Acessado em 23/04/2025)



Esta crônica toca em pontos nevrálgicos da Sociologia, abordando racismo, instituições sociais, dinâmicas de poder e o papel da educação. Com base nas ideias e na narrativa envolvente do texto, preparei 5 questões discursivas simples para instigar a reflexão sociológica:


1. A Socialização do Preconceito: A crônica descreve alunos muito jovens usando ofensas racistas e questiona "onde aprenderam tanto ódio?". Sociologicamente, como podemos analisar a forma como o preconceito e o racismo são transmitidos e aprendidos no processo de socialização das crianças e adolescentes, não apenas na família, mas também em outros espaços sociais?

2. A Instituição Escolar diante do Racismo: O texto revela a sensação da professora de falta de apoio na escola e a atitude das autoridades. Qual é o papel da instituição escolar, do ponto de vista sociológico, na prevenção e no combate ao racismo e à discriminação dentro de seus muros? Como a estrutura e as respostas institucionais podem impactar a experiência de professores e alunos que são alvo de preconceito?

3. O Silêncio e a Cumplicidade Social: A crônica menciona um "silêncio que parecia cúmplice" e a vergonha naqueles que ouviram a história e não reagiram. Sociologicamente, como podemos interpretar o silêncio e a omissão de testemunhas ou de instituições diante de atos de racismo e discriminação? De que maneira a inação pode contribuir para a perpetuação das desigualdades?

4. A Sala de Aula como Espelho da Sociedade: A crônica afirma: "Porque a sala de aula é um espelho". Explique, sob uma perspectiva sociológica, como as dinâmicas, tensões e preconceitos presentes na sociedade mais ampla podem se manifestar e ser reproduzidos no ambiente específico da sala de aula, tornando-o um microcosmo social.

5. Identidade Social e Experiências de Discriminação: O texto descreve Fernanda em suas múltiplas identidades: "mulher, preta, professora de língua" e "substituta". Como a Sociologia estuda a forma como diferentes aspectos da identidade social de uma pessoa (como raça, gênero, profissão) podem se cruzar (interseccionar) e influenciar suas experiências de poder, preconceito ou discriminação na sociedade?

Espero que estas questões baseadas na sua crônica incentivem uma análise sociológica profunda sobre os complexos temas abordados!

segunda-feira, 21 de abril de 2025

No Dia do Índio, o Teatro da Inclusão (Quando o português chegou/ Debaixo duma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido O português.— Oswald de Andrade)

 

No Dia do Índio, o Teatro da Inclusão
(Quando o português chegou/ Debaixo duma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido O português.— Oswald de Andrade)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Foi numa manhã abafada de abril — daquelas em que o calor se esconde entre os azulejos da escola — que presenciei a cena. Era o Dia do Índio, como indicava o calendário pedagógico pendurado na sala dos professores. E, como de costume, as crianças da educação infantil estavam sendo pintadas. Carvão no rosto, penas de papel na cabeça e uma cantiga antiga repetida em coro, como se a cultura indígena coubesse em meia hora de tinta guache e estereótipos reciclados.

Assisti àquela encenação com um misto de cansaço e vergonha. Vi a professora enfileirar as crianças, uma a uma, como se fossem moldes prontos, e ouvi sua voz animada declarar: “Hoje vocês vão ser índios!”. Mas ninguém ali sabia sequer ler o próprio nome. A maioria mal segurava o lápis com firmeza, tropeçava nas vogais, confundia o som do B com o do D — e, mesmo assim, saía da atividade com o rosto pintado e um cocar mal recortado como prova de uma aula "sobre diversidade".

Era isso que a escola entendia por inclusão: brincar de índio sem jamais escutar um. Pintar sem compreender. Celebrar sem ensinar. Enquanto isso, lá fora — longe daquela encenação alegre — havia meninos e meninas de verdade, filhos do Xingu, do Araguaia, do cerrado adentro, tentando aprender o português que lhes foi imposto, lutando por um espaço onde não fossem apenas folclore de abril.

Naquele dia, entre uma criança maquiada e outra, percebi o quanto temos nos enganado. A escola, que deveria ser espaço de leitura do mundo, escolheu decorar o teatro. Não alfabetiza, mas pinta. Não escuta, mas encena. Ensina a cantar sobre o índio sem dizer por que ele chora. Faz festa com cartolina, mas esquece o silêncio de quem nunca foi convidado a falar.

Somos um país que se orgulha da pluralidade, mas apenas quando ela serve ao enfeite. Preferimos exaltar símbolos a oferecer sentido. E é por isso que seguimos repetindo os mesmos refrões, enquanto as crianças crescem sem compreender o próprio lugar — nem o do outro.

Hoje, cada vez que vejo uma pena colorida colada numa tiara de EVA, penso que há algo de cruel nessa inocência. Porque não há nada mais desrespeitoso do que reduzir um povo à maquiagem de um dia. E nada mais triste do que perceber que a escola, que deveria libertar, está ensinando a decorar prisões coloridas.

A verdadeira homenagem não está nas tintas. Está no gesto de ensinar com verdade. Está na escuta. No respeito. E, sobretudo, no compromisso de alfabetizar antes de enfeitar.



Este texto oferece um olhar sociológico aguçado sobre a forma como a sociedade e as instituições (como a escola) lidam com a diversidade e a representação cultural. A crítica à superficialidade e ao estereótipo é um ponto de partida excelente para a análise sociológica.

Com base nas ideias principais do ensaio, preparei 5 questões discursivas simples para explorar esses temas sob uma perspectiva sociológica:


1. Representação Cultural e Estereótipos: O texto critica a atividade do "Dia do Índio" por reduzir a cultura indígena a "estereótipos reciclados". Sociologicamente, o que são estereótipos culturais e como eles podem simplificar excessivamente e distorcer a complexidade e diversidade de um grupo social na representação pública?

2. Inclusão Simbólica vs. Substantiva na Escola: O autor contrasta "brincar de índio sem jamais escutar um" com a luta de indígenas reais. Como a Sociologia diferencia ações de inclusão ou celebração que são meramente "simbólicas" (focadas em datas, rituais superficiais) de abordagens "substantivas" (que envolvem respeito genuíno, escuta, reconhecimento e mudanças estruturais)?

3. O Papel da Escola na Reprodução Social: O texto sugere que a escola, ao focar em "decorar o teatro" em vez de "alfabetizar" e "escutar", falha em seu papel fundamental. Como a Sociologia analisa a função da escola como instituição social: ela age principalmente para promover o pensamento crítico e a transformação, ou pode, por vezes, reforçar ou reproduzir visões simplificadas e desigualdades existentes na sociedade?

4. Símbolos Nacionais e Sentido Social: A crítica se estende ao país que "prefere exaltar símbolos a oferecer sentido". Do ponto de vista sociológico, qual é a importância dos símbolos na construção da identidade e da coesão social de uma nação, mas quais são os perigos quando esses símbolos perdem sua conexão com a realidade vivida pelos diferentes grupos sociais que eles representam?

5. Educação e a Metáfora das "Prisões Coloridas": A frase final, "ensinando a decorar prisões coloridas", é uma metáfora forte. O que essa imagem sugere, sociologicamente, sobre o impacto de uma educação que foca na aparência e no estereótipo em vez de capacitar os indivíduos com conhecimento crítico para compreenderem e, talvez, transformarem as estruturas sociais que os cercam?

domingo, 20 de abril de 2025

O Que Eu Amo, O Que Me Cansa ("Há feridas que a gente não sabe que tem senão quando a mão de alguém as toca." — Clarice Lispector)

 

O Que Eu Amo, O Que Me Cansa ("Há feridas que a gente não sabe que tem senão quando a mão de alguém as toca." — Clarice Lispector)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Outro dia, enquanto esperava o café coar, deparei-me com um comentário que não me saiu da cabeça: “Se você não está feliz com sua profissão, saia. Tem quem queira.” A frase, aparentemente simples, atravessou-me como um grito mal disfarçado. De início, respirei fundo; tentei rir, como quem não se afeta. Mas, veja bem, sou professor. E, quando se é professor, há coisas que simplesmente não dá para deixar passar.

Não sei precisamente quando deixei de ser visto como vocação e passei a ser encarado como estorvo. Talvez tenha sido quando começaram a me chamar de “tiozão” e, convenientemente, esqueceram que ali, diante de uma lousa, havia um profissional formado, estudado, que insiste em ensinar mesmo diante do caos.

Gosto, sim, e gosto muito de ser professor. Gosto de olhar uma turma no início do ano, cheia de dúvidas, receios e desconfianças, e presenciar, meses depois, o brilho no olhar de quem finalmente entendeu uma ideia, escreveu um texto decente ou respondeu a uma pergunta com coragem. Isso me enche de alegria, é o que me move. Contudo, gosto também de dizer a verdade — e, sim, a verdade cansa.

Cansa o sistema, que nos aperta com metas inatingíveis e relatórios sem fim. Cansa a sala lotada, o salário minguado e a sensação de que somos vistos mais como babás do que como educadores. Cansa a estrutura falida, o improviso diário e a constante falta de apoio. E cansa, sobretudo, o despreparo — não o nosso, mas o daqueles que esperam que sejamos psicólogos, assistentes sociais, ou até mesmo mágicos.

Cansa, também, o desrespeito. O de adolescentes que chegam sem limites, o de pais que delegam tudo e depois cobram tudo, e o de gente que nunca pisou numa sala de aula como docente e, ainda assim, acha que sabe como deveríamos trabalhar. Tudo isso, sim, cansa. E cansa muito.

Mas sair? Não. Porque, se todos que estão cansados forem embora, quem fica? Quem acolherá, orientará e ensinará os seus filhos, os seus netos? Quem segurará a barra quando o sistema insiste em nos empurrar ladeira abaixo?

Eu fico. Por teimosia, talvez, mas, com certeza, por amor. Contudo, não me peçam para sorrir quando doem as costas, o bolso e a alma. Quero apenas que compreendam: gostar da profissão não significa fechar os olhos para o que está errado. Pelo contrário; quem ama de verdade, denuncia, luta, exige mudança.

Portanto, antes de sugerir que alguém saia, pergunte-se: por que essa pessoa está infeliz? Talvez, se ouvíssemos mais e julgássemos menos, ainda daria tempo de consertar essa casa que chamamos de escola. Ainda daria tempo de valorizar quem insiste em ensinar, mesmo quando tudo ao redor parece tender a desaprender.


Com base nas ideias principais do meu texto, preparei 5 questões discursivas e simples, pensadas para explorar esses temas sob um olhar sociológico:


1. A Percepção Social da Profissão: O autor menciona a transição de professor visto como "vocação" para "estorvo". Quais fatores sociais mais amplos você acredita que podem ter contribuído para essa possível mudança na percepção da profissão docente na sociedade contemporânea?

2. Os Desafios do Sistema Educacional como Estrutura Social: O texto lista elementos do "sistema" que causam cansaço (metas, relatórios, salário, estrutura, etc.). Escolha dois desses elementos e discuta como eles representam desafios estruturais que afetam a prática pedagógica e o bem-estar do professor.

3. As Múltiplas Expectativas sobre o Papel do Professor: A queixa sobre a expectativa de que professores sejam "psicólogos, assistentes sociais, ou até mesmo mágicos" reflete uma sobrecarga de papéis. O que essa multiplicidade de expectativas revela sobre o papel da escola e as demandas sociais em relação a essa instituição hoje em dia?

4. Relações Sociais na Escola e na Família: O desrespeito vindo de alunos e pais é apontado como uma fonte de cansaço. Como as dificuldades nessas relações, descritas no texto, podem ser analisadas no contexto das transformações sociais que afetam a família e a dinâmica escolar?

5. Resistência Individual diante das Adversidades Coletivas: Apesar do cansaço, o autor afirma: "Eu fico" e fala em "denunciar, lutar, exige mudança". De que maneira essa atitude individual de permanecer e buscar a transformação se relaciona com a ideia de agência social ou resistência dentro de um sistema com problemas estruturais?