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sábado, 26 de abril de 2025

A Nova Língua da Vida: Linguagem-Neutra. ("As palavras nunca são as mesmas quando a alma não é a mesma." — Machado de Assis)

 

A Nova Língua da Vida: Linguagem-Neutra. ("As palavras nunca são as mesmas quando a alma não é a mesma." — Machado de Assis)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Acordei naquela manhã com um aperto estranho no peito, como se o próprio tempo tivesse decidido me pregar uma peça. Enquanto me preparava para a rotina de sempre — café, notícias, algumas reclamações para espantar o sono —, uma manchete capturou minha atenção e quase me fez engasgar com o pão de queijo: "STF derruba restrições municipais ao ensino em linguagem neutra." Confesso que meu primeiro impulso foi de espanto. Como assim? Nossa língua portuguesa, tão rica e estruturada, agora poderia ganhar novos contornos nas salas de aula?

Por um instante, pensei ter lido errado. Pisquei, ajustei o foco, reli. Não era engano. A língua portuguesa, essa velha senhora que sempre me ensinou que "eu, tu, ele" vinham antes de "nós, vós, eles", agora ganharia traços mais fluidos — talvez até escorregadios.

O café esfriava na xícara enquanto eu me aprofundava na notícia. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal havia formado maioria para invalidar leis municipais do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais que proibiam o uso e o ensino da chamada linguagem neutra nas escolas. O ministro relator, André Mendonça, argumentava que legislar sobre a língua portuguesa era competência federal, não municipal. Para eles, a língua é um projeto nacional, um grande guarda-chuva sob o qual cabem todas as nuvens. Alguns ministros discordaram — vozes isoladas tentando remar contra a maré —, mas a maioria venceu, como quase sempre acontece nesses tribunais onde a caneta é mais poderosa do que qualquer argumento.

Imaginei meu filho — aquele mesmo que outro dia me perguntou como se escrevia "amizade" — voltando da escola para me ensinar que agora éramos "amigue" e que, na nova gramática da vida, "todes" era mais bonito do que "todos". Não era mais uma questão de certo ou errado; era outra história sendo escrita, talvez com lápis de cera, talvez com palavras que ainda nem sabíamos pronunciá-las direito. A imagem mental me arrancou um sorriso nervoso, desses que surgem quando não sabemos exatamente como reagir diante do desconhecido.

No entanto, algo ainda me incomodava. Não era exatamente a decisão em si, mas o burburinho que se formava nas redes sociais. Vi compartilhamentos alarmistas sugerindo que, a partir de agora, as crianças aprenderiam apenas a "língua do Mussum" ou seriam obrigadas a falar "todes" e "amigues". Que exagero! Como se nossa língua nunca tivesse passado por transformações ao longo dos séculos.

Enquanto ouvia análises e comentaristas, uma memória infantil veio à tona: minha professora de português, dona Coraci — severa, mas justa —, martelando a concordância verbal até nossas cabeças doerem. Ela dizia que a língua era o que nos unia como povo, que a gramática era o alicerce da nossa compreensão mútua. Senti saudades daquele tempo, em que a simplicidade do certo e do errado era suficiente para dar sentido ao mundo.

Lembrei-me ainda de quando era criança e meu avô reclamava das "novidades" que os jovens traziam para o português: — "No meu tempo, ninguém falava 'você'; era 'o senhor' e 'a senhora'"- , dizia ele, indignado. E hoje? Quem ainda se espanta com o uso de "você"? As línguas são organismos vivos, mutáveis, que respiram e evoluem com as sociedades que as utilizam.

Quando me pus a refletir com mais calma, percebi que a linguagem neutra era apenas uma proposta de inclusão. Não se tratava de obrigar ninguém a falar de determinada maneira, tampouco de substituir nossa gramática tradicional. Era mais uma possibilidade, uma forma de acolher pessoas que não se identificam exclusivamente com o masculino ou o feminino. Ainda assim, vejo uma geração sendo chamada a falar uma língua que não aprendi e que, confesso, mal entendo. Uma língua que não nasceu das ruas, mas dos palanques; que não floresceu da necessidade popular, mas da vontade política. Não culpo quem defende a inclusão — todos merecem ser vistos, ser ouvidos. Mas me pergunto: estaremos, nesse processo, ensinando a expressar ou a confundir?

Terminei meu café já frio e fiquei pensando em quantas outras transformações linguísticas ainda testemunharei ao longo da vida. Talvez, em algumas décadas, o que hoje nos parece estranho se torne tão comum quanto um "você". Ou talvez não se fixe, permanecendo como uma expressão datada de um período específico.

O fato é que nossa língua portuguesa, com mais de mil anos de existência, já sobreviveu a invasões, colonizações, acordos ortográficos e revoluções culturais. E continuará sobrevivendo, adaptando-se aos tempos e às necessidades das pessoas que a utilizam. Afinal, a língua não pertence a gramáticos ou tribunais — pertence a cada um de nós, que a moldamos em nossas conversas diárias, em nossos textos, em nossos silêncios eloquentes.

Respiro fundo. O mundo gira, e eu, ainda meio atordoado, percebo que não adiantará gritar contra o vento. Quando meu filho voltar da escola, talvez me chame de "pãe" ou me pergunte se prefiro ser tratado como "amigue". Eu sorrirei, como quem tenta equilibrar passado e futuro sobre uma corda bamba, e ensinarei a ele o que sempre acreditei: mais importante do que falar bonito é falar com o coração.

Enquanto fechava a tela do celular, decidi que conversaríamos sobre isso. Não para impor minha visão, mas para ouvir a dele. Porque, se há algo que aprendi em todos esses anos, lidando com adolescentes, no papel de professor de Língua Portuguesa, é que a maior riqueza de uma língua está justamente na diversidade de vozes que a compõem.

E você, o que pensa sobre essas transformações linguísticas? Talvez seja hora de nos abrirmos para o diálogo, sem pânico e sem extremismos. Afinal, como diria Guimarães Rosa, "a língua é a casa do ser." E que casa seria completa sem espaço para todos os seus habitantes? Porque, no fim das contas, as palavras mudam, mas a verdade que carregamos dentro delas — essa, espero eu, continuará a mesma.


https://www.brasil247.com/brasil/stf-derruba-restricoes-municipais-ao-ensino-em-linguagem-neutra (Acessado em 26/04/2025)



Como seu "professor de sociologia" para esta análise, preparei 5 questões discursivas simples baseadas no texto. Elas visam estimular a reflexão sobre os aspectos sociais que emergem da narrativa sobre a linguagem e suas transformações.

Aqui estão as questões:


1. O texto descreve diferentes reações à notícia sobre a linguagem neutra, desde o espanto inicial do narrador até o "burburinho alarmista" nas redes sociais. Sob uma perspectiva sociológica, o que essas diferentes reações revelam sobre a relação das pessoas com a mudança nas normas sociais e culturais, como a língua?

2. A crônica menciona que a professora de português dizia que "a língua era o que nos unia como povo". Considerando o debate sobre a linguagem neutra apresentado no texto, de que maneira a língua pode ser vista tanto como um fator de união quanto de possível divisão ou tensão em uma sociedade?

3. O texto aborda a decisão do STF, destacando a competência federal sobre a língua. Qual o papel das instituições, como o sistema judiciário e a escola, na normatização ou na promoção de mudanças em aspectos culturais e sociais como a língua?

4. Através das lembranças do narrador sobre sua professora, seu avô e a expectativa em relação ao filho/sobrinho, o texto sugere diferentes visões sobre a mudança linguística ao longo do tempo e entre gerações. Sociologicamente, como podemos analisar a forma como as diferentes gerações lidam com as transformações nas práticas sociais e culturais?

5. A linguagem neutra é apresentada no texto como uma "proposta de inclusão". Pensando na relação entre linguagem e identidade social, explique como a forma como usamos as palavras pode influenciar a inclusão ou exclusão de determinados grupos de pessoas na sociedade.

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