"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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MINHAS PÉROLAS

domingo, 1 de junho de 2025

O Teatro do Absurdo Digital ("O que é a lei? Uma teia de aranha através da qual as grandes moscas passam e as pequenas ficam presas." — Honoré de Balzac)

 



O Teatro do Absurdo Digital ("O que é a lei? Uma teia de aranha através da qual as grandes moscas passam e as pequenas ficam presas." — Honoré de Balzac)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Nos últimos meses, assisti a uma das peças mais surreais do teatro educacional brasileiro: a encenação da chamada "Lei do Celular". Como espectador privilegiado dos bastidores escolares, testemunhei não apenas o fracasso anunciado de mais uma medida autoritária, mas também a hipocrisia coletiva que cerca nossa relação com a tecnologia na educação.

Janeiro trouxe a grande novidade legislativa: celulares banidos das escolas. Políticos sorriram para as câmeras, gestores educacionais aplaudiram a “revolução”, e eu me preparei para assistir ao espetáculo da ingenuidade institucional em ação. Não demorou para que a realidade desmentisse o otimismo oficial.

Nos corredores da escola, deparei-me com cenas ao mesmo tempo cômicas e patéticas. Estudantes desenvolveram uma engenhosidade digna de agentes secretos: celulares escondidos em estojos, dentro de livros com páginas recortadas, ou presos à barriga com fita adesiva. A criatividade para burlar a lei superava, com folga, o empenho demonstrado nas aulas.

Marina, de dezesseis anos, riu da minha cara quando perguntei se havia parado de usar o celular na escola. "Tio, vocês adultos acham que a gente é idiota? A gente só ficou mais esperto." E estava certa. Os números não mentem: 63% dos alunos continuam levando os aparelhos diariamente. Mais da metade os utiliza durante as aulas. A lei tornou-se letra morta antes mesmo de completar seis meses.

O que mais me revolta não é a desobediência juvenil — essa, ao menos, carrega a honestidade da rebeldia declarada. É a postura dos adultos que sustenta essa farsa. Professores fingem não ver os alunos mexendo no celular porque sabem que não há estrutura para fazer a norma valer. Gestores divulgam a medida sem oferecer alternativas viáveis. Políticos criam regras sem ouvir quem vive a realidade escolar.

Professor João, colega de profissão, desabafou: "Querem que eu seja policial de celular agora. Já não basta ser professor, psicólogo e assistente social. Agora tenho que ser também guarda penitenciário digital." A amargura em sua voz traduz o sentimento de uma categoria já sobrecarregada e desvalorizada.

O absurdo se agrava quando descobrimos que apenas 4% das escolas possuem armários adequados para guardar os aparelhos. É como proibir carros nas ruas sem oferecer estacionamentos. A falta de planejamento transforma educadores em antagonistas e estudantes em criminosos digitais.

Conversei com Pedro, do terceiro ano, que resumiu a ironia da situação: "Professor, a escola diz que celular atrapalha o aprendizado, mas usa WhatsApp pra mandar recado pros pais e tablet nas aulas de inglês. É tecnologia boa e tecnologia ruim?" A pergunta, feita com a sinceridade juvenil, expôs a contradição central da nossa hipocrisia educacional.

Outro dado constrangedor: 44% dos estudantes desconhecem totalmente as novas regras ou sabem pouco sobre elas. Como cobrar o cumprimento de uma lei que sequer foi bem comunicada? É governar por decreto, não por diálogo.

Pior ainda: 27% dos professores que receberam informações sobre a mudança não as repassaram aos alunos. A cadeia de irresponsabilidade está completa — do gabinete ministerial ao chão da escola, todos transferem a culpa.

Enquanto isso, questões essenciais seguem ignoradas. Faltam livros, professores recebem salários indignos, escolas desabam — mas o grande problema nacional era o celular do adolescente.

A verdadeira nomofobia — o medo patológico de ficar sem celular — não está nos jovens. Está nos adultos que preferem proibir a educar, que escolhem o autoritarismo em vez do diálogo, que acreditam que problemas complexos se resolvem com soluções simplistas.

Diante desse circo de horrores educacional, cheguei a uma conclusão amarga: a "Lei do Celular" é apenas um sintoma da nossa incapacidade crônica de enfrentar desafios reais. É mais fácil criminalizar o aparelho do que questionar métodos pedagógicos obsoletos. Mais cômodo culpar a tecnologia do que investir na formação docente.

No fim, o que presenciei não foi a implantação de uma política educacional, mas a encenação de uma peça no teatro do absurdo. E o mais trágico é que, nessa farsa, os únicos que saem perdendo são justamente aqueles que deveríamos proteger: nossos estudantes e nossos professores. Mas isso, aparentemente, é só um detalhe no grande espetáculo da demagogia educacional brasileira.


https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/05/27/mesmo-com-proibicao-maioria-dos-estudantes-do-ensino-medio-segue-levando-celular-para-a-escola-e-admite-uso-em-sala-de-aula.ghtml (Acessado em 01/06/2025)



Minha crônica oferece uma análise crítica contundente sobre a implementação da "Lei do Celular" nas escolas, expondo a distância entre a norma e a prática, além de levantar questões sobre a hipocrisia e as prioridades no sistema educacional. Aqui estão 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias principais do texto:


1 - A crônica descreve a "Lei do Celular" como um "fracasso anunciado" e um exemplo de "ingenuidade institucional". Como a Sociologia analisa a eficácia das leis e normas sociais, e quais fatores podem explicar o descompasso entre a legislação e o comportamento dos indivíduos no contexto escolar em relação ao uso de celulares?


2 - O autor destaca a "engenhosidade" dos estudantes em burlar a lei e a omissão dos professores diante do uso de celulares em sala de aula. Sob a perspectiva da Sociologia da Educação e da Sociologia do Desvio, discuta as dinâmicas de resistência e adaptação que emergem quando normas são percebidas como inadequadas ou inaplicáveis pela comunidade escolar.


3 - A crônica critica a postura dos adultos (políticos, gestores) que impõem a lei sem considerar a realidade das escolas e sem oferecer alternativas. Como a Sociologia Política e a Sociologia das Políticas Públicas analisam o processo de formulação e implementação de políticas educacionais, e quais os impactos da falta de diálogo e da imposição de cima para baixo?


4 - O professor João expressa a sobrecarga da função docente ao ser cobrado a atuar como "policial de celular". Como a Sociologia do Trabalho analisa a expansão das responsabilidades e a desvalorização da profissão docente, e de que maneira a imposição de novas tarefas sem o suporte adequado afeta o bem-estar e a qualidade do trabalho dos professores?


5 - A crônica aponta a contradição da própria escola ao utilizar tecnologia para comunicação e ensino, ao mesmo tempo em que proíbe o uso pelos alunos. Como a Sociologia da Tecnologia analisa a ambivalência da tecnologia na sociedade e na educação, e quais critérios poderiam ser utilizados para diferenciar o uso "bom" do "ruim" de celulares no ambiente escolar?

sábado, 31 de maio de 2025

Silvaneide na sala onde o coração se cala: Coordenação. ("O fardo é leve quando levado por muitos." — Ovídio)

 



Silvaneide na sala onde o coração se cala: Coordenação. ("O fardo é leve quando levado por muitos." — Ovídio)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Foi numa sexta-feira comum — dessas em que os ponteiros do relógio correm apressados, indiferentes à dor — que o tempo, de repente, hesitou. Marcava meio-dia, mas ali, naquele instante, algo se quebrou. O som abafado da rotina deu lugar a um silêncio espesso, quase sólido, como se o ar carregasse o peso de uma despedida que ninguém soube prever.

Eu não estava lá. Mas consigo imaginar. Vejo, com a nitidez dos que sentem além da visão, a professora Silvaneide sendo chamada no corredor. Não conhecia seu andar, mas posso vê-la caminhando depressa, talvez preocupada, talvez apenas habituada à urgência que nos empurra pelos dias. Vejo seu olhar atento, talvez cansado, mas firme. E um sorriso — daqueles que ainda acolhem, mesmo quando o mundo já não merece tanto cuidado.

Ela ensinava português como quem borda sentidos com paciência e afeto. Era dessas professoras que acreditam, com fé antiga, que uma palavra bem dita pode redesenhar destinos. Mesmo quando tudo parece desmentir isso.

Naquela sexta, foi chamada à sala da pedagogia. Mais uma reunião. Mais uma cobrança. Mais uma justificativa para o injustificável. A rotina escolar transformada em tribunal — onde se julga quem ensina, mas não quem exige. A cada nova plataforma, um novo sufoco. A cada meta imposta, uma nova ferida aberta.

Não sei o que foi dito lá dentro. Sei apenas o que veio depois: um comunicado seco, um murmúrio que tentava esconder o grito. Ela caiu. Primeiro o corpo. Depois o silêncio. E, por fim, a certeza — não era apenas um desmaio.

O socorro chegou. Mas tarde demais. O coração de Silvaneide, espremido há anos sob o peso de exigências absurdas, finalmente desistiu. Não suportou.

Naquela tarde, provavelmente, não houve mais aula naquela unidade escolar. Mas, houve lições. Duras. Inadiáveis. Aprendemos que a pressão adoece. Que mata. Que reuniões podem ser tão letais quanto o descaso. E que os ombros dos professores, por mais largos que sejam, também têm limite.

Nos dias que se seguiram, vieram os comunicados, os posts, as homenagens. O sindicato, as redes sociais, os colegas — todos repetiam a palavra que agora pesa mais do que nunca: “pressão”. E eu só consigo pensar em quantas outras Silvaneides continuam em pé, adoecendo em silêncio, por puro amor à profissão.

Ela tinha 56 anos. Uma filha. Um marido. E tantos sonhos que nunca verão o tempo passar.

Na sala onde seu coração se calou, ficaram perguntas que ninguém ousa responder. Até quando faremos da escola um lugar de medo? Até quando aceitaremos a cobrança como método e a desumanidade como norma?

Hoje, ao olharem a cadeira vazia na sala dos professores, talvez seus colegas sintam que não dá mais para seguir como antes. Que a morte de Silvaneide não pode ser apenas mais um número numa planilha fria, mas um alerta. Um grito. O mais triste dos gritos — pedindo apenas um pouco de humanidade.

E, se há algum consolo possível, que ele venha em forma de mudança. Porque já não é mais possível fingir que está tudo bem. Não quando uma professora morre tentando explicar por que seus alunos não aprenderam a redigir bem, enquanto o mundo, lá fora, ainda não aprendeu a escutar. https://appsindicato.org.br/nota-de-pesar-pelo-falecimento-da-professora-silvaneide-monteiro-andrade/ (Acessado em 01/06/2025)




A Minha crônica oferece uma perspectiva tocante e crítica sobre as condições de trabalho dos professores e o impacto da pressão no seu bem-estar. Vamos a 5 questões discursivas para explorar as ideias centrais sob um olhar sociológico:


1 - A crônica descreve a morte da professora Silvaneide durante uma reunião de cobrança de metas. Como a Sociologia do Trabalho analisa a relação entre pressão no trabalho e a saúde dos trabalhadores, e quais elementos específicos do ambiente escolar podem contribuir para o aumento do estresse e do adoecimento dos professores?


2 - O texto menciona a transformação da rotina escolar em um "tribunal" onde se julga quem ensina. Sob a perspectiva da Sociologia das Instituições, como podemos analisar as mudanças nas dinâmicas de poder e nas formas de avaliação dentro da escola, e quais as consequências dessas mudanças para os profissionais da educação?


3 - A reação dos colegas de Silvaneide e do sindicato aponta para a "pressão" como um fator crucial na sua morte. Como a Sociologia pode nos ajudar a compreender a construção social da pressão no ambiente de trabalho e de que maneira essa pressão se manifesta especificamente na profissão docente?


4 - A crônica questiona até quando a escola será um lugar de medo e a cobrança será aceita como método. Utilizando conceitos da Sociologia da Educação, discuta o papel da cultura organizacional da escola e como ela pode influenciar o bem-estar dos professores, promovendo ou inibindo um ambiente de trabalho saudável.


5 - O final do texto clama por uma mudança e por mais humanidade. De que forma a Sociologia pode contribuir para a reflexão sobre a humanização das relações de trabalho na educação e quais mecanismos sociais e políticos poderiam ser implementados para promover um ambiente mais saudável e acolhedor para os professores?

sexta-feira, 30 de maio de 2025

A Falácia da Inclusão Genérica: Quando Abarcar não Significa Conter ("O essencial é invisível aos olhos." — Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe)

 



A Falácia da Inclusão Genérica: Quando Abarcar não Significa Conter ("O essencial é invisível aos olhos." — Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Era uma manhã comum, dessas em que a rotina corre apressada e os detalhes escapam por entre os dedos. Estávamos no elevador, meu filho e eu, naquele breve intervalo entre andares que, por vezes, revela mais do que uma vida inteira de convivência. “Cadê o celular?”, perguntei, revirando bolsos e bolsas com a urgência de quem sempre tem pressa. Ele ficou ali, parado, silencioso, escondendo o objeto debaixo do braço — como se nada tivesse acontecido. Naquele instante, compreendi, com dor e lucidez, uma verdade que eu já suspeitava: por mais que eu repetisse “celular”, apontasse, explicasse, aquela palavra simplesmente não existia no universo dele.

Meu filho é autista, nível três, não verbal. Todos os dias, senta-se ao fundo de uma sala de aula enquanto o professor discorre sobre “as implicações do pacifismo de Gandhi para a descolonização da Ásia”. Enquanto isso, ele colore figuras ou realiza exercícios de pareamento. É como se dois mundos paralelos coexistissem no mesmo espaço — um drama histórico complexo e um documentário silencioso sobre formas e cores, sem qualquer ponto de encontro.

E chamamos isso de inclusão.

A palavra, do latim includere, significa abarcar, conter. Mas o que vejo é exclusão travestida de boa intenção — um espetáculo ensaiado, onde todos fingimos que a presença física já é, por si, uma conquista. Como colocar alguém que não enxerga em um cinema e acreditar que isso basta para lhe oferecer cultura ou prazer.

Durante anos, ouvi discursos inflamados sobre os benefícios da “interação social”. Mas, ao observar meu filho, não vejo interação — apenas isolamento. Ele está ali, como uma ilha muda cercada de vozes que não entende. Os colegas o notam, sim, mas como se nota uma cadeira que, de vez em quando, se arrasta sozinha. Não há diálogo, nem troca. Falta o encanto, o reconhecimento mútuo, que deveria marcar qualquer convivência verdadeira.

O estalo veio quando ouvi outra mãe descrever a rotina da filha no terceiro ano do ensino médio. “Tem dia que é um caos total”, dizia. O menino autista não conseguia acompanhar, e tampouco os colegas conseguiam aprender. O professor, entre a tolerância frustrada e a repressão impotente, acabava mandando o aluno para fora da sala. E tudo recomeçava. Era a evidência crua da falência de um sistema que confunde compaixão com competência.

Passeando pelas ruas, imagino meu filho em um lugar realmente feito para ele — onde o silêncio seja respeitado, os estímulos sejam cuidadosamente dosados e os profissionais saibam falar sua língua. Visualizo um recreio estruturado, onde cada atividade tenha um propósito terapêutico, onde o aprendizado se dê pelos caminhos que ele é capaz de percorrer.

Não se trata de segregação — essa palavra pesada, carregada de culpa. Trata-se de reconhecer que a verdadeira inclusão, às vezes, exige ambientes específicos, assim como um pianista precisa de um piano — e não de uma bateria — para expressar sua arte. Meu filho tem sua própria melodia. Mas ela se perde, sufocada pelo ruído de uma sala que opera em outra frequência.

Hoje, ao vê-lo esconder o celular sem entender meu pedido, entendi algo profundo: o amor exige coragem para abandonar as certezas que nos confortam. A inclusão que desejamos para nossos filhos não pode se resumir a um ideal bonito, feito para nos fazer sentir virtuosos. Ela precisa funcionar — para eles.

Talvez seja hora de ouvirmos aqueles que, justamente por não falarem, têm muito a dizer. O silêncio do meu filho — esse silêncio que grita — diz mais do que qualquer discurso.




A crônica que escrevi levanta importantes questões sobre a efetividade da inclusão escolar para crianças com autismo não verbal e com alto grau de suporte, apontando para a necessidade de abordagens mais individualizadas e ambientes adequados. Aqui estão 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias principais do texto:


1 - A crônica descreve a experiência de um filho autista não verbal em uma sala de aula regular, onde o conteúdo parece inacessível para ele. Como a Sociologia da Educação analisa o conceito de inclusão escolar e quais os desafios para garantir que ela seja efetiva para alunos com diferentes necessidades, como o autismo com alto grau de suporte?


2 - O autor argumenta que a mera presença física de alunos com necessidades especiais em salas comuns nem sempre configura uma verdadeira inclusão, podendo até se tornar uma forma de exclusão disfarçada. Sob a perspectiva da Sociologia da Exclusão Social, discuta essa afirmação, diferenciando inclusão formal de inclusão substancial no contexto escolar.


3 - A crônica menciona a falta de interação social significativa do filho do autor em sala de aula regular. Como a Sociologia da Interação Social analisa a importância da interação para o desenvolvimento social e cognitivo, e de que maneira a escola poderia promover interações mais significativas para alunos com autismo não verbal?


4 - O texto compara a necessidade de ambientes específicos para o aprendizado de crianças com autismo com as necessidades de um pianista e seu piano. Utilizando conceitos da Sociologia da Educação, discuta a importância de se considerar a diversidade das necessidades de aprendizado e a possibilidade de diferentes modelos de escolarização para atender a essa diversidade.


5 - A crônica termina com a ideia de que "o silêncio do meu filho — esse silêncio que grita — diz mais do que qualquer discurso". Como a Sociologia pode nos ajudar a compreender e a dar voz às experiências de pessoas com comunicação não verbal, e quais implicações essa compreensão pode ter para as políticas e práticas de inclusão escolar?

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Quando Ensinar se Torna Subversão ("Posso não concordar com o que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de o dizer." — Voltaire (atribuído))


 

Quando Ensinar se Torna Subversão ("Posso não concordar com o que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de o dizer." — Voltaire (atribuído))

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Naquela manhã abafada de início de semestre, Débora atravessou o pátio da escola com passos firmes e uma pasta cheia de ideias. Quinze anos de magistério não haviam apagado o brilho nos olhos, tampouco o incômodo de ver os corredores escolares cada vez mais estreitos para quem ousava pensar diferente. Lotada no Centro de Ensino em Período Integral Gracinda de Lourdes, no centro de Goiânia, carregava mais que diários e planejamentos: trazia um projeto de seis meses, cuidadosamente elaborado e amparado pelas normas da própria Secretaria de Educação.

O tema não era gratuito. Direitos humanos, diversidade, cidadania — palavras que, para alguns, soavam perigosamente inflamáveis. Mas, para Débora, mestranda no Núcleo de Direitos Humanos da UFG, essas palavras faziam parte do cotidiano. Queria levá-las aos alunos, dar-lhes carne, rosto e voz. Para isso, convidara duas mulheres de currículo extenso e militância robusta: a professora Ângela Café e a doutora Amanda Souto.

Todos os detalhes foram informados à coordenação: datas, temas, biografias, até os trajetos das convidadas. Débora seguira os trâmites com rigor quase burocrático. Ainda assim, o silêncio foi a única resposta.

Dez dias depois do envio do cronograma, chegou a data marcada para a palestra da professora Ângela. Ela viera de forma voluntária, sem cobrar nada, movida apenas pela urgência de dialogar com os jovens. Mas, ao chegar, foi barrada.

Débora foi chamada à coordenação. A justificativa era seca: não havia autorização da instância superior. A visita, portanto, não poderia acontecer. A professora, que já aguardava na portaria da instituição, precisaria ir embora — como se fosse um incômodo, uma intrusa num espaço que deveria ser plural.

Débora contestou. Citou a Constituição. Apontou o artigo 206, inciso II, que garante a liberdade de ensinar. Lembrou que músicos, psicólogos e até lideranças indígenas já haviam sido recebidos sem a menor burocracia. Tudo em vão. Disseram-lhe que, por não haver resposta oficial, ela não deveria ter levado ninguém.

Foi então que, como quem resgata do fundo do peito um gesto de dignidade, ela reagiu. Disse que a professora Ângela entraria, sim. “Porque a escola era pública. Porque os alunos eram dela, naquele turno. Porque o saber não se curva ao silêncio administrativo.” Permitiram a entrada — não sem constrangimento —, mas impuseram uma condição: a próxima palestrante, doutora Amanda, deveria ser desmarcada.

Débora não cedeu. Exigiu que, se houvesse negativa, viesse por escrito. Ninguém quis assumir a caneta.

Naqueles corredores, entre cartazes de projetos antigos e olhares jovens sedentos por novidade, revelava-se uma contradição do tamanho do sistema: ensinar sobre direitos humanos e ser impedida de exercê-los. Era como distribuir sementes e ver alguém, às escondidas, cimentar a terra.

A situação não era isolada. Em muitas escolas do estado, diretores eram reconduzidos sem processo democrático. O espaço do diálogo dava lugar ao autoritarismo sorrateiro, disfarçado de gestão. E a autonomia docente era tratada como ameaça.

Débora não se calou. Não por vaidade, mas por princípio. Gravou um vídeo. Contou o ocorrido. Expôs a incoerência. E pediu que outros professores fizessem o mesmo: falassem, denunciassem, resistissem.

Porque, no fim das contas, ensinar nunca foi só uma profissão. Para alguns, é uma missão. Para outros, um incômodo. E, para quem entende sua potência, ensinar, hoje, é um ato político — um sopro de liberdade num ambiente onde, cada vez mais, querem fechar as janelas e trancar as portas.

Mas, há sempre frestas. E, por elas, Débora acredita, a luz entra.


https://www.instagram.com/reel/DKNapqbuBeV/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA== (Acessado em 29/05/2025)



O relato da professora Débora levanta questões sociológicas cruciais sobre a autonomia docente, a liberdade de cátedra e as tensões entre diferentes visões sobre o papel da escola na sociedade. Vamos a 5 questões discursivas para aprofundar o tema:


1 - O texto narra a dificuldade de Débora em trazer palestrantes para abordar temas de direitos humanos, apesar da liberdade pedagógica prevista. Como a Sociologia da Educação analisa o conceito de liberdade de cátedra e quais os limites e desafios para a sua efetivação no contexto escolar brasileiro?


2 - A reação da coordenação da escola em impedir a palestra sob a alegação de falta de autorização superior sugere um controle sobre o conteúdo pedagógico. Como a Sociologia do Poder examina as relações de poder dentro da instituição escolar e de que maneira instâncias superiores podem influenciar ou restringir a autonomia dos professores?


3 - Débora menciona a recondução de diretores sem processo democrático em várias escolas do estado, associando isso a um "autoritarismo sorrateiro". Como a Sociologia Política e a Sociologia das Organizações analisam a importância da participação democrática na gestão escolar e quais os potenciais impactos da sua ausência na dinâmica da comunidade educativa?


4 - A escolha de temas como direitos humanos, diversidade e cidadania é vista por alguns como "perigosamente inflamável". Como a Sociologia analisa a politização do currículo escolar e as diferentes visões ideológicas sobre quais temas devem ou não ser abordados na educação?


5 - A atitude de Débora em resistir e gravar um vídeo para denunciar o ocorrido demonstra uma forma de ação coletiva e de defesa da autonomia docente. Como a Sociologia dos Movimentos Sociais analisa as estratégias de resistência e a importância da mobilização dos professores na defesa de seus direitos e da qualidade da educação?

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Na Escola, o Escândalo Chegou Antes do Fim da Aula ("Uma conduta irrepreensível consiste em manter cada um a sua dignidade sem prejudicar a liberdade alheia." — Voltaire)

 



Na Escola, o Escândalo Chegou Antes do Fim da Aula ("Uma conduta irrepreensível consiste em manter cada um a sua dignidade sem prejudicar a liberdade alheia." — Voltaire)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Era para ser só mais uma quinta-feira. Aulas dadas, cadernos corrigidos, corredores preenchidos por vozes adolescentes. O frio de maio mal conseguia disfarçar a tensão que, de tempos em tempos, escorre pelas paredes da escola como umidade antiga. Ainda estou vivo, testemunha de um tempo em que a autoridade do professor se dissolve entre denúncias, ruídos e dedos em riste.

Naquela noite, os gritos não vinham da quadra, nem das gargalhadas exageradas que escapam da sala do oitavo ano. Vinham do portão. Um homem transtornado, olhos marejados de raiva. Pai de aluna, disseram depois. Mas, no instante em que ele invadiu a escola, não era pai — era fúria pura, músculo e acusação.

Em poucos segundos, o chão virou campo de batalha. O professor, alvo de denúncias que ninguém ali sabia se eram verdadeiras ou caluniosas, tornou-se também alvo de socos. O coordenador tentou intervir e recebeu sua cota de hematomas. Uma janela foi estilhaçada. E ali, entre cacos de vidro e perguntas sem resposta, a escola virou manchete.

Depois veio o resto: o boletim de ocorrência, as notas oficiais, os nomes registrados nos autos. “Importunação sexual, lesão corporal, ameaça.” Tudo junto, tudo misturado, como se o crime e a consequência tivessem pulado etapas. O professor foi afastado. A aluna, amparada por psicólogos. A escola, cercada por repórteres. E nós, os outros, entre o silêncio e o espanto.

É difícil explicar, para quem nunca viveu por dentro de uma escola, como esses episódios nos atravessam. Não apenas pela violência, mas pela dúvida. E se for verdade? E se não for? Quem protege quem? A justiça tarda ou se atropela? Os corredores seguem os mesmos, os alunos também. Mas algo se quebra quando a suspeita entra pela porta da frente e a confiança sai pelos fundos.

Na sala dos professores, o café esfriou. Alguém comentou que era o terceiro caso semelhante no ano. Outro disse que vai antecipar a aposentadoria. Eu fiquei olhando o nada, lembrando de quando ensinar era apenas ensinar. Agora, parece que precisamos nos proteger antes de tudo.

Quando a polícia chegou, já era tarde. A noite havia caído, e o que restava era uma escola tentando se recompor, como uma criança que leva um tombo e ainda não sabe se chora ou se finge que está tudo bem.

Sigo lecionando, porque ainda acredito. Mas, a cada novo escândalo, percebo que nossa profissão caminha numa linha tênue entre o respeito e a suspeita, entre o ensinar e o se defender. “Que Deus proteja os justos, porque a escola já não consegue.”


https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2025/05/26/professor-que-foi-agredido-em-escola-estadual-de-jundiai-e-investigado-por-importunacao-sexual-contra-aluna.ghtml (Acessado em 28/05/2025)


Meu texto lança luz sobre a complexa e delicada situação da violência e da suspeita no ambiente escolar, afetando a confiança e o próprio papel do professor. Para aprofundar essa discussão sob uma perspectiva sociológica, preparei 5 questões discursivas simples:


1 - O texto descreve a invasão da escola por um pai de aluna, culminando em agressão. Como a Sociologia da Violência analisa a irrupção da violência no espaço escolar, tradicionalmente visto como um local de aprendizado e segurança? Quais fatores sociais podem contribuir para a ocorrência de tais atos?


2 - A narrativa destaca a coexistência da agressão ao professor com a acusação de importunação sexual contra ele. Como a Sociologia das Relações de Poder analisa as dinâmicas de poder e as tensões que podem emergir entre diferentes atores da comunidade escolar (professores, alunos, pais), especialmente em contextos de acusação e violência?


3 - O autor menciona a quebra da confiança e o surgimento da dúvida ("E se for verdade? E se não for? Quem protege quem?"). Como a Sociologia da Confiança estuda a construção e a erosão da confiança nas instituições sociais, como a escola? Quais as consequências da perda de confiança nas relações entre professores, alunos e a instituição escolar?


4 - A reação dos professores na sala dos professores ("Alguém comentou que era o terceiro caso semelhante no ano. Outro disse que vai antecipar a aposentadoria.") revela o impacto psicológico e profissional desses eventos. Como a Sociologia do Trabalho e a Sociologia da Educação analisam o impacto da violência e da suspeita na saúde mental e na motivação dos professores?


5 - A frase final, "Que Deus proteja os justos, porque a escola já não consegue," expressa um sentimento de desamparo da instituição escolar. Sob a perspectiva da Sociologia das Instituições, qual o papel da escola na proteção de seus membros, e como a ocorrência de violência e suspeita pode desafiar essa função?