O Teatro do Absurdo Digital ("O que é a lei? Uma teia de aranha através da qual as grandes moscas passam e as pequenas ficam presas." — Honoré de Balzac)
Nos últimos meses, assisti a uma das peças mais surreais do teatro educacional brasileiro: a encenação da chamada "Lei do Celular". Como espectador privilegiado dos bastidores escolares, testemunhei não apenas o fracasso anunciado de mais uma medida autoritária, mas também a hipocrisia coletiva que cerca nossa relação com a tecnologia na educação.
Janeiro trouxe a grande novidade legislativa: celulares banidos das escolas. Políticos sorriram para as câmeras, gestores educacionais aplaudiram a “revolução”, e eu me preparei para assistir ao espetáculo da ingenuidade institucional em ação. Não demorou para que a realidade desmentisse o otimismo oficial.
Nos corredores da escola, deparei-me com cenas ao mesmo tempo cômicas e patéticas. Estudantes desenvolveram uma engenhosidade digna de agentes secretos: celulares escondidos em estojos, dentro de livros com páginas recortadas, ou presos à barriga com fita adesiva. A criatividade para burlar a lei superava, com folga, o empenho demonstrado nas aulas.
Marina, de dezesseis anos, riu da minha cara quando perguntei se havia parado de usar o celular na escola. "Tio, vocês adultos acham que a gente é idiota? A gente só ficou mais esperto." E estava certa. Os números não mentem: 63% dos alunos continuam levando os aparelhos diariamente. Mais da metade os utiliza durante as aulas. A lei tornou-se letra morta antes mesmo de completar seis meses.
O que mais me revolta não é a desobediência juvenil — essa, ao menos, carrega a honestidade da rebeldia declarada. É a postura dos adultos que sustenta essa farsa. Professores fingem não ver os alunos mexendo no celular porque sabem que não há estrutura para fazer a norma valer. Gestores divulgam a medida sem oferecer alternativas viáveis. Políticos criam regras sem ouvir quem vive a realidade escolar.
Professor João, colega de profissão, desabafou: "Querem que eu seja policial de celular agora. Já não basta ser professor, psicólogo e assistente social. Agora tenho que ser também guarda penitenciário digital." A amargura em sua voz traduz o sentimento de uma categoria já sobrecarregada e desvalorizada.
O absurdo se agrava quando descobrimos que apenas 4% das escolas possuem armários adequados para guardar os aparelhos. É como proibir carros nas ruas sem oferecer estacionamentos. A falta de planejamento transforma educadores em antagonistas e estudantes em criminosos digitais.
Conversei com Pedro, do terceiro ano, que resumiu a ironia da situação: "Professor, a escola diz que celular atrapalha o aprendizado, mas usa WhatsApp pra mandar recado pros pais e tablet nas aulas de inglês. É tecnologia boa e tecnologia ruim?" A pergunta, feita com a sinceridade juvenil, expôs a contradição central da nossa hipocrisia educacional.
Outro dado constrangedor: 44% dos estudantes desconhecem totalmente as novas regras ou sabem pouco sobre elas. Como cobrar o cumprimento de uma lei que sequer foi bem comunicada? É governar por decreto, não por diálogo.
Pior ainda: 27% dos professores que receberam informações sobre a mudança não as repassaram aos alunos. A cadeia de irresponsabilidade está completa — do gabinete ministerial ao chão da escola, todos transferem a culpa.
Enquanto isso, questões essenciais seguem ignoradas. Faltam livros, professores recebem salários indignos, escolas desabam — mas o grande problema nacional era o celular do adolescente.
A verdadeira nomofobia — o medo patológico de ficar sem celular — não está nos jovens. Está nos adultos que preferem proibir a educar, que escolhem o autoritarismo em vez do diálogo, que acreditam que problemas complexos se resolvem com soluções simplistas.
Diante desse circo de horrores educacional, cheguei a uma conclusão amarga: a "Lei do Celular" é apenas um sintoma da nossa incapacidade crônica de enfrentar desafios reais. É mais fácil criminalizar o aparelho do que questionar métodos pedagógicos obsoletos. Mais cômodo culpar a tecnologia do que investir na formação docente.
No fim, o que presenciei não foi a implantação de uma política educacional, mas a encenação de uma peça no teatro do absurdo. E o mais trágico é que, nessa farsa, os únicos que saem perdendo são justamente aqueles que deveríamos proteger: nossos estudantes e nossos professores. Mas isso, aparentemente, é só um detalhe no grande espetáculo da demagogia educacional brasileira.
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/05/27/mesmo-com-proibicao-maioria-dos-estudantes-do-ensino-medio-segue-levando-celular-para-a-escola-e-admite-uso-em-sala-de-aula.ghtml (Acessado em 01/06/2025)
Minha crônica oferece uma análise crítica contundente sobre a implementação da "Lei do Celular" nas escolas, expondo a distância entre a norma e a prática, além de levantar questões sobre a hipocrisia e as prioridades no sistema educacional. Aqui estão 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias principais do texto:
1 - A crônica descreve a "Lei do Celular" como um "fracasso anunciado" e um exemplo de "ingenuidade institucional". Como a Sociologia analisa a eficácia das leis e normas sociais, e quais fatores podem explicar o descompasso entre a legislação e o comportamento dos indivíduos no contexto escolar em relação ao uso de celulares?
2 - O autor destaca a "engenhosidade" dos estudantes em burlar a lei e a omissão dos professores diante do uso de celulares em sala de aula. Sob a perspectiva da Sociologia da Educação e da Sociologia do Desvio, discuta as dinâmicas de resistência e adaptação que emergem quando normas são percebidas como inadequadas ou inaplicáveis pela comunidade escolar.
3 - A crônica critica a postura dos adultos (políticos, gestores) que impõem a lei sem considerar a realidade das escolas e sem oferecer alternativas. Como a Sociologia Política e a Sociologia das Políticas Públicas analisam o processo de formulação e implementação de políticas educacionais, e quais os impactos da falta de diálogo e da imposição de cima para baixo?
4 - O professor João expressa a sobrecarga da função docente ao ser cobrado a atuar como "policial de celular". Como a Sociologia do Trabalho analisa a expansão das responsabilidades e a desvalorização da profissão docente, e de que maneira a imposição de novas tarefas sem o suporte adequado afeta o bem-estar e a qualidade do trabalho dos professores?
5 - A crônica aponta a contradição da própria escola ao utilizar tecnologia para comunicação e ensino, ao mesmo tempo em que proíbe o uso pelos alunos. Como a Sociologia da Tecnologia analisa a ambivalência da tecnologia na sociedade e na educação, e quais critérios poderiam ser utilizados para diferenciar o uso "bom" do "ruim" de celulares no ambiente escolar?