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MINHAS PÉROLAS

domingo, 4 de maio de 2025

A Fé Refletida no Espelho: Crônica Sobre Profetas Mirins ("Nós não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos." — Anaïs Nin)


 

A Fé Refletida no Espelho: Crônica Sobre Profetas Mirins ("Nós não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos." — Anaïs Nin)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Sentei-me diante da tela, distraído, numa manhã qualquer, quando um vídeo começou a rodar sozinho. Era uma criança — talvez nove, dez anos — em cima da calçada, na rua, gritando palavras com a força de quem já sofreu demais, embora a vida ainda nem tivesse tido tempo de machucá-la direito. Ao redor, adultos choravam, tremiam, erguiam as mãos ao alto como se tivessem reencontrado algo que há muito haviam perdido. Aquilo me fisgou. Não pelas palavras — frases recheadas de esperança, vitória, bênçãos que logo viriam —, mas por quem as dizia: uma menina de vestido rodado e voz aguda, segurando o microfone como se empunhasse uma espada contra o mundo.

No dia seguinte, procurei outros vídeos. Apareceu um menino, Miguel, de olhos acesos e voz surpreendentemente grave. Já tinha visto a Vitória Souza, com seu sorriso cativante e suas mensagens de superação. Não demorei a perceber: esses pequenos pregadores surgem como lampejos num mundo exausto. Falam com uma convicção assustadora sobre escolhas, promessas e castigos, ou com analogias simples sobre prosperidade e bênçãos que logo virão. Em um tempo em que os adultos se sentem cada vez mais perdidos, talvez seja reconfortante ouvir a fé na boca de quem ainda não se contaminou com as dúvidas da vida adulta. Eles falam de milagres como quem conta histórias da escola. Carregam no tom de voz uma certeza que nem os profetas antigos ousariam ter.

Mas, o que mais me inquieta — e talvez seja o cerne desse fenômeno — não é o conteúdo em si, e sim o contexto: a plateia adulta. Uma plateia, muitas vezes quebrada por dentro, que olha para essas crianças como se fossem oráculos. A emoção que se acende em tantos adultos — lágrimas nos olhos, arrepios na espinha — talvez revele mais sobre nós do que sobre eles. Estaríamos buscando, na pureza da infância, uma validação para nossas próprias crenças? Queremos, na voz de uma criança, a confirmação de que estamos no caminho certo, de que "vai dar certo"?

A performance vira culto, o culto vira espetáculo, e o espetáculo, alívio. Vitória Souza, com suas analogias e linguagem acessível, transforma o ato religioso em um show motivacional, moldado ao ritmo frenético das redes sociais, onde o conteúdo é consumido de forma rápida e emocional. Miguel, com sua erudição precoce, atrai pela novidade — talvez pelo desejo de encontrar "novas vozes", o que denuncia certa insatisfação com as lideranças tradicionais. A adesão a essas pregações, com milhões de visualizações e comentários, parece sintoma claro de uma sociedade em busca de sentido e pertencimento em tempos de incerteza. É como se a figura do profeta mirim preenchesse vazios existenciais, oferecendo uma narrativa de esperança e direção.

Mas, será mesmo fé o que estamos assistindo? Ou seria apenas um espelho voltado para nossa própria carência? Esses profetas mirins, quer queiramos ou não, são espelhos. Refletem nossa busca por sentido e pertencimento, nossa necessidade de esperança em um mundo complexo e, por vezes, assustador. A forma como consumimos seus discursos, como nos emocionamos com suas palavras, diz muito sobre nossa imaturidade emocional e nossa indisposição — ou não — para lidar com a complexidade da fé e da vida. Eles não revelam a pureza da Fé, mas escancaram, com crueldade, a imaturidade de uma sociedade que, muitas vezes, prefere a segurança da obediência ao desconforto da Liberdade — que busca respostas fáceis e confortantes em vez de questionar e enfrentar o que realmente importa.

Essas crianças não são culpadas. Estão apenas repetindo o que viram, o que ouviram, o que se espera delas. São sementes lançadas sobre um solo rachado de dúvidas, num sistema em colapso. O que me preocupa, o que realmente me inquieta, são os adultos ao redor. Esses, sim, deveriam estar guiando (nas escolas, nas ruas e nos campos) — e não sendo guiados pela voz, por vezes ensaiada, da infância.

Hoje, ao ver mais um desses vídeos circulando com milhões de visualizações — desta vez, João Vitor Ota —, eu não consegui clicar. Apenas respirei fundo. Porque entendi que o que me comoveu naqueles primeiros vídeos, e o que me perturba nesses fenômenos, não é a fé da criança — é a desesperança dos adultos. É essa busca desenfreada por algo que preencha um vazio, que nos diga que "vai dar certo", sem exigir de nós o esforço necessário para construir esse "certo" na realidade dura e complexa da vida adulta.

Não há respostas fáceis. Mas, é essencial que nós, adultos — consumidores e promotores desse conteúdo —, nos façamos essas perguntas: o que estamos realmente buscando? O que essas crianças, com suas vozes poderosas, dizem sobre nós, sobre nossa carência, nossa ânsia por validação, nosso fascínio pelo espetáculo? Será que, ao ouvirmos profecias com voz de criança, estamos tentando redimir nossas próprias perdas ou apenas buscamos, no eco da inocência, uma desculpa para não enfrentarmos as perguntas que a vida adulta já nos obrigou a fazer?

Porque, no fim das contas, o que vemos em seus olhos e ouvimos em suas palavras não é apenas fé. É, inegavelmente, o reflexo de nós mesmos — de nossas fraquezas e anseios projetados em pequenos púlpitos improvisados ou não.


https://www.youtube.com/watch?v=sTwyuMQKE5s&ab_channel=Mulheres (Acessado em 04/05/2025)


Como seu professor de Sociologia, minha crônica "A Fé Refletida no Espelho" é um material fascinante para pensarmos as dinâmicas sociais, religiosas e culturais da nossa época. Ela nos convida a olhar para além do que se vê e a questionar o porquê de certos fenômenos ganharem destaque. Com base nas suas ideias, formulei 5 questões discursivas simples:


1. O texto descreve adultos que se emocionam e buscam "sentido e pertencimento" e "esperança" em "profetas mirins". Como a Sociologia entende a busca por respostas religiosas ou espirituais em tempos de incerteza social e o papel das figuras carismáticas (mesmo que crianças) nesse processo?

2. A crônica aponta que as pregações se tornam "espetáculo motivacional" adaptado para redes sociais. De que forma a Sociologia da Religião e a Sociologia da Mídia analisam como as formas de expressar e consumir a fé se transformam na sociedade contemporânea, influenciadas pelas lógicas da mídia e do consumo?

3. O narrador sugere que o fenômeno reflete a "imaturidade emocional" de uma sociedade que busca "respostas fáceis e confortantes". Como a Sociologia pode investigar e discutir as características de uma sociedade que parece priorizar o alívio emocional imediato e a busca por certezas rápidas em detrimento da complexidade da vida e da fé?

4. A crônica vê as crianças como "espelhos" que refletem as necessidades e carências adultas. Como a Sociologia entende a relação entre as experiências e buscas individuais dos adultos e os fenômenos sociais e culturais que ganham popularidade (como o dos profetas mirins)?

5. O texto menciona a busca por "novas vozes" religiosas, o que pode indicar insatisfação com as lideranças tradicionais. Como a Sociologia analisa as mudanças nas práticas e instituições religiosas e as razões sociais que levam as pessoas a procurarem novas formas de vivenciar ou expressar sua fé?

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