Sementes do Amanhã ("Onde a palavra falha, a violência começa." — Atribuído a Sigmund Freud)
Não foi no portão da escola, tampouco num corredor de sala de aula, que me deparei com a cena. Foi na tela fria do celular, numa manhã de quinta-feira, enquanto o café esfriava na xícara. A manchete cravou-se nos olhos como um estilhaço: "Mãe de aluna agride diretora em escola de Salvador; profissional levou murro e teve cabelos arrancados." Cliquei. Vi. E o que vi não saiu mais de mim.
A imagem mostrava uma mulher entregando um bebê a alguém fora do enquadramento, como quem sabe exatamente o que está prestes a fazer. Precisava das mãos livres. Em seguida, partiu para cima da diretora com socos e empurrões. A educadora, Ticiane Oliveira Sampaio, caiu ao chão. As agressões continuaram: tapas, puxões, cabelos arrancados. Uma cena crua, silenciosa, captada pelas câmeras de segurança de um Centro Municipal de Educação Infantil ironicamente chamado “Semente do Amanhã”.
Naquele instante, caiu mais do que uma diretora. Caiu um símbolo — o da escola como espaço seguro. Vi ruir, ali, a frágil muralha que ainda protege o professor da violência que ronda as ruas. O vídeo doeu em quem, como eu, já pisou em sala de aula com o coração cheio de ideal e a cabeça cheia de boletins.
Soube depois, pelas reportagens, que a agressão teve origem em uma suspeita: a filha da agressora aparecera com um machucado no rosto. A diretora, seguindo os protocolos, registrou o ocorrido. A mãe, revoltada, acusou: "Você induziu minha filha a dizer que eu bati nela." Ela não quis se identificar, mas deu sua versão: alegou arrependimento e disse ter perdido o controle ao se sentir pressionada. Mas o controle, nesses tempos, parece ter deixado de ser prática para se tornar luxo — sobretudo quando a violência se naturaliza e a palavra falha como mediação.
Não faltaram versões: de um lado, a diretora com duas décadas de carreira na educação pública, elogiada por sua dedicação; do outro, uma mãe com o rosto tenso e o olhar perdido, dizendo que não teve intenção, que se deixou levar. E entre as narrativas, uma criança — silenciosa, talvez assustada — cuja dor deu origem ao confronto, mas cujas marcas psicológicas talvez ainda estejam por vir.
A escola onde tudo aconteceu localiza-se no bairro do IAPI, em Salvador — um território marcado por lutas diárias, onde a instituição pública de ensino é, muitas vezes, a única ponte entre o presente precário e um futuro possível. Mas que futuro se constrói quando o próprio espaço educativo é invadido pela lógica da violência? Que semente germina nesse solo? Que aprendizado se extrai quando, em vez do diálogo, a agressão se impõe como linguagem?
A Secretaria de Educação emitiu nota de apoio à servidora. Os jornais informaram que o caso foi registrado na delegacia e que uma investigação por lesão corporal foi instaurada. Tudo conforme o protocolo. Tudo redigido em tom burocrático, com verbos como "rechaça" e "lamenta", enquanto a realidade escancara: não é de agora que os profissionais da educação têm sido expostos, vulneráveis, desamparados.
Na fila do supermercado, ouvi duas mulheres comentarem o caso. Uma insinuava que há diretores que “abusam do poder”; a outra chamava a mãe de “louca”. Simplificações que nos impedem de enxergar a complexidade. Porque não se trata apenas de certo ou errado, vilão ou vítima. Trata-se de um sistema em colapso, onde o cansaço emocional, a pressão social, a desigualdade e a falta de escuta produzem combustões que não deveriam explodir no chão de uma escola.
Antes de dormir, revisitei a manchete. O vídeo já havia se espalhado. Nos comentários, um tribunal virtual julgava com fúria, sem tempo para nuances. Penso na criança com o machucado no rosto. Que tipo de lição ela aprendeu? Que adultos gritam, se agridem, e depois se arrependem? Ou que o conflito não precisa ser resolvido com gritos e socos?
Desliguei o celular e olhei pela janela. Em algum lugar de Salvador, uma diretora tenta dormir com o corpo dolorido e a alma ainda mais. Uma mãe revê os próprios atos com o peso do remorso. E uma criança, talvez, desenha uma escola onde o medo não entra, onde as palavras são maiores que os punhos, onde o amanhã é realmente semente de algo melhor.
E eu, mero espectador, me pergunto: que escola temos deixado para germinar? E o que, de fato, estamos colhendo?
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2025/05/01/mae-de-aluna-agride-diretora-em-escola-de-salvador.ghtml (Acessado em 03/05/2025)
Como seu professor de Sociologia, minha crônica é um ponto de partida muito forte para analisarmos questões sociais complexas que se manifestam no cotidiano escolar. A violência narrada na notícia nos permite discutir temas como segurança, o papel da escola na sociedade e as tensões sociais. Com base nas suas ideias, preparei 5 questões discursivas simples:
1. O texto descreve a violência ocorrendo na escola, um espaço que idealmente seria seguro. Como a Sociologia explica por que atos de violência que existem na sociedade podem acabar invadindo ou se manifestando dentro de instituições como a escola?
2. A crônica fala da escola como um "símbolo" e "espaço seguro" que é violado pela agressão. Qual a importância sociológica da escola como uma instituição social com um papel e um significado específicos na comunidade, e como incidentes de violência podem afetar essa imagem e a confiança das pessoas nela?
3. O narrador sugere que a violência aconteceu onde "a palavra falha como mediação". De que forma a Sociologia estuda os processos de comunicação e resolução de conflitos em diferentes grupos sociais e quais as consequências sociais quando o diálogo não funciona e a violência se torna a forma de expressão?
4. A crônica menciona o bairro onde a escola se localiza como um lugar de "lutas diárias" e fala em "pressão social" e "desigualdade". Como os problemas sociais e econômicos presentes em uma comunidade podem estar relacionados a tensões e conflitos que se manifestam no dia a dia, incluindo no ambiente escolar?
5. O texto é baseado na notícia e na forma como o evento foi divulgado e comentado publicamente. Como a Sociologia da Mídia entende a maneira como as notícias sobre violência são construídas e consumidas pela sociedade, e como essa circulação de informações pode influenciar a percepção pública sobre a segurança nas escolas e o trabalho dos educadores?
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