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MINHAS PÉROLAS

domingo, 6 de abril de 2025

Cansados, mas não do que pensam ("O cansaço do corpo não é nada comparado ao cansaço da alma." - Clarice Lispector)

 


 

Crônica

Cansados, mas não do que pensam ("O cansaço do corpo não é nada comparado ao cansaço da alma." - Clarice Lispector)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Março de 2025. O cansaço que outrora nos alcançava apenas em outubro, como prenúncio do esgotamento ao fim do ano letivo, já se instalara entre nós, professores, com a força inesperada de uma tempestade. A manhã outonal, com suas folhas em espiral descendente, anunciava mais um dia que, embora envolto na aparência da normalidade, carregava um peso incomum — um fardo que nem o café forte, tampouco a promessa de descanso dominical, conseguia aliviar.

Ao cruzar o limiar da sala dos professores, pairava no ar a notícia da aposentadoria precoce de Marcelina — densa como a fumaça de um incêndio mal contido. Seus olhos, antes vivos e vibrantes, agora refletiam uma opacidade triste, marca de anos de dedicação exaustiva. Ela era apenas mais um nome a engrossar a alarmante estatística de colegas que, mesmo diante da redução salarial, preferiam abandonar o campo de batalha da educação.

Na sala de aula, o cenário se repetia: um calor sufocante esmagava cinquenta alunos em um espaço cada vez mais reduzido. As janelas, escassas e mal cuidadas, ofereciam alívio irrisório. As carteiras, riscadas com a tinta da frustração silenciosa, contavam histórias que jamais seriam registradas nos boletins. E nós, ali, persistíamos — tentando semear conhecimento num solo ressecado, onde o caos silencioso já se tornara rotina.

É fundamental reafirmar: amamos ensinar. Essa é a força que nos move, a razão pela qual resistimos — apesar de tudo. A exaustão que nos consome não vem da sala de aula, da troca com os alunos, do brilho nos olhos ao descobrir um novo conceito. O desgaste nasce da burocracia sufocante, dos relatórios estéreis que consomem nosso tempo, das tarefas repetitivas que nos afastam do planejamento cuidadoso, da correção atenta, do olhar individualizado que cada estudante merece. Pagam-nos por oito aulas, mas cobram vinte. E não contabilizam o trabalho invisível que atravessa os muros da escola, invade nossos lares, ocupa nossos fins de semana.

Mais desolador que a sobrecarga é o abandono. A ausência gritante de reconhecimento. Já senti na pele a violência — física e verbal — dentro da sala. Já vi colegas desmoronarem em lágrimas após ameaças. E ainda ouvimos, como punhal, a acusação de sermos os únicos responsáveis pelo fracasso escolar, como se tivéssemos o poder de converter em milagre pedagógico a complexidade de um abandono social estruturado.

Inevitavelmente, surge a pergunta: "por que não mudar de profissão?" Talvez porque, se todos os que ainda acreditam cederem ao cansaço, o que restará? Somos nós, com anos de estudo e formação rigorosa, que ainda sustentamos a frágil estrutura da educação, agarrados a um fio obstinado de esperança. Como bem respondeu um colega, quando questionado por uma mãe: "Se todos os médicos desistissem de clinicar porque os hospitais estão sucateados, quem cuidaria dos doentes?"

A verdade incômoda é que não estamos exaustos de ensinar — estamos exauridos de tudo que nos impede de fazê-lo com dignidade. Cansamos de educar filhos que não receberam os alicerces mínimos, de preencher formulários que parecem sem propósito, de conviver com a violência que ronda nossas salas e, ainda assim, carregar a culpa por cada aprendizado não alcançado — como se estivéssemos à frente de uma equação que ignora todas as variáveis.

Enquanto a sociedade não compreender que valorizar a educação é, antes de tudo, valorizar quem educa, continuaremos assistindo ao êxodo silencioso de profissionais como Marcelina — que preferem a incerteza da aposentadoria precoce ao desgaste de permanecer num sistema que suga sua energia e destrói sua paixão.

E assim seguimos, resistindo em março com a mesma fadiga de outubro, tentando reacender, a cada manhã, a chama da vocação que teimam em apagar. Porque, no fundo, não estamos em lados opostos. Estamos todos imersos nesta complexa jornada chamada "educação" — mesmo que, por vezes, a solidão da trincheira nos faça duvidar se alguém realmente se importa com a nossa luta.


Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. A crônica descreve a exaustão dos professores em março de 2025, comparando-a ao cansaço de outubro. Sob uma perspectiva sociológica, quais fatores estruturais e conjunturais do sistema educacional brasileiro podem contribuir para esse desgaste precoce dos profissionais da educação?

2. O autor menciona a sobrecarga de trabalho dos professores, que vai além das horas em sala de aula, incluindo burocracia e atividades não remuneradas. Como a sociologia do trabalho analisa a divisão do trabalho e as condições laborais na profissão de professor, e quais as possíveis consequências dessa sobrecarga para a saúde e a qualidade do ensino?

3. A narrativa aborda a falta de reconhecimento e o sentimento de abandono vivenciado pelos professores, além da injusta culpabilização pelo fracasso escolar. De que maneira a sociologia da educação pode explicar a posição social e o status da profissão docente na sociedade brasileira, e como essa percepção social impacta o trabalho e a motivação dos professores?

4. O texto alude a um ambiente escolar desafiador, com salas superlotadas e até mesmo relatos de violência. Como a sociologia pode analisar as dinâmicas sociais dentro da escola, considerando fatores como a infraestrutura, o número de alunos por turma e as relações de poder entre os diferentes atores (professores, alunos, gestão)?

5. Na conclusão, o autor apela para a necessidade de valorização da educação e dos professores pela sociedade. Qual a importância da valorização social da educação para o desenvolvimento de uma sociedade, segundo a sociologia? Que mecanismos sociais e políticos poderiam ser mobilizados para promover essa valorização?

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A cola e o escândalo ("A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las." - Santo Agostinho)

 

A cola e o escândalo ("A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las." - Santo Agostinho)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Era uma manhã comum de outono, com folhas dançando no chão e um certo cansaço pairando no ar. Entrei na sala de aula como quem entra num campo de batalha, mas ainda com o desejo tolo – ou teimoso – de encontrar ali um pouco de dignidade. Mal sabia eu que, naquela semana, a bomba viria do lugar mais improvável: das redes sociais.

Um aluno, com mais coragem do que juízo, decidiu registrar o momento em que colava descaradamente na prova. Não satisfeito com a façanha, publicou a imagem em seu perfil, rindo como quem tira sarro da própria sorte, como quem desafia o mundo e espera aplausos. O gesto viralizou entre os colegas, ganhou curtidas, risadas, comentários... e, claro, chegou aos ouvidos da direção. Chegou aos meus também, como uma bofetada. Pois, ouvi também, dizerem que quando um professor deixa o aluno colar é um desrespeito aos outros professores, recebi essa afirmativa como uma punição, administrada pelos próprios colegas que acreditaram nisso.

O mais espantoso não foi o ato em si – afinal, "colar não é novidade para ninguém". O que me deixou perplexo foi o julgamento que veio depois. E não falo do julgamento do aluno, mas do que recaiu sobre mim, o professor. Como se a responsabilidade da trapaça fosse minha, como se eu tivesse, de alguma forma, falhado em ensinar que a honestidade vale mais do que um dez no boletim. Houve aquele discurso de que "temos que responsabilizar os alunos que colam"... Como? Se depois temos que aprová-los, não importa de que forma. Talvez se atrevem tanto, por que já sabem que vão passar de série automaticamente!

Senti o chão se mover sob meus pés. Alguns colegas cochichavam nos corredores, outros se perguntavam se eu teria sido “distraído demais”. Mas, o que ninguém pareceu considerar foi que ensinar é uma arte com limites bem definidos: podemos guiar, mas não podemos controlar; podemos inspirar, mas não podemos impedir. Não sou carcereiro, sou educador.

Aquela publicação na internet não revelou apenas um aluno tentando enganar o sistema, mas também uma geração que, por vezes, confunde visibilidade com vitória e que troca princípios por curtidas. É duro dizer, mas não basta ensinar ética se ela não for desejada; não basta mostrar o caminho se o aluno escolhe o atalho – e ainda se gaba por isso.

Dias depois, veio a punição. A escola agiu, como devia, e o aluno, enfim, colheu o que plantou. Contudo, algo em mim já havia murchado. Não pela cola, não pela imagem exposta, mas por perceber que, mais uma vez, a sociedade preferia apontar o dedo para o educador, e não para quem erra por vontade própria.

Não, "nenhum professor em sã consciência incentiva a transgressão". Nenhum professor acorda pensando em como seus alunos podem burlar regras. Nossa missão, ingrata, às vezes, é formar gente de valor. E para isso, não basta explicar fórmulas ou cobrar redações: é preciso resistir, dia após dia, à ideia de que somos culpados pelo que o mundo se recusa a ensinar em casa.

Hoje, quando entro em sala, carrego mais do que livros. Carrego dúvidas, esperanças e um cansaço que só os que lutam pelo futuro dos outros conseguem entender. E mesmo assim, continuo, porque ainda acredito que vale a pena. Acredito que um único aluno que escolhe o certo por convicção compensa todos os que se perdem pelo caminho.

E é por isso que sigo. Porque educar é plantar, e plantar, como todos sabem, é um ato de fé.


Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. O texto descreve um ato de "cola" que é registrado e compartilhado nas redes sociais, gerando diversas reações. Como essa situação ilustra a influência das redes sociais na exposição e na percepção de comportamentos desviantes no contexto escolar?

2. A narrativa expressa a perplexidade do professor diante do julgamento que recai sobre ele após o ocorrido. Sob uma perspectiva sociológica, por que a figura do professor muitas vezes é responsabilizada por atos de indisciplina ou desonestidade dos alunos?

3. O autor menciona que a publicação online revelou uma geração que "confunde visibilidade com vitória e que troca princípios por curtidas". De que maneira essa afirmação se conecta com conceitos sociológicos como cultura do consumo, individualismo e a busca por validação social?

4. A escola aplica uma punição ao aluno que colou. Qual a função sociológica da punição em instituições como a escola? Como essa punição pode ser interpretada à luz das teorias sociológicas sobre controle social e socialização?

5. Na conclusão, o professor reflete sobre a dificuldade de formar "gente de valor" e a necessidade de resistir à ideia de que são culpados pelo que a sociedade não ensina em casa. Como a sociologia aborda a relação entre a escola, a família e a sociedade na formação de valores e na prevenção de comportamentos como a desonestidade acadêmica?

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A Tragédia em Caxias ("A infância é um solo onde nada se planta em vão." - Abílio Guerra Junqueiro)

 

A Tragédia em Caxias ("A infância é um solo onde nada se planta em vão." - Abílio Guerra Junqueiro)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Ah, Caxias do Sul... Uma cidade que ressoa com o trabalho, com o aroma das uvas e o sotaque inconfundível de quem construiu sua história com as próprias mãos. E eu cá em minha Senador Canedo, inspecionando o grupo dos professores no WhatsApp quando a notícia me atingiu: uma professora esfaqueada. Na Escola Municipal João de Zorzi. No dia primeiro de abril, ironicamente, um dia que deveria ser de brincadeiras, não de lágrimas e sangue.

Senti um nó na garganta, aquela sensação incômoda que nos lembra da fragilidade da vida, da tênue linha que separa a rotina pacata do caos repentino. Imaginei a cena: a sala de aula, talvez com desenhos coloridos nas paredes, o eco das vozes adolescentes, a professora explicando as nuances de um idioma estrangeiro, tentando abrir janelas para outros mundos na mente daqueles jovens. E então, o impensável. A violência que irrompe, a lâmina que fere, a inocência que se esvai.

Três adolescentes. Dois meninos e uma menina, com idades que mal completam a década. Quinze, catorze, treze anos. A polícia os apreendeu, como se pudesse conter a perplexidade que tomou conta da cidade. A mais jovem foi liberada após ser ouvida. Os outros dois, do sétimo ano, permaneceram sob custódia. O que teria levado esses jovens a um ato tão extremo?

O vice-prefeito falou em retaliação, uma vingança cruel contra a professora que, talvez, nem sequer soubesse a razão da fúria daquele garoto. A mãe fora chamada à escola por causa de mau comportamento... Uma dinâmica familiar complexa, um grito silencioso que encontrou uma forma brutal de se manifestar. Mas, o diretor da escola, com a voz embargada pela incredulidade, duvidava dessa versão. A conversa com a mãe fora amigável, o aluno não tinha problemas com a professora, apenas "questões pedagógicas", como se a frieza das palavras pudesse amenizar a gravidade do ocorrido. Ele suspeitava de um "fato isolado para causar algum impacto". Uma frase que ecoa como um soco no estômago. Causar impacto. A que custo?

A professora, pobre alma, foi socorrida e levada ao hospital. Ferimentos leves, disseram. Mas, a dor que trespassa a carne é apenas uma parte da história. O diretor contou que ela estava "inconformada". Uma palavra que carrega um peso imenso. A incredulidade, a quebra de confiança, o medo que se instala no lugar da segurança. Ela, que dedicava seus dias a ensinar, guiar e inspirar, viu-se alvo da violência dentro do próprio espaço que deveria ser um santuário de aprendizado.

Enquanto a prefeitura emitia notas oficiais, falando em suporte à comunidade escolar e acompanhamento dos alunos envolvidos, eu pensava nos pais, nos outros estudantes, na atmosfera carregada de medo e incerteza que pairava sobre a escola. As aulas suspensas, um silêncio forçado que não apagava o barulho da tragédia.

Fiquei imaginando aquela professora, agora em casa, talvez com um curativo discreto no corpo, mas com uma cicatriz muito mais profunda na alma. O que se passa na mente de alguém que é atacado por aqueles a quem se dedica? Onde foi que nos perdemos? Em que momento a escola, que deveria ser um farol de esperança, se tornou palco de tamanha violência?

Não tenho respostas fáceis. Apenas a constatação amarga de que algo se quebrou. A fragilidade da nossa sociedade exposta de forma cruel. A necessidade urgente de olharmos para nossas crianças e adolescentes com mais atenção, de entendermos seus medos, suas angústias, seus silêncios. De reconstruirmos os laços de confiança, de resgatarmos o respeito pela figura do professor, que tantas vezes é desvalorizado e esquecido.

Que este triste episódio em Caxias do Sul não seja apenas mais uma manchete nos jornais. Que ele nos sirva de alerta, de chamado à reflexão. Que possamos aprender com a dor e construir um futuro onde a escola seja, de fato, um lugar seguro e acolhedor para todos. E que aquela professora, mesmo "inconformada", possa encontrar a força para seguir em frente, sabendo que, apesar de tudo, sua missão de educar e transformar vidas continua sendo essencial.


https://g1.globo.com/google/amp/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2025/04/01/facada-em-professora-no-rs-apreendidos-caxias-do-sul.ghtml (Acessado em 02/04/2025)


Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias principais do texto, para estimular a reflexão sociológica:


1. A crônica descreve um ato de violência dentro de um ambiente escolar. De que maneira esse evento pode ser analisado como um sintoma de questões sociais mais amplas presentes na sociedade brasileira contemporânea?

2. O texto menciona a possibilidade de o ataque ter sido uma "retaliação" devido a uma chamada da mãe de um dos adolescentes à escola por mau comportamento. Sob uma perspectiva sociológica, como as relações entre família e escola podem influenciar o comportamento dos jovens?

3. O autor da crônica questiona: "Em que momento a escola, que deveria ser um farol de esperança, se tornou palco de tamanha violência?". Discuta como a sociologia pode nos ajudar a compreender as transformações no papel da escola e os desafios que ela enfrenta na sociedade atual.

4. A crônica destaca a reação de diferentes atores sociais diante do ocorrido (vice-prefeito, diretor da escola, prefeitura). Como a sociologia explica as diferentes interpretações e respostas de indivíduos e instituições frente a um evento social como esse?

5. Ao final, o autor apela para a necessidade de "olharmos para nossas crianças e adolescentes com mais atenção". Quais fatores sociais você considera que podem contribuir para a violência juvenil, e que medidas sociológicas poderiam ser propostas para prevenir eventos como o relatado na crônica?

terça-feira, 1 de abril de 2025

Pisando em Ovos ("Onde todos pensam da mesma forma, ninguém pensa muito." - Walter Lippmann)

 

Pisando em Ovos ("Onde todos pensam da mesma forma, ninguém pensa muito." - Walter Lippmann)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Aquele café da manhã na sala dos professores tinha um quê de velório antecipado. O aroma forte da bebida preenchia o ar, mas o silêncio denso só era quebrado pelo tilintar das colheres nas xícaras. Sentei-me na última fileira, observando meus colegas. Alviro Tenbrax, o professor de biologia, parecia um equilibrista prestes a iniciar seu número, folheando suas anotações com ansiedade palpável, o marca-texto vermelho dançando freneticamente sobre as páginas.


— "Tudo bem com o conteúdo?", - arrisquei, aproximando-me. Ele soltou uma risada amarga, sem humor algum. — "Estou aqui, cortando e colando a aula sobre reprodução humana. Semana passada, uma mãe me acusou de sexualizar as crianças. Sexualizando! Com o livro didático aprovado pelo próprio MEC, imagine só."


No corredor, cruzei com Seraphina Vellor, veterana da sociologia, com mais de duas décadas de sala de aula nas costas. As olheiras profundas emolduravam um semblante cansado enquanto ela equilibrava uma pilha de provas. — "E a aula sobre movimentos sociais?", - perguntei, tentando soar otimista. Ela suspirou pesadamente. — "Nem toquei no assunto. Três alunos já estavam com os celulares em riste, prontos para me gravar, acusando-me de doutrinação. Tive que improvisar algo mais... neutro." - As aspas que fez com os dedos no ar diziam tudo sobre sua opinião sobre essa tal neutralidade.


Durante o intervalo, testemunhei Kael Durnhart, nosso professor de filosofia, sendo chamado à coordenação. O motivo? Uma reclamação formal de uma família, alegando que suas discussões sobre diferentes perspectivas religiosas feriam sua fé. Kael Durnhart, sempre tão cuidadoso em abordar cada crença com respeito e imparcialidade, agora se via no banco dos réus por fazer justamente aquilo que a filosofia exige: questionar, refletir, provocar pensamento.


Na minha própria aula de português, devolver as redações corrigidas tornou-se um potencial campo de batalha. Uma aluna, ao ver as anotações sobre seus erros gramaticais, fechou o caderno com uma violência surpreendente. — "Meu pai é advogado", - sibilou, como quem anunciava o apocalipse. — "E ele disse que humilhar aluno é assédio moral." - Tentei explicar, com a paciência que me resta, que correções são parte intrínseca do aprendizado, não um ataque pessoal. Mas, suas palavras ecoaram em minha mente como um prenúncio sombrio.


Na reunião pedagógica do dia seguinte, logo pela manhã, a diretora, com um entusiasmo forçado, anunciou a novidade: — "No próximo semestre, nossa escola será de tempo integral!" - Olhei para os lados e vi apenas cansaço estampado nos rostos dos meus colegas. Nenhuma celebração, apenas o sussurro carregado de ironia de uma colega: — "Mais horas pisando em ovos."


É curioso como, gradualmente, nos transformamos em equilibristas de palavras, em vez de educadores apaixonados. Cada termo precisa ser meticulosamente pesado, cada conceito cuidadosamente filtrado, cada correção excessivamente adocicada. Desenvolvemos uma habilidade quase circense em desviar de minas terrestres invisíveis: sabemos instintivamente quais assuntos evitar, quais debates jamais iniciar, quais verdades jamais pronunciar em voz alta.


Ao final de mais um dia exaustivo, quando os corredores da escola já estavam desertos, encontrei um pequeno bilhete deixado sobre minha mesa. — "Obrigada por ter me ensinado a pensar criticamente. Decidi cursar Letras por sua causa." - Era a caligrafia de uma ex-aluna, formada no ano anterior. Guardei aquele pedaço de papel com um misto de cuidado e melancolia. Nele residia tanto o poder de saber que, apesar de tudo, ainda conseguimos alcançar algumas mentes jovens, quanto a fragilidade de perceber que essa mesma aluna estava prestes a ingressar em uma profissão cada vez mais cerceada e amordaçada.


Fechando a porta da sala, refleti sobre o paradoxo cruel da educação contemporânea: exige-se que formemos cidadãos completos, críticos e preparados para enfrentar a complexidade do mundo, mas nos tolhem a liberdade de apresentar essa mesma complexidade em sala de aula. Querem que ensinemos os jovens a voar, mas insistem em cortar nossas asas a cada tentativa de decolagem. Na escola de tempo integral que se avizinha, teremos mais horas para ensinar cada vez menos. Mais tempo juntos, com cada vez menos liberdade para sermos verdadeiramente educadores. Talvez o nosso maior desafio, como professores, não seja mais transmitir conhecimento, mas sim preservar a coragem de continuar tentando fazê-lo, mesmo quando cada passo em direção ao ensino ressoa como o frágil estalar de cascas de ovos sob nossos pés.



Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado, para estimular a reflexão sobre os aspectos sociais envolvidos na situação vivenciada pelos professores:



1. De que maneira o relato do professor ilustra as mudanças nas expectativas sociais em relação ao papel do educador na atualidade? (Esta questão visa explorar como a sociedade contemporânea percebe e exige o comportamento dos professores.)

2. O texto descreve um ambiente escolar onde o medo de represálias parece inibir a liberdade pedagógica. Como essa dinâmica afeta o processo de socialização dos alunos e a formação de cidadãos críticos? (Esta questão busca analisar o impacto do medo no desenvolvimento do pensamento crítico e na participação cívica dos estudantes.)

3. A menção a reações de pais e alunos, como acusações de sexualização, doutrinação e assédio moral, reflete um aumento da judicialização das relações escolares. Quais são as possíveis causas e consequências dessa tendência para a comunidade educativa? (Esta questão pretende estimular a reflexão sobre a crescente interferência legal nas questões escolares e seus efeitos.)

4. A decisão de implementar a escola de tempo integral é apresentada em um contexto de dificuldades e restrições para os professores. Sob uma perspectiva sociológica, como essa medida pode impactar a dinâmica das relações sociais dentro da escola e a qualidade do ensino? (Esta questão busca analisar as possíveis implicações sociais e pedagógicas da expansão da jornada escolar no cenário descrito.)

5. Ao final do texto, o professor reflete sobre o paradoxo de se exigir a formação de cidadãos críticos em um ambiente onde a liberdade de expressão é limitada. De que maneira essa contradição pode ser compreendida à luz das teorias sociológicas sobre educação e poder? (Esta questão visa incentivar a reflexão sobre as relações de poder e os obstáculos para a efetivação dos objetivos da educação na sociedade.)

segunda-feira, 31 de março de 2025

Transfobia em Sala de Aula (Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." - Nelson Mandela)

 

Transfobia em Sala de Aula (Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." - Nelson Mandela)  ´

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A notícia cruzou as telas dos computadores e ecoou nas manchetes virtuais naquele final de março de 2025: uma professora foi afastada no Rio de Janeiro após a denúncia de preconceito contra uma menina trans de apenas 13 anos. A história, que rapidamente se espalhou, carregava em si a dor e a indignação de uma mãe defendendo a identidade de sua filha, Kauane.

Segundo os relatos divulgados pelas reportagens, Kauane, uma jovem no espectro autista, passou por uma situação humilhante na Escola Municipal Acre, em Todos os Santos. A professora de inglês, aparentemente, se recusava a reconhecer o nome social da menina, adotado no ano anterior e devidamente registrado em seus documentos.

A mãe, Rosana Sarmento Ribeiro, em declarações reproduzidas em diversos veículos, expressava sua revolta e preocupação, não apenas pela filha, mas por todas as crianças que enfrentam a mesma batalha por respeito. Ela enfatizava a necessidade de as crianças confiarem na escola, nos educadores e nos pais.

O relato materno detalhava um episódio particularmente doloroso: na frente de toda a turma, a professora perguntou quem era Kauane. Ao se identificar, a menina viu a professora escrever o seu antigo nome no trabalho escolar. Um ato que, para a mãe, foi um "absurdo", uma demonstração clara de transfobia.

A notícia também trouxe à tona um histórico preocupante. Em 2023, a mesma professora teria obrigado os alunos a rezarem em sala de aula ao descobrir que Kauane era praticante do Candomblé. Um padrão de comportamento intolerante que deixava a família ainda mais angustiada.

Diante do episódio de transfobia, Rosana não hesitou. Acompanhada da polícia, registrou um boletim de ocorrência por crime de preconceito. A imagem da menina trans de 13 anos, divulgada nas reportagens, falava por si só, carregando a fragilidade e a força de quem luta por sua identidade.

A Secretaria Municipal de Educação, sensível à gravidade da denúncia, agiu prontamente, abrindo uma sindicância e afastando a professora de suas funções. A Polícia Civil informou que as investigações estavam em andamento, com testemunhas sendo ouvidas.

Lendo essas notícias, era impossível não sentir a dor daquela mãe e a vulnerabilidade de Kauane. A escola, que deveria ser um espaço seguro e acolhedor, tornou-se palco de discriminação e desrespeito. A atitude da professora, ao ignorar o nome social de Kauane e expô-la publicamente, revelava uma profunda falta de empatia e preparo para lidar com a diversidade.

A história de Kauane ecoou em minha mente por dias. Refleti sobre a importância fundamental de um ambiente escolar inclusivo, onde todas as crianças se sintam seguras e respeitadas em sua identidade. A luta de Rosana, ao defender sua filha com tanta garra, era um exemplo de amor e coragem.

Que essa notícia sirva de alerta para a urgência de combater o preconceito em todas as suas formas, especialmente dentro das escolas. Que a história de Kauane inspire a reflexão sobre a importância de reconhecer e respeitar a identidade de gênero de cada indivíduo. Porque, no final das contas, o nome que escolhemos para nós é a primeira afirmação da nossa existência, e a escola deve ser um lugar onde todos os nomes possam florescer livremente.


https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/03/31/professora-e-afastada-de-escola-municipal-denuncia-preconceito-no-rio.ghtml (Acessado em 31/03/2025)


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado, para estimular a reflexão sobre os aspectos sociais envolvidos no caso de preconceito contra Kauane:


1. De que maneira o caso de Kauane ilustra a importância do reconhecimento da identidade de gênero no contexto escolar e social? (Esta questão visa explorar a relevância da identidade de gênero para o bem-estar e a inclusão social.)

2. A atitude da professora de se recusar a usar o nome social de Kauane e de expô-la publicamente pode ser analisada como uma forma de discriminação. Quais são as possíveis consequências psicológicas e sociais dessa discriminação para a adolescente? (Esta questão busca analisar os impactos da discriminação na vida da vítima.)

3. O texto menciona que essa não foi a primeira vez que a professora demonstrou comportamento intolerante, mencionando um episódio de intolerância religiosa. Como a ocorrência de múltiplos atos de discriminação por uma mesma pessoa pode ser compreendida sociologicamente? (Esta questão pretende estimular a reflexão sobre padrões de comportamento discriminatório e suas raízes sociais.)

4. A reação da mãe de Kauane, ao denunciar o caso às autoridades e à imprensa, demonstra um importante papel de advoca. De que maneira a ação de indivíduos e famílias pode contribuir para o combate ao preconceito e a promoção dos direitos de grupos menorizados? (Esta questão busca analisar o papel do ativismo individual e familiar na luta por justiça social.)

5. Considerando o papel da escola como uma instituição social fundamental, quais medidas você considera essenciais para garantir um ambiente escolar inclusivo e respeitoso para todos os alunos, independentemente de sua identidade de gênero ou outras características? (Esta questão visa incentivar a reflexão sobre as responsabilidades da escola na promoção da inclusão e do respeito à diversidade.)