Crônica
A RE(DES)ORIENTAÇÃO ("Aqueles que têm o poder de dar voz, geralmente são os primeiros a não querer ouvir." — Hannah Arendt)
Eu li uma história — não sei mais onde — que dizia que um certo senhor possuía um Fusca velho cuja buzina não funcionava mais. Então, ele procurou um mecânico para substituir a buzina afônica. Quando chegou à oficina, encontrou as portas fechadas, pois chovia naquele momento. Na entrada, havia um letreiro que dizia: “buzine para ser atendido”! Quais foram os sentimentos daquele motorista, são os meus agora.
A metáfora é perfeita. Aquele homem diante da oficina trancada sou eu diante da escola: alguém que tenta ser ouvido por um sistema que exige sinais sonoros de uma buzina que ele mesmo silenciou. A Educação, como aquela oficina, fecha-se justamente quando mais se precisa dela (já estou chamando esta estratégia de "pedagogia do cadeado", observando direito tudo no prédio escolar tem cadeado), e o professor, desprovido de instrumentos eficazes, é forçado a gritar no vazio, do outro lada da porta. Enquanto chove lá fora — chuva que simboliza o caos das políticas públicas e da indiferença social — resta-nos o desconforto de tentar consertar o que o próprio sistema insiste em quebrar. Assim, sigo tentando “buzinar” com palavras, na esperança de que alguém, um dia, abra as portas da escuta.
Sempre me lembrarei dos esforços para escolher as palavras certas na reunião daquele oitavo ano, diante de pais e alunos. Todos os professores estavam sinceramente preocupados com eles. A diretora, a secretária e os coordenadores também compareceram. Havia sérios problemas de indisciplina naquela turma: muitos rapazes brigavam, empurravam-se, xingavam-se e exibiam todo tipo de desrespeito, tanto aos colegas quanto à própria aula. Confesso que temi retaliações — uma ameaça fora da escola, o risco de ver meu carro danificado ou até uma denúncia injusta. Afinal, é assim que costumam reagir quando são repreendidos com firmeza.
Falei tanto que acabei falando demais. Expliquei que havia adotado uma medida ousada para tentar conter os indisciplinados: tirar meio ponto a cada vez que chamasse a atenção de alguém. E, curiosamente, estava funcionando. Eu já conseguia, enfim, explicar algo nas aulas antes dominadas pelo caos. Até então, meu trabalho se resumia a fazer com que copiassem do quadro ou resolvessem atividades mecânicas, sempre valendo ponto. Nada mais surtia efeito.
Antes mesmo de a reunião terminar — enquanto outro professor ainda falava —, uma mãe me chamou à parte com sua filha e perguntou se era “legal” tirar ponto de aluno, dizendo conhecer as normas, já que havia trabalhado em escola. Respondi com outra pergunta:
— É legal deixar sua filha perturbar todo mundo? Gritar na hora da aula, entrar e sair a todo instante, correr dentro da sala, bater nos meninos, arrastar as cadeiras, jogar o lanche nos outros, brincando de guerrear e sem respeitar as advertências do professor? Porque esta tem sido a contribuição dela à escola e ao ensino!
Não quis ferir o brio da mãe; foi apenas um desafio inútil. Aquela moça deveria ter sido educada alguns anos antes. Agora, a mudança precisa vir de dentro para fora. Tem que partir dos alunos — não da escola.
Naquele mesmo dia, a aula seguinte, logo após a reunião, foi minha. Enfrentei os quarenta indisciplinados daquela sala, já que apenas seis foram considerados bons. E tudo se repetiu como antes: nada havia mudado — eles continuavam os mesmos. Ministrei ainda outras aulas ali, e a história não foi diferente. No fim, percebi que apenas eu havia mudado. Não tiro mais ponto, não os incomodo mais, nem os impeço de alcançar seu único e verdadeiro objetivo na escola — ter nota sem mérito algum.
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🧭 ALINHAMENTO CONSTRUTIVO — Questões discursivas
1. No início do texto, a metáfora da “buzina que não funciona” é usada para representar a relação entre o professor e o sistema educacional.
👉 Explique o significado dessa metáfora e o que ela revela sobre a comunicação entre educadores e a instituição escolar.
2. O autor menciona a “pedagogia do cadeado” ao observar que tudo na escola está trancado.
👉 O que essa expressão simboliza em relação à forma como a escola lida com os problemas educacionais e sociais?
3. Analise a reação da mãe que questiona a atitude do professor.
👉 O que esse episódio revela sobre os papéis e responsabilidades de pais, alunos e escola na construção da disciplina e do respeito em sala de aula?
4. Ao final, o narrador afirma que “apenas eu havia mudado”.
👉 Qual é o sentido dessa mudança e como ela reflete a desmotivação e a impotência do professor diante das estruturas do sistema escolar?
5. A partir do texto, discuta o seguinte ponto:
👉 Como a indisciplina, o desinteresse e a busca apenas pela “nota” podem ser compreendidos como sintomas de um problema social mais amplo na Educação contemporânea?
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