Quando o Sol Retoma o Trono: BOLSONARO por Trás do Fim do Horário de Verão.
("Que adiantou o horário de verão? Verão o tamanho do aumento da conta da luz..."— DMarry)
Nas primeiras horas desta segunda-feira — ao menos no calendário oficial — meu corpo insiste em dizer que ainda é domingo. Não se trata de preguiça: é descompasso. Uma fratura íntima entre o relógio e o sangue. A sensação é a de ter sido lançado, sem aviso, num território estrangeiro: reconheço as ruas, mas não pertenço a elas. Há um estranhamento profundo, quase existencial, que não se resolve com café forte nem com força de vontade. Resta esperar que a poeira baixe, esse burburinho dos avessos, enquanto vibra em mim uma alegria clandestina, quase culpada — a última alegria que não quer reconhecer seu lugar: ontem, acordei tarde. Um pequeno triunfo contra a engrenagem.
Hoje, porém, a realidade cobra seu preço. A luz do dia me encontra já no trabalho; à tarde, ainda há claridade suficiente para uma caminhada ao ar livre, mas quando percebo, são 19h. O tempo escorreu. Perdi-me nele. Sou então obrigado a invocar organização, bom senso, prioridades — essas palavras disciplinadoras que prometem ordem, mas raramente entregam sentido. Busco um uso qualitativo do tempo, dizem os manuais, enquanto carrego a sensação persistente de atraso, como se a vida estivesse sempre um passo à frente, marcando o ritmo com um relógio que não foi feito para corpos humanos.
E tudo isso para quê? Para a farsa da economia de energia. Sacrifica-se o corpo em nome de uma eficiência abstrata, enquanto a luz elétrica falta quase toda semana, interrompida por reparos intermináveis na rede pública. Repito, com exatidão desconcertante, o que disse Norma Aparecida Silveira Moraes: “Odeio horário de verão, as manhãs voam, a gente não consegue fazer nada. Tudo muda, muitas vezes, fico perdida até com o horário da alimentação. Não consigo mais almoçar como deveria, e nem jantar, como pouco e vou passando com frutas ou café com leite.” Eis o cotidiano politizado: o almoço desregulado, o jantar improvisado, a fome domesticada. O que os políticos parecem não saber — ou fingem não saber — é que estão indo na contramão até do velho “pão e circo”: retiram o pão, bagunçam o corpo e ainda exigem gratidão.
Alguém, por acaso, pensa na saúde e no bem-estar do cidadão contribuinte? As imagens são conhecidas: sonolência, irritabilidade, mau humor, sobretudo nas manhãs roubadas. Os hormônios obedecem ao ritmo do dia, ao brilho do sol, à escuridão da noite. Mas algo mudou de soberano. Não mais os astros nos regem, mas unicamente o relógio. O tempo calculado usurpa o lugar do tempo vivido. Como diria a filosofia, trocamos a temporalidade autêntica — enraizada na experiência — por uma contabilidade de minutos que ignora o existir.
O sonolento não raciocina bem. E talvez resida aí o truque mais perverso: corpos cansados produzem consciências dóceis. Lesados dorminhocos são mais fáceis de governar. Por isso, ironicamente, agradeço ao governo Bolsonaro por ter feito a manhã do mesmo tamanho da tarde. Ao abolir o horário de verão, devolveu-se ao sol seu trono. O astro-rei reassumiu o comando do dia inteiro. Não foi apenas uma decisão administrativa; foi um gesto simbólico. Entre o artifício do relógio e a autoridade da natureza, escolheu-se, ainda que por acaso, o lado certo da história. Organizou-se o caos — não para domesticá-lo, mas para que ele, finalmente, detonasse com precisão.
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Como seu professor de Sociologia, o texto é um excelente ponto de partida para discutir como o tempo social e o tempo biológico entram em conflito na sociedade moderna. Ele usa a experiência pessoal do Horário de Verão para criticar a disciplina do trabalho, a eficiência abstrata e a relação entre corpos cansados e docilidade política. Preparei cinco questões discursivas simples para analisarmos a cronopolítica, a disciplina do tempo e a crítica ao tempo "calculado".
1. Descompasso e Estranhamento Existencial
O autor inicia o texto descrevendo um "descompasso" entre o relógio e o corpo, uma "fratura íntima" que gera um "estranhamento profundo, quase existencial" ao enfrentar a segunda-feira. Com base na Sociologia da Vida Cotidiana, analise o significado desse "estranhamento". De que forma a imposição do tempo social rígido e disciplinado (o relógio) entra em conflito com o tempo biológico e vivido (o sangue), gerando uma sensação de não pertencimento ao próprio cotidiano?
2. Tempo Qualitativo e a Disciplina da Produtividade
O narrador busca um "uso qualitativo do tempo", mas se sente em "atraso persistente" ao invocar "organização, bom senso, prioridades" — palavras que "prometem ordem, mas raramente entregam sentido". Discuta a Disciplina do Tempo e da Produtividade na sociedade contemporânea. De que maneira as exigências por "uso qualitativo" e "organização" se tornam ferramentas de disciplina que visam à eficiência abstrata (do capital) e não ao sentido da experiência humana, gerando no indivíduo uma sensação crônica de falha ou atraso?
3. O Horário de Verão como Política do Corpo
O texto critica o Horário de Verão por sacrificar o corpo em nome de uma "eficiência abstrata", citando a desregulação dos horários de alimentação e o "cotidiano politizado" . Analise o Horário de Verão sob a ótica da Cronopolítica (política do tempo). De que forma a decisão administrativa de alterar o relógio afeta diretamente os ritmos biológicos (hormônios, sono, alimentação), transformando o corpo do cidadão em um recurso a ser "sacrificado" em nome de um cálculo econômico de "economia de energia"?
4. Tempo Calculado versus Temporalidade Autêntica
O autor diferencia o "tempo calculado" — que nos rege — do "tempo vivido" ou "temporalidade autêntica" — enraizada na experiência e regida pela natureza (Sol). Explique, sociologicamente, essa troca. Como a sociedade moderna substituiu a "autoridade da natureza" (o ritmo biológico e solar) pela "autoridade do relógio" (o tempo abstrato e industrial)? Por que essa contabilidade de minutos, ao "ignorar o existir", torna o tempo uma ferramenta de controle social e não de autoconstrução?
5. Corpos Cansados e Consciências Dóceis
O texto sugere que "corpos cansados produzem consciências dóceis" e que "lesados dorminhocos são mais fáceis de governar", enxergando aí um "truque mais perverso" da manipulação política. Discuta a relação entre Exaustão Crônica e Docilidade Política. De que modo a desregulação intencional (ou negligente) do tempo e do bem-estar do cidadão (sonolência, mau humor) pode impactar sua capacidade de raciocínio crítico e de ação política, favorecendo a passividade e facilitando o exercício do poder governamental?
Nas primeiras horas desta segunda-feira — ao menos no calendário oficial — meu corpo insiste em dizer que ainda é domingo. Não se trata de preguiça: é descompasso. Uma fratura íntima entre o relógio e o sangue. A sensação é a de ter sido lançado, sem aviso, num território estrangeiro: reconheço as ruas, mas não pertenço a elas. Há um estranhamento profundo, quase existencial, que não se resolve com café forte nem com força de vontade. Resta esperar que a poeira baixe, esse burburinho dos avessos, enquanto vibra em mim uma alegria clandestina, quase culpada — a última alegria que não quer reconhecer seu lugar: ontem, acordei tarde. Um pequeno triunfo contra a engrenagem.
Hoje, porém, a realidade cobra seu preço. A luz do dia me encontra já no trabalho; à tarde, ainda há claridade suficiente para uma caminhada ao ar livre, mas quando percebo, são 19h. O tempo escorreu. Perdi-me nele. Sou então obrigado a invocar organização, bom senso, prioridades — essas palavras disciplinadoras que prometem ordem, mas raramente entregam sentido. Busco um uso qualitativo do tempo, dizem os manuais, enquanto carrego a sensação persistente de atraso, como se a vida estivesse sempre um passo à frente, marcando o ritmo com um relógio que não foi feito para corpos humanos.
E tudo isso para quê? Para a farsa da economia de energia. Sacrifica-se o corpo em nome de uma eficiência abstrata, enquanto a luz elétrica falta quase toda semana, interrompida por reparos intermináveis na rede pública. Repito, com exatidão desconcertante, o que disse Norma Aparecida Silveira Moraes: “Odeio horário de verão, as manhãs voam, a gente não consegue fazer nada. Tudo muda, muitas vezes, fico perdida até com o horário da alimentação. Não consigo mais almoçar como deveria, e nem jantar, como pouco e vou passando com frutas ou café com leite.” Eis o cotidiano politizado: o almoço desregulado, o jantar improvisado, a fome domesticada. O que os políticos parecem não saber — ou fingem não saber — é que estão indo na contramão até do velho “pão e circo”: retiram o pão, bagunçam o corpo e ainda exigem gratidão.
Alguém, por acaso, pensa na saúde e no bem-estar do cidadão contribuinte? As imagens são conhecidas: sonolência, irritabilidade, mau humor, sobretudo nas manhãs roubadas. Os hormônios obedecem ao ritmo do dia, ao brilho do sol, à escuridão da noite. Mas algo mudou de soberano. Não mais os astros nos regem, mas unicamente o relógio. O tempo calculado usurpa o lugar do tempo vivido. Como diria a filosofia, trocamos a temporalidade autêntica — enraizada na experiência — por uma contabilidade de minutos que ignora o existir.
O sonolento não raciocina bem. E talvez resida aí o truque mais perverso: corpos cansados produzem consciências dóceis. Lesados dorminhocos são mais fáceis de governar. Por isso, ironicamente, agradeço ao governo Bolsonaro por ter feito a manhã do mesmo tamanho da tarde. Ao abolir o horário de verão, devolveu-se ao sol seu trono. O astro-rei reassumiu o comando do dia inteiro. Não foi apenas uma decisão administrativa; foi um gesto simbólico. Entre o artifício do relógio e a autoridade da natureza, escolheu-se, ainda que por acaso, o lado certo da história. Organizou-se o caos — não para domesticá-lo, mas para que ele, finalmente, detonasse com precisão.
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Como seu professor de Sociologia, o texto é um excelente ponto de partida para discutir como o tempo social e o tempo biológico entram em conflito na sociedade moderna. Ele usa a experiência pessoal do Horário de Verão para criticar a disciplina do trabalho, a eficiência abstrata e a relação entre corpos cansados e docilidade política. Preparei cinco questões discursivas simples para analisarmos a cronopolítica, a disciplina do tempo e a crítica ao tempo "calculado".
1. Descompasso e Estranhamento Existencial
O autor inicia o texto descrevendo um "descompasso" entre o relógio e o corpo, uma "fratura íntima" que gera um "estranhamento profundo, quase existencial" ao enfrentar a segunda-feira. Com base na Sociologia da Vida Cotidiana, analise o significado desse "estranhamento". De que forma a imposição do tempo social rígido e disciplinado (o relógio) entra em conflito com o tempo biológico e vivido (o sangue), gerando uma sensação de não pertencimento ao próprio cotidiano?
2. Tempo Qualitativo e a Disciplina da Produtividade
O narrador busca um "uso qualitativo do tempo", mas se sente em "atraso persistente" ao invocar "organização, bom senso, prioridades" — palavras que "prometem ordem, mas raramente entregam sentido". Discuta a Disciplina do Tempo e da Produtividade na sociedade contemporânea. De que maneira as exigências por "uso qualitativo" e "organização" se tornam ferramentas de disciplina que visam à eficiência abstrata (do capital) e não ao sentido da experiência humana, gerando no indivíduo uma sensação crônica de falha ou atraso?
3. O Horário de Verão como Política do Corpo
O texto critica o Horário de Verão por sacrificar o corpo em nome de uma "eficiência abstrata", citando a desregulação dos horários de alimentação e o "cotidiano politizado" . Analise o Horário de Verão sob a ótica da Cronopolítica (política do tempo). De que forma a decisão administrativa de alterar o relógio afeta diretamente os ritmos biológicos (hormônios, sono, alimentação), transformando o corpo do cidadão em um recurso a ser "sacrificado" em nome de um cálculo econômico de "economia de energia"?
4. Tempo Calculado versus Temporalidade Autêntica
O autor diferencia o "tempo calculado" — que nos rege — do "tempo vivido" ou "temporalidade autêntica" — enraizada na experiência e regida pela natureza (Sol). Explique, sociologicamente, essa troca. Como a sociedade moderna substituiu a "autoridade da natureza" (o ritmo biológico e solar) pela "autoridade do relógio" (o tempo abstrato e industrial)? Por que essa contabilidade de minutos, ao "ignorar o existir", torna o tempo uma ferramenta de controle social e não de autoconstrução?
5. Corpos Cansados e Consciências Dóceis
O texto sugere que "corpos cansados produzem consciências dóceis" e que "lesados dorminhocos são mais fáceis de governar", enxergando aí um "truque mais perverso" da manipulação política. Discuta a relação entre Exaustão Crônica e Docilidade Política. De que modo a desregulação intencional (ou negligente) do tempo e do bem-estar do cidadão (sonolência, mau humor) pode impactar sua capacidade de raciocínio crítico e de ação política, favorecendo a passividade e facilitando o exercício do poder governamental?










