O DOUTRINAMENTO DA VACINAÇÃO ("A política é a doutrina do possível". — Otto von Bismarck)
Ainda me lembro com nitidez do som abafado dos primeiros noticiários sobre aquele vírus longínquo, algo que parecia confinado ao noticiário internacional, tão distante da nossa realidade quanto um eclipse em outro hemisfério. Mas, como uma onda silenciosa, o Coronavírus atravessou oceanos e certezas, invadindo nossas rotinas, redesenhando o cotidiano que julgávamos imutável. Suas variantes continuam a surgir, como se nos lembrassem — dia após dia — que o antigo normal talvez não passe de uma miragem no retrovisor.
Ontem, da janela da sala, vi duas pessoas se encontrando na calçada. Um mascarado se aproximou, e o outro deu um passo atrás, quase por instinto. Um balé estranho, que há pouco tempo seria incompreensível, hoje é gesto automático. Confesso que fiz o mesmo no mercado pela manhã — aquele recuo quase coreografado, quando alguém cruza o nosso novo e silencioso perímetro de segurança. Já me convenceram de que deve ser assim. Mas, às vezes, me pergunto: será que essa distância também se instalou entre as almas? Talvez precisemos de proteção não apenas contra vírus, mas contra a presença do outro — contra sua humanidade tão próxima, tão ameaçadora.
Enquanto isso, ouve-se um clamor pelas escolas públicas: querem reabrir, reviver o chamado "velho normal", como se fosse possível ressuscitar um tempo idealizado — tempo esse que, para muitos, era sustento, era rotina, era chão firme. Pressionam pelo retorno das aulas presenciais, com a justificativa de que são mais eficazes do que as remotas. Talvez isso seja verdade em alguns casos — sobretudo no delicado processo da alfabetização. Mas não consigo evitar uma pergunta incômoda: não estaríamos delegando demais à escola aquilo que deveria começar em casa?
Educar é, antes de tudo, ato de presença, e não apenas física. Quando terceirizamos completamente a formação inicial de nossas crianças, não transferimos apenas letras e números, mas abrimos as portas para que suas personalidades sejam moldadas por outros — por olhares que carregam ideologias, convicções, intenções. Ninguém ensina de forma absolutamente neutra. Assim como um repórter não consegue narrar os fatos sem deixar escapar algum traço pessoal, o educador também imprime sua marca, ainda que involuntariamente.
E é nesse espaço sutil — quase invisível — que ideologias ganham corpo, ocupando as lacunas deixadas por uma sociedade que, muitas vezes, se ausenta da formação de seus próprios filhos. A escola reflete o mundo, sim, mas também o influencia. E, então, nos perguntamos: até que ponto o Estado é verdadeiramente laico, se seus agentes carregam convicções que transbordam nas salas de aula?
Hoje à tarde, caminhando pelo bairro, ouvi um grupo debatendo a possibilidade de demissão por justa causa para funcionários que se recusarem a tomar a vacina. E lembrei dos nossos paradoxos nacionais — não somos obrigados a votar, mas precisamos do comprovante de votação para obter um passaporte. Um curioso jogo de liberdades condicionadas, de obrigações disfarçadas.
E se um aluno ou professor contrair o vírus dentro da escola? A quem caberia a responsabilidade? Poderia o Estado ser responsabilizado por isso? A verdade é que máscaras, por mais indispensáveis que sejam, não são invulneráveis. E as vacinas, ainda que representem nossa maior esperança, não são garantias absolutas.
As contradições desse tempo me fazem lembrar as palavras de Luiz Roberto Bodstein:
"O pior em sociedade é o doutrinamento, já que confundido com 'chamada à verdade'. Mas no ensino real se entrega a chave para que o aprendiz busque a resposta por si mesmo, pois se o desejar ele o fará. Já no doutrinamento se busca transferir a crença do 'correto presumido', ilegítimo pela pretensão de que se detém a verdade, da suposta prevalência de uma crença sobre outra, e de uma imposição onde só a nossa versão é válida."
Que linha tênue é essa entre ensinar e doutrinar! Enquanto o verdadeiro ensino liberta, o doutrinamento aprisiona — e o pior cárcere é aquele em que se entra acreditando ser liberdade.
Vejo igrejas de portas fechadas, protocolos que se contradizem, e uma sociedade tensionada entre o medo e a necessidade de continuar. O chamado “novo normal” se assemelha a um labirinto onde tateamos às cegas, esperando por soluções que, às vezes, ganham contornos quase messiânicos.
Talvez essa seja a lição mais dura que herdamos deste tempo: precisamos aprender a questionar, a discernir, a buscar — por nós mesmos — o equilíbrio possível entre proteção e liberdade. A pandemia um dia vai passar, mas suas marcas continuarão visíveis em nossos gestos, em nossos olhares, na forma como nos aproximamos — ou nos afastamos — uns dos outros.
Enquanto isso, sigo aqui, observando da janela o mundo mascarado. E cada recuo diante do outro se transforma em lembrete sutil: algo mudou. E talvez nós — lá no fundo — também tenhamos mudado para sempre.
Esta crônica é um mergulho nas complexidades sociais e existenciais que a pandemia acentuou, abordando temas que vão da micro-interação à estrutura do Estado. Com um olhar sociológico, podemos extrair questões importantes para análise.
Com base nas ideias principais do texto e com um foco na perspectiva sociológica, preparei 5 questões discursivas simples:
1. As Mudanças nas Interações Sociais Pós-Pandemia: A crônica observa como gestos como manter distância e o uso de máscaras se tornaram um "balé estranho" e "gesto automático". Sociologicamente, como a pandemia do Coronavírus e as medidas de saúde pública alteraram as normas de interação social e a nossa percepção sobre o espaço pessoal e a proximidade física nas relações do dia a dia?
2. A Escola como Agente de Socialização e Transmissora de Valores: O texto levanta a questão de que o professor transfere mais do que apenas conhecimento formal ("letras e números"), imprimindo também "ideologias, convicções, intenções". Sociologicamente, como a escola atua como um agente de socialização, transmitindo valores e visões de mundo (muitas vezes de forma não intencional), além do currículo oficial?
3. Ensino vs. Doutrinamento no Contexto Social: A crônica cita Luiz Roberto Bodstein sobre a diferença entre "ensino real" (dar a chave para buscar respostas) e "doutrinamento" (transferir crenças). Sociologicamente, por que é importante essa distinção para a formação de cidadãos críticos, para a autonomia de pensamento e para a dinâmica das instituições educacionais em uma sociedade democrática e plural?
4. Controle Social e Poder do Estado: O texto aborda exemplos como a possível demissão de funcionários por justa causa por recusa de vacina e a exigência de comprovante de votação para o passaporte, chamando-os de "paradoxos nacionais" e "liberdades condicionadas". Sociologicamente, como podemos analisar essas situações como mecanismos de controle social exercidos pelo Estado, que utilizam regras e exigências para influenciar comportamentos e condicionar o acesso a determinados bens ou serviços?
5. Incerteza Social e Busca por Sentido no "Novo Normal": A crônica descreve a vivência do "novo normal" como um "labirinto onde tateamos às cegas" em busca de respostas e sentido. Sociologicamente, como períodos de grande incerteza, crise e desorientação social (como uma pandemia) afetam a confiança dos indivíduos e dos grupos sociais nas instituições, nas informações e na capacidade de encontrar um sentido ou direção clara para o futuro em meio ao caos e às contradições?
Ainda me lembro com nitidez do som abafado dos primeiros noticiários sobre aquele vírus longínquo, algo que parecia confinado ao noticiário internacional, tão distante da nossa realidade quanto um eclipse em outro hemisfério. Mas, como uma onda silenciosa, o Coronavírus atravessou oceanos e certezas, invadindo nossas rotinas, redesenhando o cotidiano que julgávamos imutável. Suas variantes continuam a surgir, como se nos lembrassem — dia após dia — que o antigo normal talvez não passe de uma miragem no retrovisor.
Ontem, da janela da sala, vi duas pessoas se encontrando na calçada. Um mascarado se aproximou, e o outro deu um passo atrás, quase por instinto. Um balé estranho, que há pouco tempo seria incompreensível, hoje é gesto automático. Confesso que fiz o mesmo no mercado pela manhã — aquele recuo quase coreografado, quando alguém cruza o nosso novo e silencioso perímetro de segurança. Já me convenceram de que deve ser assim. Mas, às vezes, me pergunto: será que essa distância também se instalou entre as almas? Talvez precisemos de proteção não apenas contra vírus, mas contra a presença do outro — contra sua humanidade tão próxima, tão ameaçadora.
Enquanto isso, ouve-se um clamor pelas escolas públicas: querem reabrir, reviver o chamado "velho normal", como se fosse possível ressuscitar um tempo idealizado — tempo esse que, para muitos, era sustento, era rotina, era chão firme. Pressionam pelo retorno das aulas presenciais, com a justificativa de que são mais eficazes do que as remotas. Talvez isso seja verdade em alguns casos — sobretudo no delicado processo da alfabetização. Mas não consigo evitar uma pergunta incômoda: não estaríamos delegando demais à escola aquilo que deveria começar em casa?
Educar é, antes de tudo, ato de presença, e não apenas física. Quando terceirizamos completamente a formação inicial de nossas crianças, não transferimos apenas letras e números, mas abrimos as portas para que suas personalidades sejam moldadas por outros — por olhares que carregam ideologias, convicções, intenções. Ninguém ensina de forma absolutamente neutra. Assim como um repórter não consegue narrar os fatos sem deixar escapar algum traço pessoal, o educador também imprime sua marca, ainda que involuntariamente.
E é nesse espaço sutil — quase invisível — que ideologias ganham corpo, ocupando as lacunas deixadas por uma sociedade que, muitas vezes, se ausenta da formação de seus próprios filhos. A escola reflete o mundo, sim, mas também o influencia. E, então, nos perguntamos: até que ponto o Estado é verdadeiramente laico, se seus agentes carregam convicções que transbordam nas salas de aula?
Hoje à tarde, caminhando pelo bairro, ouvi um grupo debatendo a possibilidade de demissão por justa causa para funcionários que se recusarem a tomar a vacina. E lembrei dos nossos paradoxos nacionais — não somos obrigados a votar, mas precisamos do comprovante de votação para obter um passaporte. Um curioso jogo de liberdades condicionadas, de obrigações disfarçadas.
E se um aluno ou professor contrair o vírus dentro da escola? A quem caberia a responsabilidade? Poderia o Estado ser responsabilizado por isso? A verdade é que máscaras, por mais indispensáveis que sejam, não são invulneráveis. E as vacinas, ainda que representem nossa maior esperança, não são garantias absolutas.
As contradições desse tempo me fazem lembrar as palavras de Luiz Roberto Bodstein:
"O pior em sociedade é o doutrinamento, já que confundido com 'chamada à verdade'. Mas no ensino real se entrega a chave para que o aprendiz busque a resposta por si mesmo, pois se o desejar ele o fará. Já no doutrinamento se busca transferir a crença do 'correto presumido', ilegítimo pela pretensão de que se detém a verdade, da suposta prevalência de uma crença sobre outra, e de uma imposição onde só a nossa versão é válida."
Que linha tênue é essa entre ensinar e doutrinar! Enquanto o verdadeiro ensino liberta, o doutrinamento aprisiona — e o pior cárcere é aquele em que se entra acreditando ser liberdade.
Vejo igrejas de portas fechadas, protocolos que se contradizem, e uma sociedade tensionada entre o medo e a necessidade de continuar. O chamado “novo normal” se assemelha a um labirinto onde tateamos às cegas, esperando por soluções que, às vezes, ganham contornos quase messiânicos.
Talvez essa seja a lição mais dura que herdamos deste tempo: precisamos aprender a questionar, a discernir, a buscar — por nós mesmos — o equilíbrio possível entre proteção e liberdade. A pandemia um dia vai passar, mas suas marcas continuarão visíveis em nossos gestos, em nossos olhares, na forma como nos aproximamos — ou nos afastamos — uns dos outros.
Enquanto isso, sigo aqui, observando da janela o mundo mascarado. E cada recuo diante do outro se transforma em lembrete sutil: algo mudou. E talvez nós — lá no fundo — também tenhamos mudado para sempre.
Esta crônica é um mergulho nas complexidades sociais e existenciais que a pandemia acentuou, abordando temas que vão da micro-interação à estrutura do Estado. Com um olhar sociológico, podemos extrair questões importantes para análise.
Com base nas ideias principais do texto e com um foco na perspectiva sociológica, preparei 5 questões discursivas simples:
1. As Mudanças nas Interações Sociais Pós-Pandemia: A crônica observa como gestos como manter distância e o uso de máscaras se tornaram um "balé estranho" e "gesto automático". Sociologicamente, como a pandemia do Coronavírus e as medidas de saúde pública alteraram as normas de interação social e a nossa percepção sobre o espaço pessoal e a proximidade física nas relações do dia a dia?
2. A Escola como Agente de Socialização e Transmissora de Valores: O texto levanta a questão de que o professor transfere mais do que apenas conhecimento formal ("letras e números"), imprimindo também "ideologias, convicções, intenções". Sociologicamente, como a escola atua como um agente de socialização, transmitindo valores e visões de mundo (muitas vezes de forma não intencional), além do currículo oficial?
3. Ensino vs. Doutrinamento no Contexto Social: A crônica cita Luiz Roberto Bodstein sobre a diferença entre "ensino real" (dar a chave para buscar respostas) e "doutrinamento" (transferir crenças). Sociologicamente, por que é importante essa distinção para a formação de cidadãos críticos, para a autonomia de pensamento e para a dinâmica das instituições educacionais em uma sociedade democrática e plural?
4. Controle Social e Poder do Estado: O texto aborda exemplos como a possível demissão de funcionários por justa causa por recusa de vacina e a exigência de comprovante de votação para o passaporte, chamando-os de "paradoxos nacionais" e "liberdades condicionadas". Sociologicamente, como podemos analisar essas situações como mecanismos de controle social exercidos pelo Estado, que utilizam regras e exigências para influenciar comportamentos e condicionar o acesso a determinados bens ou serviços?
5. Incerteza Social e Busca por Sentido no "Novo Normal": A crônica descreve a vivência do "novo normal" como um "labirinto onde tateamos às cegas" em busca de respostas e sentido. Sociologicamente, como períodos de grande incerteza, crise e desorientação social (como uma pandemia) afetam a confiança dos indivíduos e dos grupos sociais nas instituições, nas informações e na capacidade de encontrar um sentido ou direção clara para o futuro em meio ao caos e às contradições?