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MINHAS PÉROLAS

Todos os bons amigos do mundo não valem um centavo que ganhamos apesar deles. Será por que amigo de velho é sempre velho.
Claudeci Ferreira de Andrade

domingo, 2 de janeiro de 2022

O DESRESPEITO TEM PREÇO ALTO ("Se a igualdade entre os homens - que busco e desejo - for o desrespeito ao ser humano, fugirei dela". — Graciliano Ramos)

 


O DESRESPEITO TEM PREÇO ALTO ("Se a igualdade entre os homens - que busco e desejo - for o desrespeito ao ser humano, fugirei dela". — Graciliano Ramos)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Acordei com a chuva batendo forte na janela, como se o céu quisesse lavar não apenas as ruas, mas também os restos mal varridos do ano anterior. Era o primeiro dia de 2025 e, sinceramente, o futuro não me parecia novo — apenas mais molhado. Do lado de fora, a enxurrada arrastava folhas, garrafas, sacolas e memórias velhas. Tudo o que não presta sempre resiste mais do que deveria.

Senti um aperto no peito. Não era apenas o clima. Era o tempo. Como se os ponteiros do relógio me empurrassem para dentro de um ano que eu não pedi, um calendário que me foi imposto como sentença. Havia algo de sombrio naquele dia — algo que, em silêncio, me dizia que o mundo não seria gentil desta vez. Nem com seus filhos, nem com seus fantasmas.

Vi, no meio da água turva, três patinhos pretos deslizando pela calçada alagada. Três. “Dois patinhos na lagoa”, diz o ditado popular para se referir ao número 22. Mas agora eram três. Sinal de que o tempo havia avançado, ainda que o país parecesse girar em círculos. Eles estavam ali, serenos, indiferentes à tempestade. Diferente de mim, que buscava abrigo até dentro de mim mesmo.

Talvez fossem urubus disfarçados, pensei. Ou talvez eu estivesse vendo tudo de forma simbólica demais. Mas, depois de sobreviver a pragas, pandemias, políticos e promessas não cumpridas, a gente se acostuma a decifrar o mundo por metáforas. A natureza — essa velha senhora de humores imprevisíveis — já não aceita mais nossas desculpas. Desmatamos, queimamos, fingimos não ver. E agora ela responde — não com fúria, mas com justiça.

Lá fora, o novo governo prometia mudança. Mudança. Palavra que já me soa como slogan de campanha. O povo queria reforma, mas esqueceu de se reformar primeiro. Atiraram pedras na corrupção, mas mantiveram a janela da própria casa aberta. E, no fundo, é sempre assim: enquanto uns rezam por redenção, outros negociam com o caos.

A humanidade brinca de herói armado, como se a violência fosse encenação. Mas quem aponta uma arma sem intenção de atirar esquece que há sempre alguém do outro lado disposto a revidar. Já nos roubaram o ouro, o voto e a esperança. E a história nos sussurra: ferido, o povo volta. Volta para cobrar.

No fim da tarde, a chuva cessou, mas o céu permaneceu cinza. Os patinhos haviam sumido — como tudo que é passageiro. Restava apenas o silêncio: espesso, denso, necessário.

Enquanto eu fechava a janela, entendi que o medo de recomeçar é só o eco daquilo que ficou mal resolvido. E recomeçar exige mais do que força: exige coragem para olhar o mundo como ele é — e, ainda assim, escolher continuar.

Talvez o verdadeiro milagre seja seguir em frente, mesmo quando tudo diz para parar. Porque viver, neste planeta ferido, é um ato de resistência. E crer na mudança, mesmo que ela venha devagar, é um ato de fé.


Com base na crônica apresentada, elaborei cinco questões discursivas que exploram seus temas principais sob uma perspectiva sociológica:


O narrador afirma que "o povo queria reforma, mas esqueceu de se reformar primeiro". Discuta como essa ideia se relaciona com o conceito de transformação social, considerando a relação entre mudanças institucionais e mudanças de consciência individual.


A crônica utiliza a metáfora da chuva e da enxurrada que "arrasta o que não presta". Explique como fenômenos naturais podem ser interpretados sociologicamente como expressões simbólicas de processos de purificação ou renovação social.


O texto menciona que "Já nos roubaram o ouro, o voto e a esperança". Analise como essa afirmação reflete a percepção de traumas históricos coletivos e sua influência na formação da identidade social brasileira.


"A humanidade brinca de herói armado, como se a violência fosse encenação." A partir dessa frase, reflita sobre como a banalização da violência e sua representação na sociedade contemporânea afetam as relações sociais.


Na conclusão, o narrador afirma que "viver, neste planeta ferido, é um ato de resistência." Discuta como o conceito sociológico de resistência pode ser aplicado às formas de enfrentamento das crises ambientais e sociais mencionadas no texto.

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