"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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MINHAS PÉROLAS

sexta-feira, 14 de março de 2025

Sob O Olhar da Coordenadora ("O verdadeiro segredo da observação é ver mais do que os olhos podem registrar." )

 

Sob O Olhar da Coordenadora ("O verdadeiro segredo da observação é ver mais do que os olhos podem registrar." )

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A coordenadora pode assistir à aula do professor? Sim, pode. Mas, a questão que realmente interessa não é essa! O que ela vai fazer lá dentro? Como se comportar? E, mais importante, qual será o impacto de sua presença?

Naquela manhã, quando vi a silhueta da coordenadora na porta da sala, senti um calafrio percorrer minha espinha. Já sabia o que aquilo significava. Ela não viera apenas para uma visita cordial ou para trocar algumas palavras amáveis. Ela queria ver, avaliar, medir. Sempre que isso acontecia, em meu período probatório, quando eu estava recém concursado, a sensação era a de estar sob um microscópio, com cada palavra e gesto analisados minuciosamente.

Ela entrou sem alarde, ocupou um canto discreto ao fundo da sala e cruzou os braços, como um espectador num teatro silencioso. Os alunos perceberam. Não era apenas a minha aula que estava sob escrutínio, mas também o comportamento deles. Sorrisos contidos, olhares desconfiados, o burburinho da sala de aula, que normalmente dançavam entre o permitido e o insolente, tornaram-se um sussurro tímido. A coordenadora era um farol de vigilância, um olho bem visível que pesava sobre cada ação. Suspeitava que, quando eles descobrissem que o alvo era apenas o professor, a presença da coordenadora se tornaria outro motivo para os alunos hostilizarem o docente, pois, é sabido que os inimigos se unem quando o adversário é comum. Você sabia que, em muitas vezes, os alunos ficam na porta da sala com o professor dentro da sala para a coordenadora "brigar" com ele, essa é a intensão. A coordenadora várias vezes foi na minha sala, vendo os meninos fora, botava a cabeça na porta e me perguntava: — Professor, o que este meninos fazem fora da sala? E os "estudantes" entravam rindo. E quase sempre acrescentavam: — O professor não está passando nada, não!

Fiz o que sempre faço. Expliquei, perguntei, provoquei reflexões. O ritmo da aula seguiu seu curso, ainda que eu sentisse o peso daquela observação. A presença da coordenadora me lembrava que ensinar não era só um ofício, mas também um espetáculo, e que, como todo espetáculo, estava sujeito a críticas.
Após a aula, veio a devolutiva: — "Gostei da sua abordagem, mas notei que alguns alunos não estavam tão engajados... Notei também e sei que sua matéria de ensino, a sociologia, não é uma ciência exata, portanto não há um roteiro que se segue com precisão cirúrgica. É um jogo de tentativa e erro, um equilíbrio delicado entre o que planejamos e o que acontece de fato".
A coordenadora se foi, e eu fiquei ali, sozinho na sala vazia, pensando na estranha relação entre quem ensina e quem avalia. A ideia de que alguém observa para entender e melhorar é bonita na teoria, mas, na prática, muitas vezes se transforma em uma sensação incômoda, quase invasiva.
E então, concluí: mais importante do que assistir a uma aula é compreender a complexidade de ser professor. Porque há algo que nenhum observador pode captar de fato: o peso diário da responsabilidade, os desgastes visíveis e invisíveis, o cansaço que se disfarça em entusiasmo. Só quem está dentro do palco da sala de aula entende a real arte de ensinar.
No fim das contas, a coordenadora pode assistir à aula. Mas, será que ela realmente vê? Aí, o povo responde: — "Olha, esse papo todo é muito bonito, mas, na real, ninguém aqui fica preocupado com a formação da coordenadora pedagógica, não. O que a galera quer saber é se ela vai ajudar a melhorar a escola ou só ficar de 'blá-blá-blá'. E quem é que se importa com essa história de especialização? A pedagoga pode não saber de matemática ou física, mas se ela for boa de papo e souber lidar com a galera, já tá valendo. E outra, se ela é coordenadora, é porque tá no comando, né? O povo tá cansado de esperar que alguém que 'entende de educação' venha resolver as paradas, porque o que rola mesmo é que, às vezes, quem manda lá não sabe nada de sala de aula. Então, se a pedagoga souber organizar a escola e dar uma ajuda pros professores, já tá ótimo, mesmo sem saber os detalhes de todas as matérias".


Questões Discursivas sobre a Observação em Sala de Aula


1. A presença da coordenadora na sala de aula altera o comportamento dos alunos e do professor? Explique como essa alteração pode influenciar a avaliação da aula e a devolutiva ao professor.

2. O texto menciona que a sociologia não é uma ciência exata. Como essa característica da disciplina influencia a forma como a aula é conduzida e avaliada?

3. A devolutiva da coordenadora se concentra no engajamento dos alunos. Quais outros aspectos da aula poderiam ser observados e discutidos na devolutiva?

4. O autor questiona se a coordenadora "realmente vê" ao observar a aula. O que essa pergunta sugere sobre a diferença entre observar e compreender o processo de ensino e aprendizagem?

5. O texto aborda a "estranha relação entre quem ensina e quem avalia". Como essa relação pode ser construída de forma mais colaborativa e menos tensa?

segunda-feira, 10 de março de 2025

Quando o Educador Falha ("A educação nunca é inocente." - George Orwell)

 

Quando o Educador Falha ("A educação nunca é inocente." - George Orwell)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A tragédia de Evaëlle ecoa como um grito que atravessa a alma de qualquer educador. Não se trata apenas de um caso isolado, mas de um reflexo de algo mais profundo: a sociedade que cria suas próprias vítimas e, muitas vezes, não consegue lidar com as consequências de suas construções. Uma sombra paira sobre todos os envolvidos no processo de ensino, desde o aluno que se vê excluído até o professor que, por mais que busque a didática, pode, inadvertidamente, tornar-se um algoz.

Tudo começou em 2019, quando Evaëlle, aos 15 anos, decidiu pôr fim à sua dor. Encontrada sem vida por seu pai em sua casa em Herblay, nos arredores de Paris, sua partida abalou a todos que a cercavam. A busca por explicações, dúvidas e causas logo tomou forma. O olhar recaiu sobre o ambiente escolar, afinal, quem melhor do que a escola, um espaço que deveria ser de acolhimento e aprendizado, poderia ser responsável por minar a confiança de uma jovem a ponto de fazê-la desistir de viver?

O tribunal, que começou a julgar o caso nesta segunda-feira, trouxe à tona o nome da professora envolvida: uma mulher de 62 anos que, como muitos, viu sua rotina escolar marcada pelo peso das responsabilidades da profissão. No entanto, como muitos, ela também cometeu erros, talvez imperceptíveis, talvez fatais. Acusada de "assédio escolar", ela agora enfrenta o julgamento de sua ética e de suas ações em um contexto onde a linha entre o educativo e o cruel se tornou perigosamente tênue.

Evaëlle, segundo relatos, tornou-se alvo de uma série de humilhações que destruíram seu espírito. Como se o bullying fosse uma prática normal, a professora teria pedido aos alunos que comentassem o que os incomodava em Evaëlle, na frente de toda a turma, expondo-a ao riso e ao desdém. Evaëlle, vulnerável e fragilizada, começou a chorar. E, ao invés de acolhimento, recebeu insensibilidade. A professora, irritada, insistiu para que a aluna falasse, como se a dor da jovem fosse um obstáculo a ser vencido para restabelecer a ordem na sala. Essa, talvez, tenha sido a gota d'água em um mar de sofrimento.

A frase da advogada da família de Evaëlle ecoa: "A escola serve para ensinar, proteger, criar cidadãos em um ambiente de calma e harmonia". A escola é um templo de transformação, onde cada palavra e ação pode moldar ou despedaçar. A linha entre educador e opressor, por vezes invisível, existe, e quem ensina não pode esquecer sua responsabilidade humana.

Hoje, a professora, antes no lugar da sabedoria e do cuidado, está na posição oposta. Sua imagem, antes respeitada, se dissolve diante do tribunal, e o peso da acusação se torna maior que as notas que corrigiu. Não é apenas o peso das palavras, mas o da indiferença, da falta de empatia e da insensibilidade.

O que aprendemos com a queda de Evaëlle e o julgamento da professora? A maior lição é a de que o olhar atento é fundamental. Cada aluno, com sua complexidade emocional, deve ser visto como um ser inteiro, não apenas um corpo na sala de aula. A educação, antes de saberes, é construção de dignidade, autoestima e respeito. A missão do educador é formar seres humanos completos e respeitosos.

O julgamento da professora é um reflexo de todos nós, de uma sociedade que negligencia a dor dos mais frágeis e esquece que somos responsáveis pelo sofrimento que causamos, por ação ou omissão.


https://extra.globo.com/mundo/noticia/2025/03/professora-e-julgada-por-assedio-escolar-apos-suicidio-de-aluna-na-franca.ghtml (Acessado em 10/03/2025)


Aqui estão 5 questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A escola como reflexo da sociedade: O texto afirma que a tragédia de Evaëlle é um reflexo de uma sociedade que "cria suas próprias vítimas". Como a sociologia pode analisar a relação entre a escola e a sociedade, e de que forma as desigualdades e violências sociais se manifestam no ambiente escolar?

2. O papel do professor na prevenção do bullying: O texto destaca a responsabilidade do professor em criar um ambiente de "calma e harmonia" e em evitar que o bullying se manifeste. Como a sociologia pode analisar o papel do professor na prevenção do bullying, considerando as dimensões pedagógicas, éticas e emocionais do trabalho docente?

3. A construção social da vítima e do algoz: O texto menciona que o professor pode, "inadvertidamente, tornar-se um algoz". Como a sociologia pode analisar a construção social das identidades de vítima e algoz no contexto escolar, e de que forma os discursos e práticas pedagógicas podem contribuir para essa construção?

4. A importância da empatia e do cuidado na educação: O texto ressalta a necessidade de um "olhar atento" para as complexidades emocionais dos alunos e a importância da empatia e do cuidado na educação. Como a sociologia pode analisar o papel das emoções na educação e de que forma as práticas pedagógicas podem promover a empatia e o cuidado entre os alunos?

5. A responsabilidade coletiva na prevenção do bullying: O texto conclui que o julgamento da professora é um reflexo de uma sociedade que "negligencia a dor dos mais frágeis". Como a sociologia pode analisar a responsabilidade coletiva na prevenção do bullying, considerando o papel da escola, da família, da comunidade e das políticas públicas?

sábado, 8 de março de 2025

À Beira do Esgotamento: Confissões de um Professor ("O reconhecimento é um banquete que se serve aos mortos." - Provérbio popular )

 

À Beira do Esgotamento: Confissões de um Professor ("O reconhecimento é um banquete que se serve aos mortos." - Provérbio popular )

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Hoje li uma notícia que me fez rir de nervoso: um estudo da Universidade Federal de São Paulo concluiu que um terço dos professores da Educação Básica sofre de Burnout. "Um terço?" Joguei a cabeça para trás numa gargalhada amarga que ecoou pelas paredes da sala vazia dos professores.

Quem são esses outros dois terços privilegiados? Na minha escola, parece que a proporção é inversa: a cada três, quatro já acendem velas para o próprio funeral profissional.

Fevereiro mal terminou e já vejo nos olhos dos meus colegas recém-chegados o cansaço que costumava aparecer só em novembro. Cadê aquele brilho de quem começa o ano letivo cheio de planos e expectativas? Evaporou como orvalho sob o sol inclemente da nossa realidade.

Esta manhã, enquanto tomava apressadamente meu café, me peguei estudando o calendário escolar não para planejar aulas, mas para mapear os próximos feriados como quem traça rotas de fuga. O Carnaval mal passou e já estou contando os dias para a próxima pausa — pequenos oásis num deserto, este que parece se estender infinitamente.

Curioso como meu corpo aprendeu a antecipar o cansaço. Programo meu esgotamento futuro com a mesma precisão que programo minhas aulas. "Aqui, nesta quinta-feira de março, terei uma crise de ansiedade; então entre a primeira e a segunda aula, reservarei três minutos no banheiro para me recompor."

Os carros têm luzes no painel que acendem quando algo não vai bem. Nós, professores, funcionamos sem esse sistema de alerta. Vamos rodando sem óleo, engasgando, superaquecendo, até que um dia simplesmente paramos de funcionar.

Não conheço pessoalmente esse tal de "Burnout", mas tenho certeza de que sou mais íntima do cansaço do que ele o é. Se tem algo que se espalha com mais eficiência que piolho nas escolas, é o desânimo e as dívidas de consignado. Ambos coçam, incomodam e parecem impossíveis de eliminar completamente.

A sala de aula é um vampiro energético. Suga nossas forças com uma voracidade impressionante. Um ano lecionando equivale a seis de vida normal — isso não é cálculo oficial, é percepção de quem sente na pele. Como aqueles aparelhos que medem a "idade biológica", deveríamos ter um que medisse a "idade docente". Tenho 65 anos no RG e uns 87 na alma professoral.

E a cada ano fica mais intenso. A inclusão aumenta (o que é maravilhoso), mas o suporte diminui (o que é trágico). Diretores cobram resultados, alunos desafiam limites, pais transferem responsabilidades e o governo? Ah, o governo apenas observa de longe, oferecendo palmas no Dia do Professor e migalhas no contracheque.

Não sou professor de matemática, mas até eu sei que essa conta não fecha. E para provar que não estou exagerando, basta olhar ao redor: vejo colegas engolindo ansiolíticos com o café da manhã, outros abandonando a profissão que escolheram com amor e alguns simplesmente existindo entre uma aula e outra, como fantasmas de quem um dia foram.

Enquanto escrevo estas linhas, pergunto-me quantos de nós sobreviverão até dezembro sem desabar. Somos equilibristas em uma corda bamba cada vez mais fina, carregando nas costas não apenas nossos fardos, mas o peso de um sistema que nos valoriza em discursos e nos abandona na prática.

Para quem lê esta crônica e não é professor: imagine trabalhar incansavelmente sabendo que, não importa o quanto se esforce, nunca será suficiente. Agora multiplique essa sensação por duzentos dias letivos.

Para meus colegas de profissão que estão lendo: vocês não estão sozinhos neste esgotamento. Estamos todos juntos neste barco que parece furar um pouco mais a cada onda.

E para mim mesmo: respire. Um dia após o outro. Um feriado após o outro. E talvez, apenas talvez, descubramos como pertencer àqueles misteriosos dois terços que, segundo a pesquisa, ainda não sucumbiram.

Por enquanto, sigo contando feriados e sonhando com julho.


Aqui estão 5 questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A Síndrome de Burnout e a precarização do trabalho docente: O texto aborda a alta incidência de Burnout entre professores da educação básica. Como a sociologia pode analisar a relação entre a precarização do trabalho docente (salários defasados, falta de suporte, etc.) e o desenvolvimento dessa síndrome?

2. O papel das instituições na saúde mental dos professores: O texto critica a falta de suporte e reconhecimento por parte das instituições (escola, governo, etc.). Como a sociologia pode analisar o papel das instituições na promoção da saúde mental dos professores e na prevenção do Burnout?

3. A naturalização do sofrimento e a cultura do esgotamento: O texto mostra como o sofrimento e o esgotamento são naturalizados no ambiente escolar. Como a sociologia pode analisar a construção social da "cultura do esgotamento" e seus impactos na saúde mental dos professores?

4. A relação entre inclusão e sobrecarga de trabalho: O texto aponta para a contradição entre o aumento da inclusão e a diminuição do suporte. Como a sociologia pode analisar os desafios da inclusão no contexto escolar e seus impactos na sobrecarga de trabalho dos professores?

5. O papel da sociedade na valorização do professor: O texto critica a falta de valorização do professor pela sociedade. Como a sociologia pode analisar o papel da sociedade na construção da imagem do professor e na promoção de uma cultura de valorização do trabalho docente?

quinta-feira, 6 de março de 2025

Café, Papel e Outras Contribuições "Voluntárias" ("Não se pode esperar construir um mundo melhor com pessoas piores." - Madre Teresa de Calcutá)

 Crônica 



Café, Papel e Outras Contribuições "Voluntárias" ("Não se pode esperar construir um mundo melhor com pessoas piores." - Madre Teresa de Calcutá)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Foi numa terça-feira comum que notei o celular de Maria vibrar insistentemente sobre a mesa da sala dos professores. Ela olhou para a tela, suspirou profundamente e guardou o aparelho no bolso do jaleco azul-marinho que usávamos como uniforme na escola prisional onde lecionávamos.

— "Mais uma vaquinha?", — perguntei, enquanto tentava organizar as provas que precisava corrigir antes do fim da semana.

— "Vinte e cinco reais este mês" — respondeu ela com um sorriso amarelo. — "Para material escolar dos alunos."

Trabalhar numa escola dentro de uma unidade prisional já trazia desafios próprios: alunos com histórias complexas, segurança reforçada e a constante sensação de estar fazendo algo significativo, ainda que dentro de circunstâncias difíceis. Mas havia um detalhe que não constava nas descrições oficiais do cargo: as contribuições "voluntárias".

O grupo de WhatsApp dos professores se transformava, mês após mês, em um mural de cobranças disfarçadas de pedidos. Primeiro foi o café – afinal, quem aguenta dar aulas às sete da manhã sem uma dose generosa de cafeína? Depois, o papel sulfite, que misteriosamente acabava antes que as remessas oficiais chegassem. E agora, material escolar para os alunos.

"Voluntário, mas necessário", dizia sempre a mensagem da coordenação, acompanhada de um emoji sorridente que só aumentava nossa indignação silenciosa.

Naquela tarde, enquanto observava Maria transferir os vinte e cinco reais via Pix, lembrei-me da reunião pedagógica da semana anterior, onde o diretor exibiu slides impressionantes sobre os recursos recebidos pela escola. Falou do Programa Nacional de Alimentação Escolar, do Fundo da Educação Básica, das verbas estaduais complementares. Números que somavam muito mais do que algumas resmas de papel e lápis de cor.

"Você não acha estranho?", perguntei a Maria enquanto saíamos para o intervalo. "Tanta verba específica e a gente precisa fazer vaquinha para comprar o básico?"

—"Acho" — ela respondeu, olhando para os lados como quem verifica se não está sendo observada. — "Mas quem vai ser o primeiro a questionar? Lembra do Carlos? Questionou as vaquinhas no semestre passado e, coincidentemente, perdeu as aulas extras que complementavam seu salário."

O medo era real e palpável como as grades que separavam a escola do restante da prisão. Não era apenas o valor – cinco, dez, vinte e cinco reais escorregando de nossos bolsos já apertados por salários defasados. Era o princípio da coisa, a contradição evidente entre os recursos anunciados e a realidade que vivíamos.

Na semana seguinte, a notícia estampou os jornais locais. Um vereador havia levado a denúncia ao plenário da Câmara Municipal. Prints das nossas conversas no WhatsApp circulavam como provas do que, para nós, era apenas o cotidiano naturalizado.

De repente, aquilo que discutíamos em sussurros na sala dos professores estava sendo debatido abertamente por políticos. Um vereador ligado ao magistério duvidava da veracidade das denúncias – "diretores prestam contas de todo recurso" — dizia ele com a convicção de quem conhece as regras, mas não o jogo.

Quando retornamos à escola após a repercussão do caso, um novo aviso no quadro da sala dos professores informava que "todas as contribuições estavam suspensas até segunda ordem" e que "uma sindicância interna apuraria os fatos".

Observei Maria sorrir genuinamente pela primeira vez em semanas.

— "Sabe o que é mais irônico?" — ela me disse enquanto servíamos café – agora fornecido oficialmente pela escola. "Não precisava de vereador, de jornal, de escândalo. Bastava seguir as regras que já existem."

Naquela tarde, percebi que, às vezes, a educação acontece também fora das salas de aula. Entre professores que precisam aprender a dizer não a pequenas injustiças, gestores que precisam reaprender o significado de transparência e um sistema que precisa ser constantemente vigiado para funcionar como deveria.

As vaquinhas para café e papel sulfite podem parecer insignificantes diante dos grandes problemas da educação brasileira. Mas são nesses pequenos desvios que começamos a normalizar o inaceitável. E talvez seja justamente aí – no café servido e no papel distribuído – que possamos começar a construir uma escola onde os recursos cheguem realmente a quem deles necessita: alunos e professores. https://www.feiradesantana.ba.leg.br/vereador-pede-apuracao-de-denuncia-sobre-contribuicao-de-professor-para-compra-de-material-de-alunos-em-escola-do-estado (Acessado em 6/3/2025)


Questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A cultura da "vaquinha" e a precarização do trabalho docente: O texto revela a prática das "vaquinhas" como uma forma de suprir a falta de recursos na escola prisional. Como a sociologia pode analisar essa prática sob a ótica da precarização do trabalho docente e da cultura da "vaquinha" no contexto educacional brasileiro?

2. O papel da burocracia e da gestão escolar: O texto critica a falta de transparência na gestão dos recursos e a inércia da burocracia diante da falta de materiais básicos. Como a sociologia pode analisar o papel da burocracia e da gestão escolar na perpetuação de desigualdades e na falta de recursos nas escolas?

3. A naturalização da injustiça e o medo da represália: O texto mostra como a prática das "vaquinhas" é naturalizada pelos professores, que temem represálias caso questionem a situação. Como a sociologia pode analisar o papel do medo e da naturalização da injustiça na manutenção de práticas abusivas no ambiente de trabalho?

4. A relação entre educação e sistema prisional: O texto se passa em uma escola dentro de uma unidade prisional, o que traz desafios específicos para o trabalho docente. Como a sociologia pode analisar a relação entre educação e sistema prisional, considerando o papel da escola na ressocialização dos detentos e os desafios enfrentados pelos professores nesse contexto?

5. O papel da mídia e da sociedade civil na luta por uma educação de qualidade: O texto mostra como a denúncia das "vaquinhas" na mídia levou à suspensão da prática e à abertura de uma sindicância. Como a sociologia pode analisar o papel da mídia e da sociedade civil na luta por uma educação de qualidade, considerando a importância da transparência e da fiscalização dos recursos públicos?

quarta-feira, 5 de março de 2025

Cicatrizes Invisíveis: Uma Crônica sobre Dignidade e Dor ("A sombra da tecnologia cai sombriamente sobre o futuro." - Don DeLillo)

 

Cicatrizes Invisíveis: Uma Crônica sobre Dignidade e Dor ("A sombra da tecnologia cai sombriamente sobre o futuro." - Don DeLillo)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Na penumbra da tela, o terror se materializa. Não se trata de monstros fantásticos ou ameaças palpáveis, mas da perversão da tecnologia, da crueldade anônima que se esconde por trás de pixels e algoritmos. Professoras, baluartes da sabedoria e da dedicação, são transformadas em mercadoria pornográfica, vítimas de uma obscenidade virtual que lhes rouba a dignidade e a paz. Na Coreia do Sul, terra da inovação tecnológica, floresce também a barbárie digital, ceifando sonhos e carreiras.

Lee Ga-eun, nome fictício escolhido para se proteger ainda mais, vivenciou essa tragédia. Por dez anos, o magistério pulsou em suas veias, a sala de aula era seu palco, o aprendizado, sua paixão. Até que, em um março fatídico, o pesadelo se instaurou. Um aluno, um rosto familiar, apresentou-lhe a ignomínia: seu rosto angelical, colado a um corpo ultrajante, uma montagem repulsiva urdida nas profundezas da internet. O *deepfake*, a fraude perfeita, escancarava a fragilidade da honra, a vulnerabilidade da alma.

A imagem, viralizada em canais sombrios do Telegram, onde a infâmia era celebrada sob a "hashtag" "humilhando professores", atingiu em cheio o coração de Ga-eun. A sala de aula, antes refúgio e deleite, transmutou-se em palco de suplício. "A cada olhar dos alunos", confessou com a voz embargada, "torturava-a a dúvida: teriam visto? Estariam a esquadrinhando em busca daquela imagem vil?". O fardo da suspeita, o peso do escárnio imaginado, tornaram insuportável a missão de educar. A licença médica, remédio amargo para a alma ferida, tornou-se refúgio, mas não alívio. O sonho de outrora, nutrido desde a infância, agoniza sob o peso da depressão e da ansiedade. Cinco comprimidos diários, uma rotina medicamentosa para aplacar a dor lancinante, a impotência que teima em não se dissipar.

Park Sehee, outra professora, viveu martírio semelhante. Em Gyeonggi, a professora de inglês viu sua imagem profanada em um site abjeto, o Dcinside. Uma foto extraída de um aplicativo escolar, instrumento de comunicação com os alunos, foi transformada em pastiche pornográfico. Seu rosto, o rosto de um homem qualquer, foram colados em corpos de macacos em cópula. A legenda, sórdida e cruel, dizia: "Park Sehee fazendo AQUILO com o filho". O choque, o asco, a fúria a invadiram. Noites em claro, o travesseiro como saco de pancadas, a raiva latejante, a impotência corrosiva. E a pergunta que martelava em sua mente: como? Como alunos, antes tão queridos, tão próximos, seriam capazes de tamanha atrocidade? A busca pelo culpado esbarrou na inércia policial, na burocracia insensível, na impunidade ululante. A desistência foi o único caminho para evitar o abismo da loucura.

A Coreia do Sul, palco dessa tragédia moderna, registra um alarmante surto de pornografia *deepfake* nas escolas. Centenas de instituições foram maculadas pela infâmia digital, milhares de vítimas silenciosas, entre alunos e professores, submergiram em um mar de vergonha e dor. Os números, frios e cruéis, escancaram a epidemia: denúncias policiais multiplicam-se exponencialmente, adolescentes e crianças engrossam as fileiras dos criminosos virtuais, escudados na impunidade etária, na falta de leis eficazes, na leniência de um sistema educacional que falha em proteger seus mestres.

Jihee, professora em Incheon, experimentou a frustração da denúncia ignorada, a revitimização institucional. Diante da inação policial, transformou-se em detetive, rastreando vestígios digitais, analisando ângulos de cadeiras, mergulhando no esgoto da própria infâmia para tentar encontrar um fio de esperança, um rastro do algoz. A saga investigativa, porém, esbarrou na burocracia, na falta de provas, na desilusão lancinante. A aluna suspeita, ao menos, respondeu por outro crime, uma migalha de justiça em meio ao oceano de impunidade.

O abandono, a solidão, o descaso. Professoras são compelidas a retornar às salas de aula, a encarar os algozes disfarçados de alunos, a conviver com o trauma, com a humilhação, com a ferida exposta. Licenças médicas são concedidas a conta-gotas, a burocracia kafkiana impera, revisões são intermináveis e indeferimentos cruéis. A transferência é uma miragem distante, utopia burocrática. "Não sei o que me consome mais", desabafou Ga-eun, "se o *deepfake* em si, ou a batalha inglória contra as autoridades educacionais".

A supervisora Kim Soon-mi, voz burocrática em meio ao caos, escancara a fragilidade do sistema: "Não há lei, não há manual, não há protocolo para amparar as vítimas, para punir os algozes, para estancar a sangria". A educação, mera formalidade, reduz-se a transferir o aluno para o fundo da sala, a sugerir o ensino domiciliar, medidas paliativas, ineficazes, irrisórias.

E a ignorância soma-se à crueldade. Pesquisas revelam a alarmante falta de consciência dos jovens sobre a gravidade da pornografia *deepfake*. Para 54% dos estudantes, é "apenas diversão", uma brincadeira macabra, um passatempo sádico, um crime banalizado. O assédio, multifacetado e perverso, espreita nos corredores, nas salas de aula, nos banheiros escolares. Câmeras espiãs, comentários lascivos, contatos físicos forçados: uma escalada de violência que se disfarça sob o manto da "brincadeira", da "inocência juvenil". A impunidade é, mais uma vez, o fermento da barbárie.

Yu Ji-woo, jovem aluna, voz dissonante em meio à algaravia da ignorância, indigna-se com a omissão do Estado, com a falta de campanhas educativas, com o silêncio ensurdecedor das autoridades. "Esperávamos educação nas escolas, conscientização nacional, mas o vazio ecoa", lamenta a adolescente, testemunha da dor da colega, vítima da sanha digital.

Chung Il-sun, burocrata do Ministério da Educação, em discurso oco e protocolar, afirma que o governo "trabalha arduamente" para combater o problema, que os alunos "agora entendem" a criminalidade do *deepfake*. Lee Yong-se, inspetor da Agência Nacional de Polícia, vangloria-se da "repressão", da "queda" no número de denúncias, como se estatísticas pudessem apagar o sofrimento das vítimas, estancar a hemorragia moral que assola as escolas sul-coreanas.

Jihee, em prantos, confessa o desejo de retroceder no tempo, de apagar a memória nefasta, de retornar à vida pregressa, à inocência roubada. Ga-eun, professora ferida, aguarda em vão o pedido de perdão dos algozes juvenis, sonha com o dia em que a justiça, tardia e claudicante, se fará presente. E o cronista, testemunha de um tempo sombrio, pergunta-se: quantas Ga-euns, quantas Sehees, quantas Jihees serão sacrificadas no altar da tecnologia descontrolada, da impunidade adolescente, da omissão estatal? Até quando a educação, instrumento de emancipação e luz, será maculada pela sombra nefasta da barbárie digital?


https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/03/05/um-aluno-fez-um-deepfake-porno-meu-e-minha-vida-virou-de-cabeca-para-baixo.ghtml (Acessado em 05/03/2025)


Questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A banalização da violência online: O texto retrata a pornografia deepfake como "apenas diversão" para muitos jovens. Como a sociologia pode explicar essa banalização da violência online? Discuta o papel da cultura digital, do anonimato e da falta de empatia nesse fenômeno.

2. O impacto da tecnologia na vida social: As professoras Ga-eun, Sehee e Jihee tiveram suas vidas profundamente afetadas pela tecnologia. Analise como a tecnologia, apesar de seus benefícios, pode gerar novas formas de violência e desigualdade na sociedade contemporânea.

3. A falha das instituições: O texto critica a inércia policial, a burocracia insensível e a omissão estatal diante dos crimes de deepfake. Como a sociologia pode explicar essa falha das instituições em proteger as vítimas? Discuta o papel do poder, da lei e da cultura organizacional nesse contexto.

4. A violência de gênero no ambiente escolar: As professoras são as principais vítimas dos crimes de deepfake no texto. Como a sociologia pode analisar a violência de gênero no ambiente escolar? Discuta o papel do machismo, da cultura do estupro e da falta de representatividade feminina nesse contexto.

5. A busca por justiça e reparação: As professoras Ga-eun, Sehee e Jihee buscam justiça e reparação após serem vítimas de crimes de deepfake. Quais são os desafios enfrentados por elas nessa busca? Discuta o papel do sistema jurídico, da mídia e da sociedade civil na luta contra a violência online.