Há muito percebo a ironia de que a repreensão do professor ao aluno frequentemente acaba voltando-se contra o próprio docente. No entanto, eu havia me esquecido de considerar a mutação desse “vírus” dentro do ambiente escolar.
Agindo ingenuamente, e acreditando estar “contribuindo com o sistema”, apresentei à coordenadora, em caráter confidencial, os nomes de alguns alunos que demonstravam descuido com os estudos — especialmente em minha disciplina. O que se seguiu, porém, foi uma reação em cadeia inesperada. No dia seguinte, alguns alunos mais aplicados, enciumados pela falta de reconhecimento público de seus esforços, usaram-me como pretexto para criticar a coordenadora. Contaram que ela havia inspecionado os cadernos de Língua Portuguesa justamente das alunas de quem eu reclamara — cadernos estes praticamente vazios. Sem perceber, esses estudantes bem-intencionados acabaram revelando a ponta de um “iceberg abstrato” de manipulação.
O mais irônico dessa disputa velada por prestígio é que a coordenadora, valendo-se da ausência de conteúdo nos cadernos dessas alunas, elaborou relatórios enviesados à tutora (inspetora escolar). O objetivo era insinuar, de forma sutil, que o professor que não utiliza o “caderninho” de plano de aula é alguém que ministra aulas sem conteúdo — ou, na linguagem delas, “não passa nada para o aluno”. Assim, minha relutância em preencher tais planos, motivada por convicção pedagógica e não por negligência, acabou sendo exposta e mal interpretada.
Deixo claro que nunca fiz planos de aula por princípio, e não por descuido. Esses documentos servem mais à burocracia da coordenação do que ao processo real de ensino. É impossível esperar que um plano formal contemple as frequentes e “frutíferas” interrupções de minhas aulas — muitas vezes cedidas a outros colegas que desorganizam o tempo letivo.
Qual professor não conhece essa frustração? Na prática, o plano de aula raramente se cumpre. A sala de aula é um organismo vivo que exige improvisação — e improvisar, para um professor preparado, é justamente aplicar um plano funcional e dinâmico. O “caderninho”, portanto, não define o valor de um docente. O verdadeiro plano de aula é fluido: consiste em administrar os conhecimentos prévios e aplicá-los de acordo com as demandas que emergem em cada encontro, sempre à luz do currículo mínimo.
Ao fim dessa reflexão, percebo que minha atitude inicial — delatar os alunos à coordenadora — acabou se voltando contra mim. De modo consciente ou não, eles se vingaram de minha própria malícia, confirmando o ditado: “o feitiço foi contra o feiticeiro”. Se o veneno delas certamente lhes causará dano no futuro, em mim já produziu um grande prejuízo.
O ápice dessa desconexão entre a burocracia e a prática docente se resume na pergunta recorrente — e tristemente simbólica — que o aluno dirige ao professor: “É pra copiar, professor?”
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O relato apresenta temas riquíssimos para discussão, como a burocracia institucional, as relações de poder, o conflito entre a teoria e a prática pedagógica, e a ironia do sistema. Abaixo estão 5 questões discursivas simples, pensadas para serem aplicadas a alunos do Ensino Médio, com foco em estimular a análise sociológica das situações apresentadas:
1. Poder e Conflito Institucional
O texto descreve uma disputa velada onde a delação do professor, o ciúme dos alunos e a ação da coordenadora se entrelaçam. Sob a ótica da Teoria do Conflito (ou mesmo de Microssociologia), como o episódio da inspeção dos cadernos e dos relatórios enviesados demonstra a luta por prestígio e o uso de diferentes táticas de poder entre os atores (professor, coordenadora e alunos) na estrutura escolar?
2. Burocracia e Racionalidade (Max Weber)
O professor critica o "caderninho" de plano de aula, classificando-o como uma exigência burocrática que serve mais à coordenação do que ao ensino real. Utilizando a perspectiva de Max Weber sobre a burocracia, discuta:
a) Qual é o objetivo ideal (a função racional) de se exigir um plano de aula formalizado? b) De que maneira, de acordo com o texto, essa exigência se transforma em uma disfunção burocrática que prejudica a prática pedagógica e o professor?
3. O Simbolismo dos Objetos
No relato, os cadernos vazios das alunas e o plano de aula não preenchido ("caderninho") deixam de ser meros objetos e se tornam ferramentas de disputa. Analise, sob o ponto de vista do Interacionismo Simbólico, como esses objetos adquirem um significado social específico dentro da instituição, sendo usados pela coordenadora para manipular a imagem do professor perante a inspetora.
4. Currículo Formal versus Currículo Oculto
O professor defende que a sala de aula é um "organismo vivo" que exige improvisação e se choca com a rigidez do plano de aula formal. Sociologicamente, diferencie o Currículo Formal (o que é planejado e registrado) do Currículo Oculto (as interrupções, a burocracia, as relações de poder). De que forma esse conflito entre o planejado e o improviso afeta a transmissão do conhecimento e a própria função social da escola?
5. A Pergunta Final como Síntese Sociológica
A pergunta do aluno — "É pra copiar, professor?" — é citada como o ápice da desconexão entre a burocracia e a prática docente. Interprete essa frase como um símbolo sociológico. O que essa questão recorrente revela sobre a visão que o aluno desenvolve sobre o processo educacional e o seu papel dentro dele (por exemplo, como mero reprodutor de conteúdo versus criador de conhecimento)?