"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico I(33) O Lado Resumo da Prosperidade: Desvendando Mitos sobre Sabedoria e Tranquilidade

 


CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico I(33) O Lado Resumo da Prosperidade: Desvendando Mitos sobre Sabedoria e Tranquilidade

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A sabedoria é um dos valores mais elevados da tradição judaico-cristã, sendo considerada um dom de Deus e uma fonte de bênçãos para os que a buscam. No livro de Provérbios, por exemplo, encontramos diversos conselhos sobre como adquirir e aplicar a sabedoria na vida cotidiana, visando alcançar a tranquilidade e a prosperidade. Segundo o autor, "Feliz é o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire conhecimento" (Provérbios 3:13). A sabedoria é apresentada como um caminho seguro e recompensador para aqueles que desejam viver bem.

No entanto, será que essa visão de que a busca pela sabedoria garante automaticamente paz e segurança é suficiente para compreender a realidade humana? Será que não há outros fatores que influenciam o destino das pessoas e das sociedades, além das suas escolhas morais? Será que não há limites e desafios para a aplicação da sabedoria na vida prática? Essas são algumas questões que merecem uma análise crítica sob uma perspectiva mais ampla e profunda.

É inegável que fazer escolhas sábias e seguir princípios morais pode trazer benefícios tanto individuais quanto sociais. A sabedoria é uma virtude que nos ajuda a discernir o bem do mal, a agir com justiça e equilíbrio, a evitar o erro e o sofrimento. Como disse o filósofo grego Aristóteles, "A sabedoria é a mais perfeita das ciências" (Metafísica I, 2). A sabedoria nos permite conhecer as causas e os princípios das coisas, bem como as finalidades e os valores da vida.

No entanto, é preciso cautela ao associar a obtenção da tranquilidade apenas à aderência a esses princípios. A vida é repleta de desafios imprevisíveis que não podem ser resumidos a uma simples equação entre ações e consequências. A experiência humana é complexa e influenciada por diversos fatores, incluindo contextos sociais, econômicos e culturais. Como disse o filósofo francês Blaise Pascal, "O coração tem razões que a própria razão desconhece" (Pensamentos, 277). Nem sempre podemos controlar ou prever os acontecimentos que nos afetam ou aos outros.

O enfoque excessivo na tranquilidade obtida através da sabedoria pode obscurecer a compreensão das dificuldades enfrentadas por aqueles que seguem essa rota. As adversidades não são necessariamente resultado de falta de sabedoria, e o sucesso não é garantido apenas por uma vida correta. Citar exemplos de pessoas que tiveram diferentes destinos não é suficiente para estabelecer uma regra geral. Há casos em que os justos sofrem e os ímpios prosperam, contrariando as expectativas. Como disse o autor do livro de Eclesiastes, "Vi tudo o que se faz debaixo do sol; tudo é ilusão, é correr atrás do vento" (Eclesiastes 1:14). A vida nem sempre segue uma lógica racional ou moral.

Ao relacionar prosperidade exclusivamente com sabedoria, corre-se o risco de ignorar a realidade de muitos que enfrentam obstáculos apesar de suas escolhas sensatas. A vida é mais sutil e multidimensional do que uma simples ligação de causa e efeito entre virtudes e resultados positivos. Portanto, é necessário um olhar mais abrangente e empático para compreender as múltiplas trajetórias de indivíduos e sociedades.

Em vez de adotar uma visão simplista de que a sabedoria sempre resulta em tranquilidade, é mais prudente reconhecer a complexidade da existência humana. Valorizar princípios morais é essencial, mas não se deve perder de vista a realidade de que a vida é repleta de desafios e circunstâncias imprevisíveis. Alcançar a verdadeira compreensão requer uma análise crítica e sensível das nuances da vida, indo além de fórmulas simplistas. Como disse o filósofo alemão Immanuel Kant, "Ousar saber é o lema da iluminação" (Resposta à pergunta: O que é esclarecimento?). A sabedoria não é um fim em si mesma, mas um meio para iluminar a nossa mente e o nosso coração.

sábado, 7 de outubro de 2023

CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico I(32) A loteria é uma armadilha para os pobres?

 


CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico I(32) A loteria é uma armadilha para os pobres?

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A loteria é uma forma de jogo que consiste em apostar em números aleatórios, com a esperança de ganhar um prêmio em dinheiro. Muitas pessoas, especialmente as de baixa renda, recorrem à loteria como uma forma de escapar da pobreza e realizar seus sonhos. Mas, será que a loteria é realmente uma oportunidade para os pobres ou uma armadilha que os explora e ilude?

Alguns argumentam que a loteria é uma armadilha para os pobres, pois eles gastam uma parte significativa de sua renda em apostas, sem ter retorno garantido. Além disso, a loteria seria uma forma de manipular os pobres, usando os ganhadores como propaganda para atrair mais apostadores. Assim, a loteria seria um mecanismo injusto e perverso, que perpetua a desigualdade social e a exploração dos mais vulneráveis.

No entanto, essa visão é simplista e preconceituosa, pois ignora a complexidade da realidade social e a diversidade das motivações humanas. A loteria não pode ser reduzida a uma questão de racionalidade econômica, pois envolve também aspectos psicológicos, culturais e morais. A loteria é uma forma de expressar a esperança, a fé e a liberdade de escolha dos indivíduos.

Como disse Nelson Mandela, "a pobreza não é natural. É homem que a cria, e homem que a destrói". A pobreza é fruto de injustiças sociais e falta de oportunidades, não de más escolhas individuais. E apostar na loteria, por menor que sejam as chances, representa para alguns a esperança de uma vida melhor.

Na verdade, "a busca da felicidade é um direito inalienável de todo ser humano", como disse Thomas Jefferson. Quem somos nós para julgar as escolhas alheias baseadas em anseios tão profundamente humanos? A melhor postura é ter compaixão.

Além disso, é simplista presumir que todos compram loteria por "tolice". Muitos o fazem conscientemente, por puro entretenimento e diversão, sem grandes ilusões quanto às probabilidades. Para esses, vale o dito popular "o sonho não custa nada". ( Este é o eu caso).

Portanto, ao invés de reprovar aqueles que buscam alegria em uma aposta ocasional, deveríamos nos compadecer da dura realidade dos menos favorecidos e lutar por justiça social. Pois, como disse Martin Luther King Jr (1929-1968, "a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar". É tempo de empatia e solidariedade, não de julgamentos.

A Bíblia também nos ensina a ter misericórdia pelos pobres e a compartilhar nossos bens com eles. Em Provérbios 19:17, lemos: "Quem se compadece do pobre ao Senhor empresta, e este lhe paga o seu benefício". E em Lucas 12:33-34, Jesus nos diz: "Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós bolsas que não se envelheçam; tesouro nos céus que jamais acabe, aonde não chega ladrão e a traça não rói. Porque onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração".

Assim, podemos concluir que a loteria não é nem uma oportunidade nem uma armadilha para os pobres, mas sim uma expressão da condição humana. Cabe a nós respeitar as escolhas dos outros e buscar formas mais justas e solidárias de combater a pobreza e promover o bem comum.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

TUDO SE AVALIA: REFLEXÕES NA VÉSPERA DO CONSELHO DE CLASSE ("Pela forma como trabalha se avalia o artista". — Jean de La Fontaine)

 


TUDO SE AVALIA: REFLEXÕES NA VÉSPERA DO CONSELHO DE CLASSE ("Pela forma como trabalha se avalia o artista". — Jean de La Fontaine)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Na véspera do conselho de classe, uma atmosfera carregada de expectativas e tensão paira sobre a escola. É o momento em que os professores, como eu, se preparam para justificar as notas atribuídas aos alunos, de acordo com seus méritos. Entretanto, existe um personagem nessa história, um indivíduo que se tornou persona non grata entre nós: o mestre, pois aprenderá da maneira mais marcante possível que não pode reprovar aluno algum.

Com muito critério prepararam um formulário que a escola proporciona aos alunos para julgar os professores metodicamente; uma ferramenta que devia tratar apenas do aspecto profissional, porém abrange também o pessoal. Ela serve, segundo minha perspectiva, para colocar o professor em seu devido lugar. Neste contexto, somos nós, os educadores, os vilões em destaque.

A avaliação é, para muitos alunos, apenas um meio de desabafar suas frustrações, expressar o quão chato é um professor ou o quanto detestam determinada matéria. E, veja só, por vezes, isso se torna um espetáculo cômico, quando um professor se vê como o monarca da sala de aula e, de repente, recebe um tapa de realidade por meio dessas avaliações.

Em toda a véspera do conselho de classe, quando olho para essas avaliações, encontro nelas uma mistura de ansiedade e desafio. Cada uma delas é uma narrativa singular, escrita com tintas da juventude e da experiência escolar. São vozes que clamam por atenção, que exigem ser ouvidas, e muitas vezes, revelam não apenas as impressões dos alunos, mas também nossos próprios erros e desafios como professores.

Ao longo dos anos, tenho aprendido que essa avaliação é mais do que apenas um mecanismo de feedback. Ela é um espelho que reflete nossas práticas e nos faz questionar nosso papel como educadores. A que ponto chegamos, o discente, instruindo o docente. “Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha". Não é apenas um modo dos alunos desabafarem, mas também uma oportunidade para nós, professores, refletirmos sobre nossa abordagem pedagógica e nosso relacionamento com nossos pupilos.

No conselho de classe, quando nos reunimos para analisar essas avaliações, é um momento de autoavaliação e crescimento. É o momento em que percebemos que, apesar de sermos os profissionais, ainda temos muito a aprender com nossos alunos. Afinal, o conhecimento não flui apenas em uma direção, mas é uma via de mão dupla, onde todos nós, professores e alunos, são eternos aprendizes.

Assim, a avaliação que um dia pareceu ser uma ameaça para o nosso status como professores, na verdade, se revela como um instrumento de crescimento e evolução. É uma lição de humildade e um lembrete de que, no final das contas, todos estão aqui para aprender e crescer juntos.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico I(31) Entre o Bem, o Mau e a Verdade.

 


CRENTE SEM FANATISMO: DE CARNE E OSSO — Ensaio Teológico I(31) Entre o Bem, o Mau e a Verdade.

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A ideia de que as mazelas da humanidade decorrem da rejeição aos ensinamentos bíblicos é, no mínimo, simplista e pouco fundamentada. Como afirmou o filósofo Bertrand Russell, "muitas pessoas aceitariam a moral cristã se não incluísse a doutrina cristã". Ou seja, os preceitos éticos do cristianismo não dependem necessariamente da crença em sua origem divina e infalível.

De fato, a busca por compreensão, justiça e compaixão faz parte da própria condição humana, independente de religião. Como disse o escritor Stefan Zweig, "é próprio do ser humano procurar a luz". Os avanços na ciência, direitos humanos e valores democráticos ocorreram mais apesar do que por causa dos dogmas religiosos.

Além disso, atribuir os problemas sociais à rejeição da fé é desconsiderar fatores políticos, econômicos e culturais que constituem a complexa teia da vida em sociedade. Nas palavras do sociólogo Émile Durkheim, "a moral não pode derivar nem da natureza humana nem da vontade divina, mas da própria sociedade".

Portanto, embora os ensinamentos religiosos possam trazer contribuições relevantes, a ética e o progresso dependem sobretudo do diálogo aberto, do senso de justiça e da disposição humana para o bem. Combater injustiças e construir uma sociedade melhor são tarefas que requerem olhar crítico, empatia e razão.

No entanto, isso não significa que devemos ignorar ou desprezar a dimensão espiritual da existência humana. Pelo contrário, devemos reconhecer que há uma fonte de sabedoria e amor que transcende as nossas limitações humanas. Como disse o apóstolo Paulo, "examinai tudo. Retende o bem". Ou seja, devemos ser capazes de discernir entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre o que é bom e o que é mau, entre o que é de Deus e o que é do mundo.

Nesse sentido, a Bíblia pode ser um guia valioso para a nossa conduta moral, desde que seja interpretada com inteligência e sensibilidade. Como disse o teólogo Agostinho de Hipona, "a Bíblia foi escrita para que creiamos nela; mas não se pode crer nela se não se compreende seu sentido". Ou seja, devemos buscar entender o contexto histórico, cultural e literário dos textos bíblicos, bem como aplicar os seus princípios à nossa realidade atual.

Assim, podemos conciliar a fé e a razão, a religião e a ciência, a moral e a ética. Podemos viver como cidadãos responsáveis e como filhos amados de Deus. Podemos ser sal da terra e luz do mundo.

sábado, 30 de setembro de 2023

ENTRE O JOGO E O ESTUDO: UMA CRÔNICA SOBRE AS ESCOLHAS DA JUVENTUDE ("Na juventude deve-se acumular o saber. Na velhice fazer uso dele." — Jean-Jacques Rousseau)

 


ENTRE O JOGO E O ESTUDO: UMA CRÔNICA SOBRE AS ESCOLHAS DA JUVENTUDE ("Na juventude deve-se acumular o saber. Na velhice fazer uso dele." — Jean-Jacques Rousseau)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Eu sou professor há muitos anos, e já vi de tudo um pouco nas salas de aula. Mas, hoje eu quero contar uma história que me marcou profundamente, e que revela um pouco da complexidade da alma humana. Uma história que se passou em um dia aparentemente comum, mas que escondia surpresas e contradições.

Tudo começou quando a direção da escola resolveu organizar um "aulão" para os alunos do terceiro ano do Ensino Médio, que estavam prestes a enfrentar o Enem. Um evento que prometia ser um divisor de águas na vida desses jovens, que sonhavam com uma vaga na universidade. Um momento de revisão e esclarecimento das dúvidas mais frequentes sobre português e matemática, as disciplinas mais temidas pelos estudantes.

O auditório estava lotado de alunos ansiosos e curiosos, que se acomodavam nas cadeiras e aguardavam o início da palestra. Eu estava lá no outro pavilhão em minha sala de aulas normais para ministrar minha aula de sociologia que constava no horário normal. Eu sentia orgulho daqueles jovens, que demonstravam interesse e dedicação pelo seu futuro. Sobretudo, me acomodei na sala quase vazia, porque alguns aqui decidiram "matar" o tal aulão. Comecei minha aula esperando ser útil de alguma forma.

Mas, me ignoraram, estavam se divertindo com jogos de cartas. Pareceu-me que não estavam esperando professor algum para aquele horário. Não consultaram a planilha de aulas ou era de propósito mesmo. A verdade é que estavam empolgados e barulhentos, desafiando uns aos outros em partidas de truco. Eles não se importavam com o Enem, nem com as consequências de suas escolhas. Eles só queriam aproveitar o momento, sem pensar no amanhã.

Fiquei perplexo com essa cena! Como podiam existir dois grupos tão distintos entre os mesmos alunos? Como podiam coexistir o desejo pelo conhecimento e a indiferença pela educação? Como podiam conciliar o sonho da universidade e a fuga da realidade?

Eu não tinha uma resposta pronta para essas perguntas. Talvez fosse uma questão de personalidade, de valores, de influências. Talvez fosse uma questão de maturidade, de responsabilidade, de consciência. Talvez fosse uma questão de juventude, de rebeldia, de liberdade. Não sei qual é a verdadeira causa desse problema. Você saiba me explicar?

Então, lembrei-me de quando eu era jovem, e das escolhas que fiz na minha vida. Eu também tive meus momentos de dúvida, de diversão, de desafio. Todavia também tive meus momentos de estudo, de trabalho, de superação. Eu também tive meus momentos de erro, de arrependimento, de aprendizado. Talvez, por isso, sou professor hoje!

E foi assim que eu cheguei à conclusão desta crônica: a vida é feita de escolhas, e cada escolha tem uma consequência. Cabe a cada um decidir qual caminho seguir, e arcar com as suas consequências. Cabe a cada um encontrar o seu equilíbrio entre o presente e o futuro, entre o prazer e o dever, entre o jogo e o estudo.

E cabe a mim, como professor, respeitar essas escolhas, mas também orientar esses jovens para que façam as melhores escolhas possíveis. Pois é assim que formamos cidadãos conscientes, capazes de transformar o mundo com o seu conhecimento e a sua juventude. Fui tomar o baralho? Não, dei minha aula para dois ou três que sentavam na frente para não incomodar os fanfarrões do "fundão". São eles o reclamadores, os denunciadores e organizadores de abaixo-assinado para tirar o professor. Aceite meu medo ou minha conveniência.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A HIERARQUIA ESCOLAR: UM LABIRINTO INFINITO ("Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha?" — 1Coríntios 14:8 ARC)

 


A HIERARQUIA ESCOLAR: UM LABIRINTO INFINITO ("Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha?" — 1Coríntios 14:8 ARC)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Há algo intrigante e, ao mesmo tempo, quase cômico na complexa teia hierárquica de uma escola. Os corredores ecoam com a cacofonia do poder e da autoridade, cada nível hierárquico estendendo sua sombra sobre o próximo, criando uma cadeia de comando infinita que desafia a compreensão e, por vezes, a paciência.

Você já ouviu falar da expressão "muito cacique para pouco índio"? É assim que me sinto quando entro na escola onde trabalho todos os dias. É uma sensação peculiar que me faz questionar onde começa e onde termina a linha de comando. Como professor, sou a base dessa hierarquia, o índio na analogia, mas, na realidade, parece que há mais caciques do que eu posso contar.

Tudo começa com o representante de sala. Uma figura carismática, ele é eleito pelos colegas e, de repente, temos um líder entre nós. No início, parece inofensivo, uma voz para nos representar. Mas, à medida que o ano avança, ele começa a exercer seu poder sobre o grupo, tomando decisões que afetam a todos nós.

Em seguida, temos o colega que se autodenomina o "padrinho" da sala. Ele não foi eleito para nada, mas age como se fosse o chefe. Suas opiniões são as mais importantes, suas sugestões as mais valiosas. É um título autoconferido que parece carregar mais peso do que deveria.

Mas, a hierarquia não para por aí. Logo depois, entramos no reino dos coordenadores. Coordenadores de área, coordenadores de turnos, coordenadores pedagógicos - todos eles com uma fatia do bolo do poder. Cada um com suas próprias prioridades, muitas vezes em conflito com as dos outros. É como um jogo de xadrez, onde cada peça move-se em uma direção diferente, deixando os peões, nós, os professores, perplexos.

E então chegamos ao topo da pirâmide: o secretário da unidade escolar, o vice-diretor e o diretor. Eles são os verdadeiros caciques, os líderes supremos. Suas decisões reverberam por toda a escola, moldando nosso ambiente de trabalho e influenciando diretamente o que fazemos em nossas salas de aula.

Mas, no meio de toda essa hierarquia, onde fica o professor? O índio na analogia, lembram? Somos nós que estamos na linha de frente, lidando com os desafios diários, tentando ensinar e inspirar nossos alunos. Às vezes, parece que a voz do índio é abafada pelo rugido dos caciques.

No entanto, não é minha intenção apenas lamentar essa complexa hierarquia escolar. Ela existe por uma razão, e muitas vezes desempenha um papel crucial na organização e no funcionamento de uma escola. Mas, como em qualquer sistema, pode se tornar excessivamente complicada e ineficaz.

O que aprendi nesse labirinto hierárquico é a importância de encontrar equilíbrio. Precisamos de líderes e estrutura, mas também devemos ouvir e valorizar a voz daqueles que estão na linha de frente. Devemos trabalhar juntos, coordenadores, diretores e professores, para criar um ambiente de aprendizado que seja eficaz e enriquecedor para nossos alunos.

Então, da próxima vez que você ouvir a expressão "muito cacique para pouco índio," lembre-se de que, às vezes, é preciso um esforço conjunto para equilibrar a hierarquia e garantir que todos tenham a oportunidade de contribuir. E, como professor, continuarei a fazer o meu melhor para ensinar e inspirar, independentemente de onde eu me encaixe nessa complexa cadeia de comando. Afinal, é para os alunos que estamos aqui, e essa é a mensagem mais importante de todas. Na boca de muitos a quem temos que confessar, qualquer probleminha vira um problemão infinito. E continua sendo problema de ninguém, um empurrando para o outro.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

NOTAS VERMELHAS OU O 6 DA MISERICÓRDIA? ("Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe". — Nelson Rodrigues )

 


NOTAS VERMELHAS OU O 6 DA MISERICÓRDIA? ("Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe". — Nelson Rodrigues )

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Eu nunca imaginei que um dia eu teria que lutar por uma nota. Não, não estou falando de lutar para conseguir uma nota boa, mas sim de lutar para não dar uma nota boa para quem não fez jus, negava-me a ser objeto de prestígio para intercessores quem vieram me afrontar como se eu não pudesse fazer meu trabalho corretamente. Parece estranho, não é? Mas, foi isso que aconteceu comigo no novo normal. Deixe-me contar como tudo começou.

No velho normal, as coisas eram mais simples. Os alunos tinham uma frase que repetiam como um mantra: "Eu não posso ficar com nota vermelha". Era uma forma de se tranquilizar, mesmo que não se dedicassem muito aos estudos. Afinal, uma nota vermelha no boletim era só um detalhe que não mudava nada. Recuperavam o bimestre seguinte. E assim os professores seguravam os alunos atentos até o final do ano letivo.
Mas então, tudo mudou. O novo normal chegou e trouxe consigo uma nova mentalidade. Agora, os alunos dizem com imposição: "Não posso ficar com 6 da misericórdia!" Porque os professores estão sedento para aprová-los com nota mínima, o 6, mesmo aqueles que não fizeram nada no bimestre. Mas, isso era revelador, então eles encaravam como se uma nota 6 fosse a pior coisa do mundo. Como se uma nota 6 fosse um insulto à sua honra. Essa mudança, aparentemente sutil, revelou uma nova faceta da educação: a guerra das notas. O professor refém de coordenadores e das estatísticas faz o show de notas boas, ainda se justifica dizendo que com notas boas se fecha a boca de aluno barraqueiro! Todavia, está cavando sua própria sepultura, porque a maioria obtém as notas necessárias, logo no terceiro bimestre, e será impossível qualquer professor ministrar aulas no último bimestre. Se aprenderam valorizar demais as notas. E a escola desequilibrada e doida não pode dispensar aluno algum antes do último dia letivo do ano, por imposição da secretaria, mesmo tendo sido aprovado. E o lanche é abundante, então este vêm atrapalhar a aula dos que estão de recuperação. Economiza-se no conhecimento, mas não nas outras coisas.
Eu vivi essa guerra na pele, quando fui dar as notas do terceiro bimestre. Era um momento crucial para mim, como professor. Era o momento em que eu tinha que avaliar o desempenho dos meus alunos, com justiça e responsabilidade. Mas, o que deveria ser um exercício de avaliação se tornou um campo de batalha.
Nesse contexto, eu sofri pressões de todos os lados. Uma coordenadora me cobrava ansiosamente o fechamento antecipado das notas. Outra me pedia, quase implorava, para dar uma nota maior para uma aluna que não assistiu às aulas por causa de um atestado médico. Ela dizia que a aluna não aceitava somente um 6, que ela merecia, mas... Era como se a nota fosse uma mercadoria, e eu tivesse que barganhar, ou melhor, inventar.
Refletindo sobre esses episódios, eu percebo que a educação está em crise. Os alunos querem notas mais altas, sem se importar com o esforço. Os professores sofrem pressões para serem complacentes, sem se importar com a qualidade. Porém, a verdadeira lição que devemos aprender é que a educação vai além das notas e das manobras políticas. Ela é sobre o desejo genuíno de aprender, o esforço constante para melhorar e a busca incansável pelo conhecimento.
Nesse novo normal, onde a guerra das notas parece se intensificar, lembremos que nosso papel como educadores vai muito além de notas vermelhas ou 6 da misericórdia. É sobre inspirar uma paixão pelo aprendizado, mesmo que isso signifique enfrentar desafios e resistência. Afinal, é na sala de aula que moldamos não apenas o futuro dos alunos, mas também o futuro da sociedade. Que possamos lembrar disso, mesmo quando as pressões do presente ameaçam obscurecer nossa visão do que realmente importa.