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MINHAS PÉROLAS

A hora do lanche faz da vida uma escola, para muita gente que não tem motivo para viver, apenas vive para comer.
Claudeci Ferreira de Andrade

sábado, 12 de maio de 2018

ENTRE CONSELHOS E INQUIETAÇÕES ("O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia." — Leonardo da Vinci)



Crônica

ENTRE CONSELHOS E INQUIETAÇÕES ("O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia." — Leonardo da Vinci)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Há dias em que a vida não espera você acordar para começar a cobrar sentido. E sábado, esse velho trapaceiro de promessas, sempre se apresenta como um convite ao descanso, mas mal sabe ele que carrego nas costas semanas inteiras de cansaço mal digerido. Às vezes, o sábado não é alívio; é interrogação.

Naquela manhã, o sol ainda bocejava, e meu celular já se remexia feito criança ansiosa por colo. Uma mensagem chegou antes mesmo que eu conseguisse calçar os chinelos. Era uma mulher — dessas que mal conhecem a gente, mas enxergam consolo no tom das nossas palavras. Procurava ajuda. Não técnica, nem jurídica — era da alma que ela falava. A vida conjugal estava em colapso e, por algum motivo indecifrável, eu era a tábua flutuando no naufrágio dela.

Sorri de canto, não por desdém, mas por reconhecimento. Ah, quantas vezes fui também o náufrago à procura de tábuas! Engraçado como, com o tempo, trocamos de lugar sem perceber: deixamos de nos afogar para ajudar a remar barcos furados dos outros. Ou fingimos saber remar.

Enquanto pensava em como responder, sentei-me na varanda e deixei o vento da manhã me lembrar quem sou. Tantos amigos me convidando para festas, encontros e programações coloridas — todas com aquela alegria embalada a vácuo, pronta para consumo rápido. Mas não. Nunca fui bom em multidões. Já participei de tantos sorrisos de ocasião que hoje, só de pensar, me dá coceira na alma.

Voltei à mensagem. A angústia dela pingava entre as palavras. O marido estava distante, ela aflita. E eu ali, com o celular na mão e o coração em dúvida. Até onde vai o papel de quem ouve? O quanto de si se pode entregar sem que alguém confunda empatia com obrigação? Há fronteiras invisíveis nas relações humanas que, quando rompidas, nos cobram caro — às vezes em silêncio, às vezes com gritos.

Enquanto buscava palavras que não doem, me dei conta de que talvez, o que ela mais precisasse fosse alguém que a escutasse sem julgamentos. Não conselhos. Apenas presença. E isso, sim, eu podia dar. Escrevi algo breve, humano, sem soluções milagrosas. E enviei.

Na sequência, a casa ficou em silêncio. O café esfriava na xícara, e meus pensamentos fervilhavam. Lembrei-me de tantas outras histórias que vieram até mim do nada — pessoas que veem em você uma espécie de farol, sem saber que você também se perde no nevoeiro de vez em quando.

O sábado passou arrastado, como se testasse minha paciência. Nenhum evento, nenhuma epifania. Apenas essa constatação inquieta: vivemos cercados de gente que clama por compreensão, enquanto nós mesmos tateamos por algum sentido. Às vezes, tudo o que nos resta é oferecer a escuta e manter o coração em paz.

Naquela noite, já deitado, pensei em como é tênue a linha entre consolar e ser consumido. Entre ajudar e adoecer. A vida, nesse ponto, é um pouco como andar sobre corda bamba: exige equilíbrio, sim, mas principalmente atenção para não se tornar personagem de uma história que não é sua.

E assim, como quem fecha um livro antes do fim, adormeci com a sensação de que viver é também saber dizer “não sei”. Que às vezes, não ter todas as respostas é a maior demonstração de sabedoria.


Duas questões discursivas sobre o texto:


Como a experiência de oferecer conselhos pode ser desafiadora e quais são os limites da nossa capacidade de ajudar os outros?

De que forma a sociedade molda nossas percepções sobre relacionamentos, sexualidade e a busca por felicidade?

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