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MINHAS PÉROLAS

quarta-feira, 23 de julho de 2025

O Que o Filho Dele Ouve? ("Não é o que você olha que importa, é o que você vê." — Henry David Thoreau)

 




O Que o Filho Dele Ouve? ("Não é o que você olha que importa, é o que você vê." — Henry David Thoreau)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Certa vez, entrou no quarto do filho sem bater — sim, um erro clássico — e foi surpreendido por uma batida ensurdecedora que fazia as paredes vibrarem como se o concreto tivesse coração. O garoto estava ali, de olhos semicerrados, balançando o corpo num ritmo quase hipnótico. — “É só uma música, pai”, - disse. Mas, ele sabia: não era só uma música. Nunca é.

De volta à cozinha, sentou-se em silêncio. Um incômodo surdo o incomodava como um eco persistente. Movido por esse desconforto, abriu o navegador e digitou: “efeitos do funk no cérebro”. Esperava encontrar alguma caricatura exagerada, algo que aliviasse a própria inquietação. Mas o que leu o imobilizou. A neurociência confirmava aquilo que seu instinto já pressentia: o que se repete nos ouvidos não sai ileso — molda a mente, a alma e até o corpo.

As batidas incessantes ativam o sistema límbico, a região mais primitiva do cérebro. Elas não pedem licença, não passam pelo crivo da razão. Atingem diretamente o instinto: a excitação, o prazer imediato, o impulso sem reflexão. E o que se ouve, cedo ou tarde, manifesta-se no corpo — no gingado dos quadris, nas palavras ditas sem pensar, nos desejos que dispensam sentido, mas exigem satisfação.

A constatação o atingiu como um tapa. Não se tratava apenas da letra vulgar ou do refrão insistente. Era sobre quem o filho poderia estar se tornando, lentamente, sem que ninguém percebesse. Não era exagero: a música, muitas vezes, não educa — condiciona. Treina o cérebro a buscar a dopamina fácil, aquela que dispensa esforço, reflexão ou controle.

Contudo, ele sabia que a questão era mais complexa do que uma simples condenação de um gênero musical. Havia ali, nas leituras e nos sentimentos, a percepção de que, mesmo nas batidas mais cruas, podem existir nuances. A arte, por vezes, nasce como expressão de uma realidade dura, como forma de resistência. — “Mas pai, o funk também fala do nosso dia a dia, da nossa luta!”, - ouvira certa vez, com uma sinceridade que o fez pausar. Aquilo ficou ecoando. Não se tratava de anular a expressão, mas de ponderar o que se prioriza: a reflexão ou a resposta automática do corpo, a construção ou a desconstrução, a arte ou o mero estímulo.

E então se perguntava: que tipo de alma está sendo moldada por ritmos que zombam da autoridade, sexualizam tudo e naturalizam o vazio e a indiferença? A questão não era censura, mas formação — uma formação silenciosa, cotidiana, que acontece nos fones de ouvido e que, inevitavelmente, transborda na fala, nas escolhas, nos afetos.

Lembrou-se da infância, quando o pai colocava Vinícius e Bach na vitrola. Dizia que a beleza também educa, que a harmonia do som vai, aos poucos, se transformando em harmonia interior. Hoje, parece que esse cuidado se perdeu. Trocamos a ordem pela euforia, o lirismo pela lascívia. E, depois, fingimos surpresa diante da ausência de virtudes, da dificuldade de reconhecer limites.

Não, não existe ritmo neutro. O que ouvimos não se limita aos ouvidos. Penetra a moral, o juízo, os desejos. Forma — ou deforma. Talvez, por isso, escrevo, como quem desabafa, como quem alerta. Porque, antes de ser também pai, sou alguém que ainda acredito que a alma também precisa de alimento — e de silêncio.

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Aqui estão 5 questões discursivas simples, alinhadas com os conteúdos de Sociologia do Ensino Médio, que incentivam a interpretação crítica, reflexão social e diálogo com temas contemporâneos, como cultura, identidade, valores, mídia e socialização:

1. O autor afirma que “a música, muitas vezes, não educa — condiciona”. Com base nesse trecho, explique a diferença entre educação e condicionamento, relacionando com o papel da música na formação de comportamentos sociais.

2. A crônica aponta que determinados ritmos podem “moldar a mente, a alma e até o corpo”. Como a cultura de massa pode influenciar o comportamento e os valores dos indivíduos, especialmente dos jovens? Dê exemplos.

3. No texto, o pai relembra que, em sua infância, ouvia músicas como as de Vinícius e Bach. Que relação esse contraste estabelece entre valores tradicionais e valores contemporâneos? Você concorda com a crítica apresentada? Justifique sua resposta.

4. A frase “o funk também fala do nosso dia a dia, da nossa luta” revela uma outra perspectiva sobre o gênero musical. Como a cultura periférica pode ser entendida como forma de resistência social e expressão de identidade? Explique com suas palavras.

5. O autor questiona: “que tipo de alma está sendo moldada por ritmos que zombam da autoridade, sexualizam tudo e naturalizam o vazio e a indiferença?”. A partir disso, reflita sobre o papel da mídia e da indústria cultural na formação de valores sociais. Ela educa, aliena, ou ambos? Justifique com argumentos sociológicos.

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