BRINCANDO COM O DIABO ("Todos os monstros que viviam me amedrontando, não estavam embaixo da minha cama; eles estavam dentro de mim" — Rita Padoin)
Era mais uma tarde na sala de aula, o calor abafado conspirava contra qualquer tentativa de concentração. Enquanto eu tentava explicar as nuances da literatura barroca, percebia os olhares perdidos e os suspiros de tédio. Foi então que tive uma ideia – daquelas que você sabe que pode dar terrivelmente errado, mas não consegue resistir.
"Pessoal," anunciei, interrompendo minha própria explicação, "que tal uma pequena pausa? Vocês já ouviram falar do jogo 'Charlie Charlie'?" O burburinho começou instantaneamente. Os alunos evangélicos, sempre os mais atentos, trocaram olhares preocupados. Mas antes que pudessem protestar, Marcelo, o garoto que sempre buscava atenção, já estava em ação.
Com uma rapidez surpreendente, ele rabiscou uma cruz em uma folha, escreveu "Sim" e "Não" nos cantos, e posicionou dois lápis em formato de cruz sobre o papel. "Charlie, Charlie, você está aqui?" A voz de Marcelo ecoou pela sala, rouca e teatral. O silêncio que se seguiu foi quase palpável. Vinte pares de olhos fixaram-se nos lápis imóveis.
Naquele instante, nem eu, o professor, consegui impedir o que estava por vir. Talvez por curiosidade, talvez por me sentir um espectador naquele circo bizarro, deixei a cena se desenrolar. Foi então que decidi intervir. Com um sopro discreto, fiz o lápis de cima girar para o "Sim".
O efeito foi instantâneo e caótico. Gritos abafados ecoaram, cadeiras foram empurradas, e em segundos a sala estava quase vazia. A histeria se instalou, alguns saíram correndo porta afora, outros me olhavam como se eu fosse o guardião de algum segredo macabro.
Fiquei ali, sozinho, rindo da situação absurda. Eu, um professor de literatura, acabara de interpretar o papel do próprio diabo! A ironia não me escapou – em vez de discutir Gregório de Matos, estava ali, brincando de entidade sobrenatural.
No fundo, eu ria por também dentro. Aquelas crianças, sempre ávidas por algo que quebrasse a monotonia, haviam se deixado levar por uma farsa simples, mas eficaz. Não pude deixar de pensar: se o Diabo tivesse o trabalho de atender a todas as escolas que invocavam o tal "Charlie", estaria esgotado. Com tanta indisciplina, violência e desrespeito por aí, o Inferno já estaria lotado.
Enquanto arrumava a sala, refleti sobre o ocorrido. Não senti remorso por ter assustado os alunos, mas sim uma certa tristeza. Tristeza por ver como o medo ainda é uma força tão poderosa, capaz de unir pessoas mais do que o amor ou a compaixão.
O que mais me intrigou naquela experiência não foi o movimento do lápis, mas perceber como o medo uniu aqueles jovens, mesmo que por um breve momento. Eles, que tantas vezes desafiavam qualquer autoridade, agora se sentiam vulneráveis, pequenos diante de algo que acreditavam ser maior. E me dei conta de que o medo, esse sentimento tão primal, era também o que movia muitos deles em direção à igreja, à fé. Não por amor, mas por receio.
Pensei em como as igrejas, as escolas e até mesmo a mídia muitas vezes se aproveitam desse medo do desconhecido, do "mal", para controlar e influenciar. Quantos "diabos" não são criados diariamente para justificar ações, para agrupar pessoas contra um inimigo comum?
E quem é, afinal, o verdadeiro Satanás? Talvez, ele não seja aquele de chifres e cauda, cuspindo fogo, como tantos imaginam. Talvez, o verdadeiro inferno seja o que criamos aqui, entre nós, quando permitimos que o medo governe nossas ações, quando esquecemos de olhar uns para os outros com empatia e compaixão.
Guardei os lápis na gaveta, determinado a usar essa experiência em minha próxima aula. Talvez, pensei, o verdadeiro "Charlie Charlie" não seja um jogo bobo, mas o desafio diário de questionar nossas crenças, enfrentar nossos medos e buscar entendimento além do superficial.
Saí da sala com um sorriso nos lábios, refletindo que, no final das contas, a aula daquele dia não foi sobre o Diabo, mas sobre nós mesmos, sobre o que escolhemos acreditar e o que nos move a agir. E se, em vez de fugirmos de nossos medos, os enfrentássemos com curiosidade e pensamento crítico?
Amanhã seria outro dia, e eu mal podia esperar para ver os rostos dos meus alunos quando eu lhes contasse que, por alguns minutos, seu professor de literatura tinha sido o próprio diabo – e que não era tão assustador assim.
Com base no texto apresentado, elabore respostas completas e detalhadas para as seguintes questões:
O texto relata uma experiência inusitada em sala de aula. Qual a principal reflexão que o professor faz sobre o comportamento dos alunos e sobre o papel do medo na sociedade?
O professor utiliza a figura do "Charlie Charlie" para explorar quais temas relacionados à religião, à fé e à sociedade?
Como o professor relaciona a experiência com o jogo "Charlie Charlie" com a forma como as instituições, como igrejas e escolas, utilizam o medo para controlar e influenciar as pessoas?
Qual a crítica implícita do professor à visão tradicional do diabo e do inferno?
Qual a lição que o professor pretende transmitir aos alunos com essa experiência?
Era mais uma tarde na sala de aula, o calor abafado conspirava contra qualquer tentativa de concentração. Enquanto eu tentava explicar as nuances da literatura barroca, percebia os olhares perdidos e os suspiros de tédio. Foi então que tive uma ideia – daquelas que você sabe que pode dar terrivelmente errado, mas não consegue resistir.
"Pessoal," anunciei, interrompendo minha própria explicação, "que tal uma pequena pausa? Vocês já ouviram falar do jogo 'Charlie Charlie'?" O burburinho começou instantaneamente. Os alunos evangélicos, sempre os mais atentos, trocaram olhares preocupados. Mas antes que pudessem protestar, Marcelo, o garoto que sempre buscava atenção, já estava em ação.
Com uma rapidez surpreendente, ele rabiscou uma cruz em uma folha, escreveu "Sim" e "Não" nos cantos, e posicionou dois lápis em formato de cruz sobre o papel. "Charlie, Charlie, você está aqui?" A voz de Marcelo ecoou pela sala, rouca e teatral. O silêncio que se seguiu foi quase palpável. Vinte pares de olhos fixaram-se nos lápis imóveis.
Naquele instante, nem eu, o professor, consegui impedir o que estava por vir. Talvez por curiosidade, talvez por me sentir um espectador naquele circo bizarro, deixei a cena se desenrolar. Foi então que decidi intervir. Com um sopro discreto, fiz o lápis de cima girar para o "Sim".
O efeito foi instantâneo e caótico. Gritos abafados ecoaram, cadeiras foram empurradas, e em segundos a sala estava quase vazia. A histeria se instalou, alguns saíram correndo porta afora, outros me olhavam como se eu fosse o guardião de algum segredo macabro.
Fiquei ali, sozinho, rindo da situação absurda. Eu, um professor de literatura, acabara de interpretar o papel do próprio diabo! A ironia não me escapou – em vez de discutir Gregório de Matos, estava ali, brincando de entidade sobrenatural.
No fundo, eu ria por também dentro. Aquelas crianças, sempre ávidas por algo que quebrasse a monotonia, haviam se deixado levar por uma farsa simples, mas eficaz. Não pude deixar de pensar: se o Diabo tivesse o trabalho de atender a todas as escolas que invocavam o tal "Charlie", estaria esgotado. Com tanta indisciplina, violência e desrespeito por aí, o Inferno já estaria lotado.
Enquanto arrumava a sala, refleti sobre o ocorrido. Não senti remorso por ter assustado os alunos, mas sim uma certa tristeza. Tristeza por ver como o medo ainda é uma força tão poderosa, capaz de unir pessoas mais do que o amor ou a compaixão.
O que mais me intrigou naquela experiência não foi o movimento do lápis, mas perceber como o medo uniu aqueles jovens, mesmo que por um breve momento. Eles, que tantas vezes desafiavam qualquer autoridade, agora se sentiam vulneráveis, pequenos diante de algo que acreditavam ser maior. E me dei conta de que o medo, esse sentimento tão primal, era também o que movia muitos deles em direção à igreja, à fé. Não por amor, mas por receio.
Pensei em como as igrejas, as escolas e até mesmo a mídia muitas vezes se aproveitam desse medo do desconhecido, do "mal", para controlar e influenciar. Quantos "diabos" não são criados diariamente para justificar ações, para agrupar pessoas contra um inimigo comum?
E quem é, afinal, o verdadeiro Satanás? Talvez, ele não seja aquele de chifres e cauda, cuspindo fogo, como tantos imaginam. Talvez, o verdadeiro inferno seja o que criamos aqui, entre nós, quando permitimos que o medo governe nossas ações, quando esquecemos de olhar uns para os outros com empatia e compaixão.
Guardei os lápis na gaveta, determinado a usar essa experiência em minha próxima aula. Talvez, pensei, o verdadeiro "Charlie Charlie" não seja um jogo bobo, mas o desafio diário de questionar nossas crenças, enfrentar nossos medos e buscar entendimento além do superficial.
Saí da sala com um sorriso nos lábios, refletindo que, no final das contas, a aula daquele dia não foi sobre o Diabo, mas sobre nós mesmos, sobre o que escolhemos acreditar e o que nos move a agir. E se, em vez de fugirmos de nossos medos, os enfrentássemos com curiosidade e pensamento crítico?
Amanhã seria outro dia, e eu mal podia esperar para ver os rostos dos meus alunos quando eu lhes contasse que, por alguns minutos, seu professor de literatura tinha sido o próprio diabo – e que não era tão assustador assim.
Com base no texto apresentado, elabore respostas completas e detalhadas para as seguintes questões:
O texto relata uma experiência inusitada em sala de aula. Qual a principal reflexão que o professor faz sobre o comportamento dos alunos e sobre o papel do medo na sociedade?
O professor utiliza a figura do "Charlie Charlie" para explorar quais temas relacionados à religião, à fé e à sociedade?
Como o professor relaciona a experiência com o jogo "Charlie Charlie" com a forma como as instituições, como igrejas e escolas, utilizam o medo para controlar e influenciar as pessoas?
Qual a crítica implícita do professor à visão tradicional do diabo e do inferno?
Qual a lição que o professor pretende transmitir aos alunos com essa experiência?