De que valeram tantas capacitações, "cursos e mais cursos", a dedicação integral ao trabalho de sessenta horas-aula, todos os salários guardados e os bons propósitos para o futuro? Ela acreditava estar conquistando mais vida, mas foi a morte que, silenciosa, a conquistou repentinamente.
Ah, a ironia brutal de trocar a substância da vida por sua acumulação vazia! De que adiantaram os diplomas, se o tempo — o recurso mais irrecuperável — foi alienado em favor de um futuro que jamais chegou? A dedicação, que deveria ser o pedestal das conquistas, transformou-se em altar de sacrifício, onde os bons propósitos se dissolveram na exaustão. A morte, disfarçada de rotina e dever, foi sendo conquistada a cada manhã de estresse e a cada noite de correria. A vida, que se acreditava prolongar por meio de bônus e planos ambiciosos, foi ceifada pela pressa, deixando apenas a pergunta cortante: por que tanta urgência em construir algo tão sólido, se o próprio alicerce — o presente — foi negligenciado? Talvez tenha sido envenenada por aqueles que viviam às suas custas, movidos pela ganância ou pelo medo de perder a "mamata".
O mundo desmoronava ao seu redor, mas ela continuava assistindo aos "pobres", sempre ocupada demais com os necessitados. Embora não perdesse uma chance de lucrar mais, sequer movimentava a própria conta bancária — era sua irmã quem o fazia. Esse detalhe, aparentemente banal, chamava a atenção de todos para o essencial. E, afinal, em que as obras de caridade a ajudaram? Ah, os caridosos também morrem e deixam apenas a boa imagem — um espelho para nossa reflexão. Mas, se todos pensassem assim, quem estenderia a mão ao próximo?
Ela quis assegurar o futuro sem compreender o sentido do presente. Sua despretensão de si mesma revelou uma falta de consagração à própria vida. Quem sabe, se tivesse vivido com mais gratidão, a vida lhe agradecesse também. Deixou-nos apenas saudades, pois o prolongamento e a intensidade da vida ainda eram possíveis. Foi cedo demais.
Quando se deixou enfeitiçar pelo “romantismo” de ser cada dia melhor, já vivia em profunda desarmonia com a realidade que a cercava. No entanto, a morte não poderia ser o resultado de um simples sonho. Penso agora na Professora "Lourdinha" — e me desculpem se o lado emocional fala mais alto. Qual de nós, alunos, nunca a desrespeitou, e agora a homenageamos? Só não sabemos se celebramos a sua vida ou a sua morte. Existirá mesmo uma lei infalível de causa e efeito? Será que a colega de trabalho que a chamou de salafrária lamenta, agora, ter tido parte em sua despedida?
O livro de Ageu, na Bíblia, nos exorta a considerar o passado e a não sermos irracionais ao analisar o que realmente acontece. Quando fazemos do presente o centro da vida, conquistamos um futuro naturalmente coroado com uma morte serena. Ela, minha doce professora, que tanto me ensinou, deixou-me esta última e mais profunda lição: "Recebe-se como salário a morte pelo mal que se faz, e paga-se com a vida o bem que se vive."
Não creio em ressurreição, mas vivo como se houvesse, pois o que vier será lucro. Que bom seria, se houvesse ressurreição, para que eu pudesse rever minha "Lourdinha"!
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Este texto é um excelente ponto de partida para refletirmos sobre as instituições sociais, a ética do trabalho na sociedade capitalista e o sentido da existência. O autor (ou narrador) usa a morte da Professora "Lourdinha" para fazer uma crítica poderosa aos nossos valores. Vamos usar as ideias apresentadas para formular questões discursivas simples. Lembrem-se de basear suas respostas nos conceitos sociológicos que estudamos, como alienação, valor-trabalho e instituições.
1. Alienação e o Sentido do Tempo
O texto questiona a dedicação de "sessenta horas-aula" e a acumulação de bens, afirmando que o tempo — "o recurso mais irrecuperável" — foi "alienado em favor de um futuro que jamais chegou". Com base nas ideias de alienação do trabalho, explique como a Professora Lourdinha, ao priorizar o futuro e o acúmulo, negligenciou o presente e qual foi a "ironia brutal" desse sacrifício.
2. Ética do Trabalho e o Sacrifício Profissional
O autor descreve a dedicação ao trabalho como um "altar de sacrifício" e a morte como algo "disfarçado de rotina e dever". Discuta como a ética protestante do trabalho (conceito weberiano) pode, em sua versão moderna, levar ao excesso de trabalho e ao esgotamento, transformando a dedicação em uma forma de autodestruição, em vez de realização.
3. A Instituição da Caridade e a Crítica ao Altruísmo
Apesar de ser uma pessoa caridosa ("ocupada demais com os necessitados"), o autor questiona: "E, afinal, em que as obras de caridade a ajudaram?" Analise sociologicamente a crítica implícita do narrador sobre o papel da caridade. Em que medida a caridade pode ser vista como uma tentativa individual de resolver problemas estruturais, enquanto o indivíduo negligencia sua própria vida?
4. Moralidade, Julgamento Social e Hipocrisia
O texto aborda o desrespeito dos alunos e o ataque da colega de trabalho ("salafrária"), em contraste com a homenagem póstuma. Discuta a hipocrisia e o julgamento moral presente nas relações sociais, utilizando o exemplo da Professora Lourdinha. Por que a sociedade frequentemente só reconhece o valor de um indivíduo após sua morte, esquecendo-se dos conflitos e desrespeitos ocorridos em vida?
5. Lei de Causa e Efeito versus Determinismo Social
O autor reflete sobre a "lei infalível de causa e efeito" e cita a lição: "paga-se com a vida o bem que se vive". Embora o texto utilize uma linguagem moral/religiosa, interprete esta lição sob uma lente sociológica. De que forma o resultado da vida de Lourdinha (morte prematura por estresse, apesar do bem que fazia) pode ser lido como uma consequência social da pressão institucional e não apenas como um destino individual?