"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

Pesquisar neste blog ou na Web

MINHAS PÉROLAS

domingo, 4 de maio de 2025

A Fé Refletida no Espelho: Crônica Sobre Profetas Mirins ("Nós não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos." — Anaïs Nin)


 

A Fé Refletida no Espelho: Crônica Sobre Profetas Mirins ("Nós não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos." — Anaïs Nin)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Sentei-me diante da tela, distraído, numa manhã qualquer, quando um vídeo começou a rodar sozinho. Era uma criança — talvez nove, dez anos — em cima da calçada, na rua, gritando palavras com a força de quem já sofreu demais, embora a vida ainda nem tivesse tido tempo de machucá-la direito. Ao redor, adultos choravam, tremiam, erguiam as mãos ao alto como se tivessem reencontrado algo que há muito haviam perdido. Aquilo me fisgou. Não pelas palavras — frases recheadas de esperança, vitória, bênçãos que logo viriam —, mas por quem as dizia: uma menina de vestido rodado e voz aguda, segurando o microfone como se empunhasse uma espada contra o mundo.

No dia seguinte, procurei outros vídeos. Apareceu um menino, Miguel, de olhos acesos e voz surpreendentemente grave. Já tinha visto a Vitória Souza, com seu sorriso cativante e suas mensagens de superação. Não demorei a perceber: esses pequenos pregadores surgem como lampejos num mundo exausto. Falam com uma convicção assustadora sobre escolhas, promessas e castigos, ou com analogias simples sobre prosperidade e bênçãos que logo virão. Em um tempo em que os adultos se sentem cada vez mais perdidos, talvez seja reconfortante ouvir a fé na boca de quem ainda não se contaminou com as dúvidas da vida adulta. Eles falam de milagres como quem conta histórias da escola. Carregam no tom de voz uma certeza que nem os profetas antigos ousariam ter.

Mas, o que mais me inquieta — e talvez seja o cerne desse fenômeno — não é o conteúdo em si, e sim o contexto: a plateia adulta. Uma plateia, muitas vezes quebrada por dentro, que olha para essas crianças como se fossem oráculos. A emoção que se acende em tantos adultos — lágrimas nos olhos, arrepios na espinha — talvez revele mais sobre nós do que sobre eles. Estaríamos buscando, na pureza da infância, uma validação para nossas próprias crenças? Queremos, na voz de uma criança, a confirmação de que estamos no caminho certo, de que "vai dar certo"?

A performance vira culto, o culto vira espetáculo, e o espetáculo, alívio. Vitória Souza, com suas analogias e linguagem acessível, transforma o ato religioso em um show motivacional, moldado ao ritmo frenético das redes sociais, onde o conteúdo é consumido de forma rápida e emocional. Miguel, com sua erudição precoce, atrai pela novidade — talvez pelo desejo de encontrar "novas vozes", o que denuncia certa insatisfação com as lideranças tradicionais. A adesão a essas pregações, com milhões de visualizações e comentários, parece sintoma claro de uma sociedade em busca de sentido e pertencimento em tempos de incerteza. É como se a figura do profeta mirim preenchesse vazios existenciais, oferecendo uma narrativa de esperança e direção.

Mas, será mesmo fé o que estamos assistindo? Ou seria apenas um espelho voltado para nossa própria carência? Esses profetas mirins, quer queiramos ou não, são espelhos. Refletem nossa busca por sentido e pertencimento, nossa necessidade de esperança em um mundo complexo e, por vezes, assustador. A forma como consumimos seus discursos, como nos emocionamos com suas palavras, diz muito sobre nossa imaturidade emocional e nossa indisposição — ou não — para lidar com a complexidade da fé e da vida. Eles não revelam a pureza da Fé, mas escancaram, com crueldade, a imaturidade de uma sociedade que, muitas vezes, prefere a segurança da obediência ao desconforto da Liberdade — que busca respostas fáceis e confortantes em vez de questionar e enfrentar o que realmente importa.

Essas crianças não são culpadas. Estão apenas repetindo o que viram, o que ouviram, o que se espera delas. São sementes lançadas sobre um solo rachado de dúvidas, num sistema em colapso. O que me preocupa, o que realmente me inquieta, são os adultos ao redor. Esses, sim, deveriam estar guiando (nas escolas, nas ruas e nos campos) — e não sendo guiados pela voz, por vezes ensaiada, da infância.

Hoje, ao ver mais um desses vídeos circulando com milhões de visualizações — desta vez, João Vitor Ota —, eu não consegui clicar. Apenas respirei fundo. Porque entendi que o que me comoveu naqueles primeiros vídeos, e o que me perturba nesses fenômenos, não é a fé da criança — é a desesperança dos adultos. É essa busca desenfreada por algo que preencha um vazio, que nos diga que "vai dar certo", sem exigir de nós o esforço necessário para construir esse "certo" na realidade dura e complexa da vida adulta.

Não há respostas fáceis. Mas, é essencial que nós, adultos — consumidores e promotores desse conteúdo —, nos façamos essas perguntas: o que estamos realmente buscando? O que essas crianças, com suas vozes poderosas, dizem sobre nós, sobre nossa carência, nossa ânsia por validação, nosso fascínio pelo espetáculo? Será que, ao ouvirmos profecias com voz de criança, estamos tentando redimir nossas próprias perdas ou apenas buscamos, no eco da inocência, uma desculpa para não enfrentarmos as perguntas que a vida adulta já nos obrigou a fazer?

Porque, no fim das contas, o que vemos em seus olhos e ouvimos em suas palavras não é apenas fé. É, inegavelmente, o reflexo de nós mesmos — de nossas fraquezas e anseios projetados em pequenos púlpitos improvisados ou não.


https://www.youtube.com/watch?v=sTwyuMQKE5s&ab_channel=Mulheres (Acessado em 04/05/2025)


Como seu professor de Sociologia, minha crônica "A Fé Refletida no Espelho" é um material fascinante para pensarmos as dinâmicas sociais, religiosas e culturais da nossa época. Ela nos convida a olhar para além do que se vê e a questionar o porquê de certos fenômenos ganharem destaque. Com base nas suas ideias, formulei 5 questões discursivas simples:


1. O texto descreve adultos que se emocionam e buscam "sentido e pertencimento" e "esperança" em "profetas mirins". Como a Sociologia entende a busca por respostas religiosas ou espirituais em tempos de incerteza social e o papel das figuras carismáticas (mesmo que crianças) nesse processo?

2. A crônica aponta que as pregações se tornam "espetáculo motivacional" adaptado para redes sociais. De que forma a Sociologia da Religião e a Sociologia da Mídia analisam como as formas de expressar e consumir a fé se transformam na sociedade contemporânea, influenciadas pelas lógicas da mídia e do consumo?

3. O narrador sugere que o fenômeno reflete a "imaturidade emocional" de uma sociedade que busca "respostas fáceis e confortantes". Como a Sociologia pode investigar e discutir as características de uma sociedade que parece priorizar o alívio emocional imediato e a busca por certezas rápidas em detrimento da complexidade da vida e da fé?

4. A crônica vê as crianças como "espelhos" que refletem as necessidades e carências adultas. Como a Sociologia entende a relação entre as experiências e buscas individuais dos adultos e os fenômenos sociais e culturais que ganham popularidade (como o dos profetas mirins)?

5. O texto menciona a busca por "novas vozes" religiosas, o que pode indicar insatisfação com as lideranças tradicionais. Como a Sociologia analisa as mudanças nas práticas e instituições religiosas e as razões sociais que levam as pessoas a procurarem novas formas de vivenciar ou expressar sua fé?

sábado, 3 de maio de 2025

Sementes do Amanhã ("Onde a palavra falha, a violência começa." — Atribuído a Sigmund Freud)


 

Sementes do Amanhã ("Onde a palavra falha, a violência começa." — Atribuído a Sigmund Freud)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Não foi no portão da escola, tampouco num corredor de sala de aula, que me deparei com a cena. Foi na tela fria do celular, numa manhã de quinta-feira, enquanto o café esfriava na xícara. A manchete cravou-se nos olhos como um estilhaço: "Mãe de aluna agride diretora em escola de Salvador; profissional levou murro e teve cabelos arrancados." Cliquei. Vi. E o que vi não saiu mais de mim.

A imagem mostrava uma mulher entregando um bebê a alguém fora do enquadramento, como quem sabe exatamente o que está prestes a fazer. Precisava das mãos livres. Em seguida, partiu para cima da diretora com socos e empurrões. A educadora, Ticiane Oliveira Sampaio, caiu ao chão. As agressões continuaram: tapas, puxões, cabelos arrancados. Uma cena crua, silenciosa, captada pelas câmeras de segurança de um Centro Municipal de Educação Infantil ironicamente chamado “Semente do Amanhã”.

Naquele instante, caiu mais do que uma diretora. Caiu um símbolo — o da escola como espaço seguro. Vi ruir, ali, a frágil muralha que ainda protege o professor da violência que ronda as ruas. O vídeo doeu em quem, como eu, já pisou em sala de aula com o coração cheio de ideal e a cabeça cheia de boletins.

Soube depois, pelas reportagens, que a agressão teve origem em uma suspeita: a filha da agressora aparecera com um machucado no rosto. A diretora, seguindo os protocolos, registrou o ocorrido. A mãe, revoltada, acusou: "Você induziu minha filha a dizer que eu bati nela." Ela não quis se identificar, mas deu sua versão: alegou arrependimento e disse ter perdido o controle ao se sentir pressionada. Mas o controle, nesses tempos, parece ter deixado de ser prática para se tornar luxo — sobretudo quando a violência se naturaliza e a palavra falha como mediação.

Não faltaram versões: de um lado, a diretora com duas décadas de carreira na educação pública, elogiada por sua dedicação; do outro, uma mãe com o rosto tenso e o olhar perdido, dizendo que não teve intenção, que se deixou levar. E entre as narrativas, uma criança — silenciosa, talvez assustada — cuja dor deu origem ao confronto, mas cujas marcas psicológicas talvez ainda estejam por vir.

A escola onde tudo aconteceu localiza-se no bairro do IAPI, em Salvador — um território marcado por lutas diárias, onde a instituição pública de ensino é, muitas vezes, a única ponte entre o presente precário e um futuro possível. Mas que futuro se constrói quando o próprio espaço educativo é invadido pela lógica da violência? Que semente germina nesse solo? Que aprendizado se extrai quando, em vez do diálogo, a agressão se impõe como linguagem?

A Secretaria de Educação emitiu nota de apoio à servidora. Os jornais informaram que o caso foi registrado na delegacia e que uma investigação por lesão corporal foi instaurada. Tudo conforme o protocolo. Tudo redigido em tom burocrático, com verbos como "rechaça" e "lamenta", enquanto a realidade escancara: não é de agora que os profissionais da educação têm sido expostos, vulneráveis, desamparados.

Na fila do supermercado, ouvi duas mulheres comentarem o caso. Uma insinuava que há diretores que “abusam do poder”; a outra chamava a mãe de “louca”. Simplificações que nos impedem de enxergar a complexidade. Porque não se trata apenas de certo ou errado, vilão ou vítima. Trata-se de um sistema em colapso, onde o cansaço emocional, a pressão social, a desigualdade e a falta de escuta produzem combustões que não deveriam explodir no chão de uma escola.

Antes de dormir, revisitei a manchete. O vídeo já havia se espalhado. Nos comentários, um tribunal virtual julgava com fúria, sem tempo para nuances. Penso na criança com o machucado no rosto. Que tipo de lição ela aprendeu? Que adultos gritam, se agridem, e depois se arrependem? Ou que o conflito não precisa ser resolvido com gritos e socos?

Desliguei o celular e olhei pela janela. Em algum lugar de Salvador, uma diretora tenta dormir com o corpo dolorido e a alma ainda mais. Uma mãe revê os próprios atos com o peso do remorso. E uma criança, talvez, desenha uma escola onde o medo não entra, onde as palavras são maiores que os punhos, onde o amanhã é realmente semente de algo melhor.

E eu, mero espectador, me pergunto: que escola temos deixado para germinar? E o que, de fato, estamos colhendo?


https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2025/05/01/mae-de-aluna-agride-diretora-em-escola-de-salvador.ghtml (Acessado em 03/05/2025)


Como seu professor de Sociologia, minha crônica é um ponto de partida muito forte para analisarmos questões sociais complexas que se manifestam no cotidiano escolar. A violência narrada na notícia nos permite discutir temas como segurança, o papel da escola na sociedade e as tensões sociais. Com base nas suas ideias, preparei 5 questões discursivas simples:


1. O texto descreve a violência ocorrendo na escola, um espaço que idealmente seria seguro. Como a Sociologia explica por que atos de violência que existem na sociedade podem acabar invadindo ou se manifestando dentro de instituições como a escola?

2. A crônica fala da escola como um "símbolo" e "espaço seguro" que é violado pela agressão. Qual a importância sociológica da escola como uma instituição social com um papel e um significado específicos na comunidade, e como incidentes de violência podem afetar essa imagem e a confiança das pessoas nela?

3. O narrador sugere que a violência aconteceu onde "a palavra falha como mediação". De que forma a Sociologia estuda os processos de comunicação e resolução de conflitos em diferentes grupos sociais e quais as consequências sociais quando o diálogo não funciona e a violência se torna a forma de expressão?

4. A crônica menciona o bairro onde a escola se localiza como um lugar de "lutas diárias" e fala em "pressão social" e "desigualdade". Como os problemas sociais e econômicos presentes em uma comunidade podem estar relacionados a tensões e conflitos que se manifestam no dia a dia, incluindo no ambiente escolar?

5. O texto é baseado na notícia e na forma como o evento foi divulgado e comentado publicamente. Como a Sociologia da Mídia entende a maneira como as notícias sobre violência são construídas e consumidas pela sociedade, e como essa circulação de informações pode influenciar a percepção pública sobre a segurança nas escolas e o trabalho dos educadores?

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Meias Coloridas Não Salvam a Educação ("Amar não basta." — Ideia inspirada em Paulo Freire)

 



Meias Coloridas Não Salvam a Educação ("Amar não basta." — Ideia inspirada em Paulo Freire)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Foi numa terça-feira cinzenta que coloquei, pela primeira vez, minhas meias coloridas para dar aula. Roxo e verde-limão — uma combinação que arrancou sorrisos imediatos dos meus alunos do 7º ano quando me sentei na mesa e deixei que aparecessem sob a barra da calça. A ideia veio de um daqueles workshops motivacionais que a Secretaria de Educação nos obrigava a frequentar mensalmente: “Traga alegria para sua sala de aula”, dizia a palestrante de voz estridente, “e a aprendizagem virá como consequência”.

O experimento funcionou por algumas semanas. As crianças passaram a tentar adivinhar quais meias eu usaria no dia seguinte, e alguns começaram a trazer suas próprias versões coloridas. Criamos até um pequeno ritual antes das provas: “Mostre suas meias, professor, para dar sorte.” E eu mostrava, claro, enquanto distribuía as folhas de questões sobre leitura e interpretação textual que muitos ainda não compreendiam.

Não me entendam mal. Não nego o valor de um olhar acolhedor, de um sorriso que encoraja, da mão estendida que ampara no ambiente escolar. O afeto é fundamental. Mas focar a narrativa apenas nessas experiências sensíveis parece perigosamente obscurecer os verdadeiros entraves da nossa educação – aqueles muros altos e pesados, de natureza estrutural, socioeconômica e institucional, que insistem em limitar o voo de tantos alunos e professores.

O problema é que as meias não resolviam dúvidas gramaticais, nem supriam a falta de carteiras. Não silenciavam o barulho ensurdecedor do ventilador quebrado ou do aparador de grama, que parecia funcionar apenas durante as aulas. Tampouco enchiam a barriga dos cinco alunos que eu sabia que vinham sem café da manhã. A dura realidade é que, quando romantizamos excessivamente o afeto e a ação individual — a criatividade isolada do professor, a meia colorida usada para chamar atenção, o nariz de palhaço que arranca um riso — corremos o sério risco de transformar a exceção em regra.

É o que ocorre, por exemplo, nas reuniões de conselho de classe. Diante das várias reprovações em português e matemática, a coordenadora pedagógica perguntou, com genuína curiosidade: “Mas você não estava usando aquela técnica da afetividade: trajando-se de palhaço que deu tão certo?”

Respirei fundo antes de responder. Queria dizer que meias não são técnica pedagógica. Que meus alunos precisavam de material didático adequado, de recuperação paralela, de professores menos sobrecarregados. Vejo nessa ênfase exagerada no afeto como “solução mágica” um perigo real: o de desresponsabilizar quem detém o poder de promover mudanças — o Estado. É como se disséssemos: “Ah, o importante é o professor amar, ter afeto, o resto se resolve.” E, com isso, esvaziamos o papel fundamental do currículo e reduzimos a atuação docente a um mero exercício emocional.

Em vez de expressar essas reflexões, apenas assenti com a cabeça e prometi tentar “mais estratégias lúdicas” no próximo período. A romantização do cotidiano escolar gera um peso injusto nos ombros do professor. Quando a narrativa oficial insiste que “basta amar” para ensinar, o docente que se dedica, mas enfrenta salas superlotadas e falta de recursos básicos, sente-se culpado por um fracasso que não é seu.

Voltei para casa pensando na Maria, que desenha como ninguém, mas não consegue interpretar um enunciado de matemática porque nunca desenvolveu habilidades básicas de leitura. No João, que falta às aulas para cuidar dos irmãos enquanto a mãe trabalha em dois empregos. E na estrutura escolar que desaba um pouco mais a cada chuva forte — no sentido literal e figurado.

A aprendizagem que realmente transforma exige mais do que vínculo e calor: exige método, conteúdo sólido, criticidade para ler o mundo. Lembrei do Paulo Freire que li na faculdade e que agora, após quinze anos em sala de aula, compreendo com clareza dolorosa: “Amar não basta.” É preciso mais que meias engraçadas ou um nariz de palhaço para construir a educação transformadora que sonhamos.

Não se trata, jamais, de negar o valor do amor e da empatia na relação pedagógica; trata-se de reconhecer seus limites diante de um sistema adoecido. Ensinar exige respeito aos saberes do aluno, sim, mas esse respeito inclui, fundamentalmente, oferecer a ele o acesso ao melhor da ciência, da técnica e da pedagogia disponíveis — e não apenas o calor humano, por mais vital que ele seja.

Amanhã usarei meias pretas comuns. Não porque desisti do afeto — jamais desistirei dele —, mas porque compreendi que meu amor por esses estudantes precisa se manifestar também na minha indignação, na minha exigência por melhores condições, no meu compromisso com um ensino rigoroso e libertador.

Ao final dessa reflexão, chego à mesma conclusão, dura e necessária: educar é, em sua essência mais profunda, um gesto político. Uma ação que se dá no campo das relações humanas, sim, e onde o afeto tem seu lugar, sem dúvida. Amar, sim — um amor que se traduz em cuidado, respeito e dedicação. Mas esse amor precisa vir acompanhado de estrutura, de reflexão crítica sobre a prática e, acima de tudo, de um compromisso coletivo — da sociedade, do Estado, de todos nós.

O afeto na educação não pode ser a cortina colorida que esconde as rachaduras na parede. Deve ser, antes, a força que nos move a derrubar paredes e construir novos espaços — espaços onde nossas crianças tenham o direito não apenas ao sorriso de um professor bem-intencionado, mas a todo o conhecimento e estrutura que merecem.

As meias coloridas continuam na minha gaveta. Talvez eu volte a usá-las algum dia. Mas agora sei que, se o fizer, será apenas como complemento — nunca como substituto — de uma educação verdadeiramente libertadora. Que não nos contentemos com meias coloridas e narizes de palhaço como única resposta. A estrutura da casa precisa de alicerces sólidos, não apenas de cortinas bonitas na janela.


Como seu professor de Sociologia, minha crônica é um material riquíssimo para pensarmos as complexas relações entre o individual, o institucional e o estrutural na educação. Minha experiência com as meias coloridas nos leva a questionar visões simplistas e a olhar para as raízes sociais dos desafios educacionais. Com base nessas ideias, preparei 5 questões discursivas simples:


1. O texto aponta que o afeto e a ação individual do professor (como usar meias coloridas) não resolvem problemas como falta de material, salas superlotadas e alunos com fome. Como a Sociologia explica que os problemas da educação estão frequentemente ligados a questões estruturais e socioeconômicas mais amplas, e não apenas à dedicação individual de professores?

2. A crônica critica a "romantização do afeto" por achar que ela "desresponsabiliza" o Estado e ignora a necessidade de "estrutura" e "compromisso coletivo". De que forma a Sociologia analisa a distribuição de responsabilidades pela educação na sociedade e por que é importante olhar para as políticas públicas e o investimento no sistema educacional como um todo?

3. O narrador conclui que "educar é, em sua essência mais profunda, um gesto político". O que significa essa afirmação para a Sociologia? Como a educação pode ser vista como um campo de disputa e de busca por transformações sociais, e não apenas um processo neutro de transmissão de conhecimento?

4. O texto menciona que a ênfase excessiva no afeto pode gerar "culpa" nos professores diante de problemas que não conseguem resolver sozinhos. Como a Sociologia estuda as pressões e os dilemas éticos e emocionais enfrentados por profissionais (como os professores) que atuam em instituições com recursos limitados e desafios sociais complexos?

5. A crônica defende que a aprendizagem de verdade exige "método, conteúdo sólido, criticidade", além de "vínculo e calor". Como a Sociologia da Educação compreende os diferentes elementos necessários para uma educação de qualidade, e por que é importante considerar tanto os aspectos relacionais quanto os curriculares e estruturais?

quinta-feira, 1 de maio de 2025

A Caneta e a Consciência: Diário de um Professor "Insilenciado" ("Resista muito e obedeça pouco." — Rui Barbosa)

 

A Caneta e a Consciência: Diário de um Professor "Insilenciado" ("Resista muito e obedeça pouco." — Rui Barbosa)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Era início de dezembro quando me vi, mais uma vez, diante do diário eletrônico — aquele retrato digital do ano letivo, onde cada nome listado carregava um silêncio profundo. Em muitas linhas, a ausência era completa: de corpo, de alma, de vontade. Eram nomes que atravessaram os meses como sombras, sem deixar marcas de participação, aprendizado ou esforço. Mas não demorou para que, como em todos os anos, surgisse a visita que transforma o diário em campo de tensão.

A diretora entrou na sala. Com sua fala polida e estratégica, comunicou, sem rodeios, que “não podíamos reprovar tantos alunos”. Havia metas a cumprir, índices a preservar, relatórios a compor. “Você vai mudar essas notas, é pelo bem da escola”, disse, com uma naturalidade cortante. O verbo *vai* ecoou como uma ordem indevida — um peso sobre minha consciência.

Naquele instante, minha mente revisitou cada falta, cada trabalho não entregue, cada silêncio em sala de aula. O que me pediam não era um mero ajuste numérico — era um gesto de conivência. Era apagar a verdade com um clique, rasurar a realidade em nome de uma política de resultados imediatos.

A sala dos professores, então, tornou-se uma trincheira muda. Olhares evitavam o confronto. Uns, resignados, justificavam: “é melhor passar do que ter esse aluno de novo”. Outros alegavam não querer problemas. Mas, ali, diante do impasse, compreendi: aprovar sem mérito não é um ato de compaixão — é uma violência contra a educação.

Lembrei-me de Cláudia, uma colega de literatura que há décadas sustenta seus princípios com serenidade. Um dia, diante do mesmo dilema, ela me disse: “Notas não são apenas números. São diagnósticos. E mais: são declarações de princípios. Ao assinar o diário, você declara se aquele aluno aprendeu — ou se você se rendeu.” Suas palavras voltaram como âncora em meio à tempestade.

Naquela noite, em casa, repassei mentalmente não apenas as vivências do ano, mas também a legislação. Recordei que o professor é o único responsável pela atribuição das notas. Que qualquer alteração sem seu consentimento configura falsificação. Não era apenas uma questão ética — era também legal. E, acima de tudo, era moral.

No dia seguinte, entrei na sala da diretora com o diário nas mãos e a convicção no olhar. “As notas estão lançadas conforme a aprendizagem demonstrada”, declarei. “Não posso alterá-las para maquiar índices. Se queremos melhorar resultados, precisamos melhorar o ensino — não fraudar os registros.” Educa-se mais, sim, reprovando os incompetentes — no sentido de reconhecer que a educação é, antes de tudo, compromisso com a verdade e com o esforço legítimo. Aprovar sem mérito é desmoralizar o mérito; é fingir que a ponte foi atravessada por quem sequer saiu da margem. A frase de Chamfort é preciosa: prestígio sem mérito gera aparência sem substância, bajulação sem respeito. Quando a escola aprova sem critério, não forma cidadãos — apenas aduladores do sistema. É na reprovação pedagógica, feita com critério e ética, que o aluno é confrontado com a realidade: não se avança sem preparo. A meritocracia, nesse caso, não é um privilégio, mas uma forma de justiça.

Ela tentou argumentar. Citou a secretaria de educação, os impactos institucionais. Mas não me demovi. Porque sei que promover automaticamente quem não aprendeu é apenas transferir o fracasso para o próximo ano, para outro professor, para uma escola que herdará o aluno ainda mais desestimulado e sem base. É iludir o próprio aluno, impedindo-o de reconhecer seus limites e potencialidades.

Sim, há alunos que se esforçaram apesar de todas as adversidades — familiares, emocionais, econômicas. A esses, devemos respeito. Mas, ao aprovar indiscriminadamente, sem critério, apagamos também a luta deles. Nivelamos por baixo e corroemos o valor da conquista.

Ser professor é, muitas vezes, caminhar na contramão das conveniências institucionais. É dizer “não” quando o sistema clama por obediência cega. É sustentar a verdade do processo educativo, mesmo quando isso implica incompreensão, isolamento ou retaliação. A caneta que carrego não é leve, mas traz consigo o peso da responsabilidade e da esperança.

Deixei a sala da diretora com o coração ainda agitado, mas com a consciência limpa. Reprovar não é castigar. É reconhecer que aprender exige esforço. É oferecer ao aluno a chance de reconstruir, refazer, recomeçar — e não ser empurrado adiante como um número que serve a um gráfico, mas não à vida.

A escola adoece, sim, mas não será com minha conivência. O verdadeiro sucesso educacional não se mede por planilhas ou relatórios. Ele se revela no brilho dos olhos de quem supera dificuldades, na coragem de quem sustenta a integridade mesmo sob pressão, na aprendizagem sólida que, mesmo silenciosa, ecoa no futuro.

Que sejamos lembrados, nós, professores, não pelos diplomas que assinamos, mas pelas verdades que ousamos sustentar. A nota que não se dobra é também a consciência que não se vende.


Como seu professor de Sociologia, ao reler minha crônica, fui levado a pensar sobre as complexas dinâmicas sociais que atravessam o ambiente escolar, especialmente as tensões entre normas institucionais, métricas de desempenho e o trabalho pedagógico real. Com base nessas reflexões, preparei 5 questões discursivas simples:


1. O texto descreve a pressão da direção da escola para que o professor altere as notas, visando melhorar os índices de avaliação externa (IDEB). Como a Sociologia analisa a influência de avaliações externas e metas de desempenho na gestão das escolas e nas práticas pedagógicas dos professores?

2. O narrador se posiciona como o responsável pela "verdade do processo educativo" ao atribuir as notas. De que forma a Sociologia entende o papel do professor como um agente de avaliação dentro do sistema escolar, e quais são os desafios éticos e profissionais que podem surgir nesse papel?

3. A crônica critica a "promoção automática" por considerar que ela "ilude o próprio aluno" e "transfere o fracasso". Quais as possíveis consequências sociais, a curto e longo prazo, de políticas educacionais que priorizam a aprovação sobre a aprendizagem efetiva, tanto para os estudantes quanto para o sistema educacional?

4. O texto mostra a tensão entre a conveniência institucional (melhorar índices) e a integridade profissional do professor. Como a Sociologia investiga os dilemas éticos enfrentados por profissionais em diferentes áreas e os fatores sociais que podem levar à pressão por comportamentos que contrariam a ética?

5. O professor decide "resistir" à pressão da diretora, defendendo sua autonomia e o valor da aprendizagem real. De que maneira a Sociologia estuda os atos de resistência individual ou coletiva dentro de instituições e por que, em alguns casos, indivíduos optam por defender seus princípios mesmo diante de possíveis retaliações?

quarta-feira, 30 de abril de 2025

O Direito de Aprender ("A inclusão acontece quando se aprende com as diferenças, não apesar delas." — Mel Ainscow)

 

O Direito de Aprender ("A inclusão acontece quando se aprende com as diferenças, não apesar delas." — Mel Ainscow)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Li a notícia como quem tropeça numa pedra invisível no meio do caminho. Daquelas que nos fazem parar, olhar ao redor e questionar em que mundo, afinal, estamos vivendo. Dois irmãos — crianças, neurodivergentes — tiveram a matrícula recusada por uma escola particular. E não foi por falta de vaga, mas por excesso de preconceito disfarçado de protocolo.

A sentença foi clara. O juiz, com o peso sereno das palavras bem ditas, afirmou que havia discriminação. Determinou a matrícula imediata e fixou indenização por danos morais. A escola, previsivelmente, tentou se justificar: excesso de alunos com necessidades especiais, reorganização interna, orientações da Secretaria de Educação. Mas as provas contavam outra história — em outras turmas, aceitavam-se mais de três alunos com diagnósticos semelhantes. A norma não era o problema. O problema era quem se escondia por trás dela.

Enquanto lia, tentei imaginar a cena: a mãe, com esperança nos olhos, liga para a escola, pergunta sobre a matrícula, fala dos filhos, menciona os laudos. Do outro lado da linha, a resposta — educada, mas atravessada por camadas de indiferença — nega o que deveria ser um direito. Depois disso, silêncio. Descaso. Portas que nunca se abrem.

Na sequência, deparei-me com outro caso. Um menino de nove anos, com autismo nível 2 e não verbal, foi vítima de maus-tratos numa escola pública. A mãe só descobriu o que acontecia quando outra criança, da mesma turma, gravou — escondido na mochila — os gritos e xingamentos das professoras. Era violência pura, vestida de rotina. O tipo de coisa que não aparece no boletim, mas que destrói por dentro.

Não conheço essas mães. Tampouco os filhos. Mas conheço bem esse sentimento de impotência que nos atravessa quando uma instituição que deveria acolher decide excluir. E reconheço com clareza quando um discurso institucional serve apenas de cortina de fumaça para a intolerância.

Enquanto isso, muitos fingem normalidade. Afinal, dizem, as crianças “especiais” já exigem demais, já têm “suas escolas”, “seus profissionais”. Como se inclusão fosse uma concessão — e não um direito. Como se viver fosse um privilégio que precisasse de autorização.

A verdade é que, para muitas famílias, a porta da escola é o primeiro muro. E não há trava mais cruel do que aquela que se instala nas mentes — e se repete nos corredores, nas salas de reunião, nos quadros de aviso.

Não sei quanto tempo ainda levaremos para entender, de verdade, o que significa uma escola para todos. Mas sei que, enquanto houver juízes dispostos a chamar as coisas pelo nome — e cidadãos atentos o bastante para não se calarem — talvez ainda possamos transformar essas manchetes em passado.

Por ora, fecho o jornal e respiro fundo. A crônica da exclusão, infelizmente, ainda é escrita todos os dias. Mas hoje — pelo menos hoje — o ponto final veio acompanhado de justiça.


https://www.migalhas.com.br/quentes/420813/tj-df-condena-df-por-maus-tratos-contra-crianca-autista-em-escola (Acessado em 30/04/2025)


Relendo minha crônica com a sensibilidade de um professor de Sociologia, percebo como ela expõe feridas sociais profundas sobre a inclusão e o respeito nas instituições. Com base nas ideias apresentadas, formulei 5 questões discursivas simples para estimular a reflexão sociológica sobre esses temas:


1. O texto descreve a recusa de matrícula de crianças neurodivergentes, apontando para um "preconceito disfarçado de protocolo". Como a Sociologia analisa de que forma normas ou práticas dentro de instituições (como escolas) podem, intencionalmente ou não, gerar exclusão e discriminação contra certos grupos de pessoas?

2. A crônica contrasta a ideia de uma "escola para todos" com a realidade de portas fechadas ou de maus-tratos a alunos com necessidades especiais. O que significa, sob uma perspectiva sociológica, o direito à educação inclusiva, e quais barreiras sociais, além das legais, dificultam sua plena realização?

3. O narrador menciona a vulnerabilidade das crianças e a falha de algumas instituições em acolher. Como a Sociologia estuda as dinâmicas de poder em ambientes como a escola e como essas dinâmicas podem afetar a experiência de alunos considerados mais vulneráveis, como aqueles com deficiência?

4. A crônica aponta para discursos que parecem justificar a exclusão de crianças "especiais". De que maneira os preconceitos e estereótipos presentes na sociedade influenciam as atitudes das pessoas e das instituições em relação à deficiência, contribuindo para a discriminação?

5. O texto mostra a justiça sendo acionada para garantir direitos e reparar danos. Qual o papel do sistema legal e das decisões judiciais, na visão da Sociologia, na luta contra a discriminação e na busca por maior justiça e igualdade social para grupos que enfrentam preconceito?