PROFESSOR NO CONTROLE OU CONTROLADO ("Aquilo que não puderes controlar, não ordenes." — Sócrates)
Por Claudeci Ferreira de Andrade
Todo início de ano letivo carrega em si um sopro de expectativa. A sala de aula, esse pequeno universo que se renova a cada grupo de alunos, sempre me desafia. Para mim, ser professor é como reger uma nova melodia a cada semestre — e cada turma traz notas diferentes, ritmos próprios, tons inesperados. Acredito no poder da inovação, na quebra da rotina, na força de estratégias que fogem do trivial. Foi com essa crença que, em um dia qualquer deste ano, entrei na sala do Ensino Médio armado de entusiasmo e de uma atividade especial: uma “Palavras Cruzadas” cuidadosamente elaborada para explorar o vocabulário. Pensava em unir o prazer do jogo à firmeza do conteúdo.
Mal comecei a introdução da proposta, uma voz atravessou a sala como uma flecha.
— “O senhor não tem conteúdo da Secretaria de Educação para ensinar, não?”
A pergunta, ou melhor, a acusação, veio carregada de ironia e insolência. A aluna me olhava como quem desafia, não como quem questiona. Por um instante, fui tomado por um espanto silencioso. A autoridade que construí com tantos anos de magistério foi, ali, colocada em xeque por uma frase impulsiva.
Felizmente, o acaso — ou talvez a experiência — estava do meu lado. Uma cópia da base curricular repousava na pasta sobre a mesa. Respirei fundo, recuperei o equilíbrio e, com calma, mostrei-lhe o documento. Nele, os conteúdos recomendados pela Secretaria não só respaldavam como sugeriam a abordagem que eu propunha. Ela silenciou, constrangida, "como o bêbado que entra na igreja" — sem rumo, sem argumento.
Mas o que mais me chamou atenção não foi a surpresa da aluna, e sim os aplausos discretos que ela recebeu do grupo que a cercava. Não se tratava de uma dúvida legítima, mas de uma encenação. O que estava em jogo não era o conteúdo, mas o controle. Era mais sobre a necessidade de autoafirmação do que sobre aprendizagem.
Esse episódio despertou em mim a lembrança de outra cena, igualmente desconcertante. Alunos do 2º ano haviam me denunciado à coordenação por, segundo eles, não cumprir os conteúdos “devidos”. A ironia? Eu estava utilizando o livro didático adotado pela escola. Poucos dias antes, outro grupo da mesma turma havia me criticado por fazer uso exclusivo do livro, dizendo que minhas aulas não tinham criatividade. A mesma prática, duas queixas antagônicas. Fui acusado tanto por usar quanto por não usar o mesmo material.
Diante dessas contradições, ficou evidente que muitos alunos não sabem o que significa ser aluno — tampouco compreendem o papel do professor.
Há uma fragilidade crescente no que chamo de autarcia docente — a autonomia legítima do professor para decidir o quê, como e quanto ensinar. Essa liberdade, essencial à prática pedagógica, está sendo engolida por uma rede de controles externos, desconfianças institucionais e julgamentos apressados. Nossa expertise é diariamente questionada por aqueles que ainda não conhecem o caminho do conhecimento, mas sentem-se no direito de apontar atalhos.
O problema não está, portanto, na metodologia utilizada, mas na lógica egoísta que impera: alunos mais preocupados em serem protagonistas de pequenas rebeliões do que em partilhar uma jornada de saber. Como construir um espaço de aprendizagem genuína se o terreno é ocupado por vaidades, desconfianças e relações corrompidas pela competição?
Quando o paciente tenta prescrever seu próprio remédio, o médico vira refém. Na escola, não é diferente. O professor, antes mediador de saberes, transforma-se num refém do agrado, e o aluno, num consumidor mimado de aulas feitas sob medida para seu prazer momentâneo.
Sigo refletindo pelos corredores. Pergunto a mim mesmo, como tantos outros professores fazem em silêncio: como educar sem confiança mútua? Como ensinar se nos negam a liberdade de escolher o caminho?
Ainda que o cenário pareça sombrio, creio que há saídas possíveis — e necessárias. Recuperar o prestígio do professor passa por devolver-lhe a autonomia, mas também por promover um pacto sincero entre escola, comunidade e alunos, em que o respeito seja o ponto de partida. É urgente criar espaços de escuta ativa, onde o diálogo se sobreponha à disputa e onde o ensino seja entendido como construção coletiva. Talvez devêssemos, todos, reaprender o silêncio: o que antecede a escuta, o que permite a compreensão, o que antecede o saber. O silêncio entre as palavras não é vazio — é intervalo fértil, onde pode germinar o que ainda não foi dito, mas precisa ser aprendido.
Acredito que a verdadeira educação nasce da cumplicidade: entre quem ensina e quem aprende. O professor não é um entregador de conteúdos, é um provocador de sentidos. E a autonomia que nos cabe não é privilégio, é ferramenta de construção. A sala de aula só floresce onde há espaço para a escuta, o respeito e a confiança. Sem isso, até mesmo a mais brilhante palavra cruzada se perde no vazio.
Minha crônica é um desabafo contundente e uma análise perspicaz sobre os desafios contemporâneos da educação. Ela aborda a fragilização da autonomia docente, a inversão de papéis na sala de aula, a cultura do egoísmo e do controle por parte dos alunos e a desconfiança institucional que permeia o ambiente escolar. Como professor de Sociologia do Ensino Médio, preparei 5 questões discursivas e simples, baseadas nas ideias principais de minha crônica, para aprofundar a discussão sobre esses temas em sala de aula.
1 - A crônica descreve um episódio em que uma aluna questiona o professor sobre o "conteúdo da Secretaria de Educação". Do ponto de vista da Sociologia da Educação, como a padronização curricular e a cultura da certificação podem influenciar a percepção dos alunos sobre o papel do professor e a validade de metodologias inovadoras?
2 - O texto evidencia uma situação em que os alunos não compreendem o papel do professor nem o seu próprio como aprendizes. À luz da Sociologia da Socialização, como as mudanças nas estruturas familiares e sociais contemporâneas podem afetar a formação dos estudantes sobre o que é ser aluno e as expectativas em relação à autoridade docente?
3 - O professor se refere à "fragilização da autarcia docente" e à perda da autonomia para decidir o quê, como e quanto ensinar. Com base na Sociologia das Profissões, como a burocratização e a desconfiança institucional em relação ao trabalho do professor podem levar à perda da identidade profissional e à diminuição da criatividade pedagógica?
4 - A crônica aponta para uma "lógica egoísta" dos alunos, mais preocupados em "serem protagonistas de pequenas rebeliões" do que em aprender. Discutindo a partir da Sociologia da Juventude, como a busca por reconhecimento social e a influência dos grupos de pares (como os "aplausos discretos" mencionados no texto) podem moldar o comportamento dos jovens em sala de aula, impactando o processo de ensino-aprendizagem?
5 - O autor compara o professor que vira "refém do agrado" a um médico cujo paciente tenta prescrever o próprio remédio. Sob a perspectiva da Sociologia das Relações de Poder, discuta as consequências de uma inversão da autoridade legítima na educação, onde a experiência e o saber do profissional são constantemente questionados ou minimizados, e como isso afeta a qualidade do ensino e a formação dos alunos.
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