MERCENÁRIOS DO MAGISTÉRIO ("Aos Mestres, todo meu apreço! Aos mercenários toda minha indignação." — Ronei Porto da Rocha)
Dizem que nem o relógio trabalha de graça. E é verdade. Ele não tem prioridades, não ama o que faz — apenas funciona. Se alguém quiser que ele continue marcando o tempo, precisa dar-lhe corda. Com os professores, não é tão diferente assim. Também precisamos de corda. E, muitas vezes, quem a segura nos enforca em vez de impulsionar.
Não foram poucas as vezes em que vi colegas desistirem do “abc” vocacional. Abandonaram o amor pelo ofício, rendidos à lógica implacável da sobrevivência. Tornaram-se mercenários da “merreca” que recebem. Eu não os julgo. Embora haja felicidade em amar o que se faz, amor não paga boleto. É aí que a profissão escancara sua contradição: como exigir espírito de missão de quem vive numa missão de resgate — tentando salvar a própria dignidade?
A verdade é desconfortável: um professor muito rico causa estranheza à sociedade. Você já viu algum milionário ensinando outro a ficar rico? Pois é. Eu também nunca vi. O que ensinamos, de fato, é como se virar na falta — como lidar com as dificuldades. Mas as dificuldades dos ricos não servem aos pobres. São feitas de outro tecido.
Nos grupos de WhatsApp das escolas em que trabalho, o tema dominante é sempre o mesmo: salário. Reivindicações, tabelas comparativas, promessas não cumpridas. “Aff!” — como escrevem os mais cansados de repetir o óbvio. Eu também reclamo, admito, mas meu foco não está no salário. Reclamo dos absurdos metodológicos, da falta de estrutura, das decisões tomadas à distância, por quem nunca pisou no chão da sala de aula. Mas isso exige mais esforço. Reclamar de salário é mais simples — e mais aceito.
Lembro bem de uma fala da professora e ex-vereadora Amanda Gurgel:
“Estão me colocando dentro de uma sala de aula com um giz e um quadro para salvar o Brasil? Não posso, não tenho condições. Muito menos com o salário que recebo. (...) Outra coisa que me deixava mal era que, como vereadora, recebia em um mês o que a escola recebia em um ano para funcionar.”
Mesmo assim, ela continuou recebendo o salário de professora, repassando a diferença ao partido. Um gesto raro. Coletivo. Idealista até demais para os dias de hoje.
A contradição, porém, permanece: como exigir respeito de um aluno que descobre que ganha mais vendendo balas no semáforo do que o professor que tenta lhe ensinar a escrever uma redação? O prestígio docente evaporou. Ser “mercenário” virou quase uma exigência de sobrevivência no serviço público.
Podem enviar rios de dinheiro, construir prédios suntuosos, equipar as escolas com tecnologia de ponta. Nada disso resolverá. Porque o problema começa antes mesmo do portão da escola. É político. É estrutural. É familiar. Lidamos com alunos sem objetivos, sem propósito, sem respeito. E, sobretudo, sem disciplina.
Amanda Gurgel, ao menos, ficou famosa. E eu? Nem isso.
“Alguns alunos eram pré-adolescentes e nem sabiam de nada sobre mim”, disse ela uma vez. “Os mais velhos tiravam onda dizendo que eu era rica porque era celebridade.”
Riram, como quem conhece a verdade, mas prefere brincar com ela.
Ainda assim, há professores que resistem — não por heroísmo, mas por coerência com seus ideais. Conheço colegas que, mesmo em meio ao caos, reinventaram suas práticas, criaram projetos com o pouco que tinham, e conseguiram tocar corações. Há escolas que, silenciosamente, têm promovido transformações significativas, mesmo sem holofotes. A tecnologia, quando usada com sentido pedagógico, também tem potencial para resgatar o interesse e abrir horizontes. É pouco, sim, diante de um sistema em frangalhos. Mas são fagulhas que mantêm viva a esperança de que, mesmo sem corda, ainda podemos marcar o tempo com dignidade.
No fim, percebo: talvez sejamos todos um pouco como o relógio — seguimos funcionando, mesmo quando esquecem de nos dar corda. Mas há dias em que a mola interna não dá conta. E, nesses dias, tudo o que nos resta é torcer para que, em algum canto da sala, ainda exista um aluno disposto a ouvir o tique-taque do nosso esforço.
Porque, mesmo sem glamour, fortuna ou fama, seguimos marcando o tempo de uma geração. Só que, diferentemente dos relógios, nós sentimos cada segundo passar.
https://www.thaisagalvao.com.br/2020/11/23/cade-amanda-gurgel-campea-de-votos-em-2012-e-derrotada-com-mais-de-8-mil-votos-em-2016/ (acessado em 30/06/2025).
Depois da leitura atenta da crônica, vamos refletir um pouco sobre as questões sociais que ela levanta a respeito da profissão de professor no Brasil. Peguem o caderno e preparem-se para pensar sociologicamente. Aqui estão 5 questões para vocês desenvolverem com base nas ideias do texto:
1 - O autor afirma que alguns professores abandonam a "vocação" para se tornarem "mercenários da merreca". Explique com suas palavras o que essa oposição entre "vocação" e "mercenário" significa no contexto da profissão docente apresentado no texto.
2 - De acordo com a crônica, por que o baixo salário de um professor pode se tornar um problema não apenas para a sua sobrevivência, mas também para a sua autoridade e respeito dentro da sala de aula?
3 - O texto defende que "enviar rios de dinheiro, construir prédios suntuosos" não é suficiente para resolver os problemas da educação. Segundo o autor, quais são os problemas mais profundos que o dinheiro, por si só, não consegue consertar?
4 - O autor compara o professor a um relógio, que precisa de "corda" para funcionar. No entanto, no final, ele aponta uma diferença fundamental entre os dois. Qual é essa diferença e por que ela é importante para entendermos o sofrimento do professor?
5 - O texto sugere que a sociedade não espera que um professor ensine os outros a ficarem ricos. Na visão do autor, qual é, então, a verdadeira lição que os professores acabam ensinando aos seus alunos no dia a dia?
Dizem que nem o relógio trabalha de graça. E é verdade. Ele não tem prioridades, não ama o que faz — apenas funciona. Se alguém quiser que ele continue marcando o tempo, precisa dar-lhe corda. Com os professores, não é tão diferente assim. Também precisamos de corda. E, muitas vezes, quem a segura nos enforca em vez de impulsionar.
Não foram poucas as vezes em que vi colegas desistirem do “abc” vocacional. Abandonaram o amor pelo ofício, rendidos à lógica implacável da sobrevivência. Tornaram-se mercenários da “merreca” que recebem. Eu não os julgo. Embora haja felicidade em amar o que se faz, amor não paga boleto. É aí que a profissão escancara sua contradição: como exigir espírito de missão de quem vive numa missão de resgate — tentando salvar a própria dignidade?
A verdade é desconfortável: um professor muito rico causa estranheza à sociedade. Você já viu algum milionário ensinando outro a ficar rico? Pois é. Eu também nunca vi. O que ensinamos, de fato, é como se virar na falta — como lidar com as dificuldades. Mas as dificuldades dos ricos não servem aos pobres. São feitas de outro tecido.
Nos grupos de WhatsApp das escolas em que trabalho, o tema dominante é sempre o mesmo: salário. Reivindicações, tabelas comparativas, promessas não cumpridas. “Aff!” — como escrevem os mais cansados de repetir o óbvio. Eu também reclamo, admito, mas meu foco não está no salário. Reclamo dos absurdos metodológicos, da falta de estrutura, das decisões tomadas à distância, por quem nunca pisou no chão da sala de aula. Mas isso exige mais esforço. Reclamar de salário é mais simples — e mais aceito.
Lembro bem de uma fala da professora e ex-vereadora Amanda Gurgel:
“Estão me colocando dentro de uma sala de aula com um giz e um quadro para salvar o Brasil? Não posso, não tenho condições. Muito menos com o salário que recebo. (...) Outra coisa que me deixava mal era que, como vereadora, recebia em um mês o que a escola recebia em um ano para funcionar.”
Mesmo assim, ela continuou recebendo o salário de professora, repassando a diferença ao partido. Um gesto raro. Coletivo. Idealista até demais para os dias de hoje.
A contradição, porém, permanece: como exigir respeito de um aluno que descobre que ganha mais vendendo balas no semáforo do que o professor que tenta lhe ensinar a escrever uma redação? O prestígio docente evaporou. Ser “mercenário” virou quase uma exigência de sobrevivência no serviço público.
Podem enviar rios de dinheiro, construir prédios suntuosos, equipar as escolas com tecnologia de ponta. Nada disso resolverá. Porque o problema começa antes mesmo do portão da escola. É político. É estrutural. É familiar. Lidamos com alunos sem objetivos, sem propósito, sem respeito. E, sobretudo, sem disciplina.
Amanda Gurgel, ao menos, ficou famosa. E eu? Nem isso.
“Alguns alunos eram pré-adolescentes e nem sabiam de nada sobre mim”, disse ela uma vez. “Os mais velhos tiravam onda dizendo que eu era rica porque era celebridade.”
Riram, como quem conhece a verdade, mas prefere brincar com ela.
Ainda assim, há professores que resistem — não por heroísmo, mas por coerência com seus ideais. Conheço colegas que, mesmo em meio ao caos, reinventaram suas práticas, criaram projetos com o pouco que tinham, e conseguiram tocar corações. Há escolas que, silenciosamente, têm promovido transformações significativas, mesmo sem holofotes. A tecnologia, quando usada com sentido pedagógico, também tem potencial para resgatar o interesse e abrir horizontes. É pouco, sim, diante de um sistema em frangalhos. Mas são fagulhas que mantêm viva a esperança de que, mesmo sem corda, ainda podemos marcar o tempo com dignidade.
No fim, percebo: talvez sejamos todos um pouco como o relógio — seguimos funcionando, mesmo quando esquecem de nos dar corda. Mas há dias em que a mola interna não dá conta. E, nesses dias, tudo o que nos resta é torcer para que, em algum canto da sala, ainda exista um aluno disposto a ouvir o tique-taque do nosso esforço.
Porque, mesmo sem glamour, fortuna ou fama, seguimos marcando o tempo de uma geração. Só que, diferentemente dos relógios, nós sentimos cada segundo passar.
https://www.thaisagalvao.com.br/2020/11/23/cade-amanda-gurgel-campea-de-votos-em-2012-e-derrotada-com-mais-de-8-mil-votos-em-2016/ (acessado em 30/06/2025).
Depois da leitura atenta da crônica, vamos refletir um pouco sobre as questões sociais que ela levanta a respeito da profissão de professor no Brasil. Peguem o caderno e preparem-se para pensar sociologicamente. Aqui estão 5 questões para vocês desenvolverem com base nas ideias do texto:
1 - O autor afirma que alguns professores abandonam a "vocação" para se tornarem "mercenários da merreca". Explique com suas palavras o que essa oposição entre "vocação" e "mercenário" significa no contexto da profissão docente apresentado no texto.
2 - De acordo com a crônica, por que o baixo salário de um professor pode se tornar um problema não apenas para a sua sobrevivência, mas também para a sua autoridade e respeito dentro da sala de aula?
3 - O texto defende que "enviar rios de dinheiro, construir prédios suntuosos" não é suficiente para resolver os problemas da educação. Segundo o autor, quais são os problemas mais profundos que o dinheiro, por si só, não consegue consertar?
4 - O autor compara o professor a um relógio, que precisa de "corda" para funcionar. No entanto, no final, ele aponta uma diferença fundamental entre os dois. Qual é essa diferença e por que ela é importante para entendermos o sofrimento do professor?
5 - O texto sugere que a sociedade não espera que um professor ensine os outros a ficarem ricos. Na visão do autor, qual é, então, a verdadeira lição que os professores acabam ensinando aos seus alunos no dia a dia?
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