"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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MINHAS PÉROLAS

quarta-feira, 26 de março de 2025

DECLÍNIO ("Tempos difíceis virão, marcados pela maldade e egoísmo humanos." — Apostolo Paulo)

 

DECLÍNIO ("Tempos difíceis virão, marcados pela maldade e egoísmo humanos." — Apostolo Paulo)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Houve um tempo em que a escola era um refúgio. Os alunos viam nas carteiras enfileiradas uma oportunidade de escapar do trabalho pesado, do rigor da vida adulta que batia à porta cedo demais. Estudar não era apenas um dever, mas um abrigo. Hoje, a realidade se inverteu: o que antes era esperança tornou-se castigo. E, como professor, testemunho essa metamorfose com um misto de perplexidade e desalento.

Três décadas de magistério e nunca vi turmas tão áridas de curiosidade, tão impermeáveis ao conhecimento. O conteúdo está ali, farto e acessível como nunca, com livros, internet, projetos e programas de incentivo. No entanto, a aprendizagem patina. O pensamento lógico se tornou um deserto, e a escrita, um amontoado de frases soltas, desprovidas de coesão e alma. Os olhos vidrados nas telas brilham mais do que as mentes. A escola tenta oferecer tudo, mas a sede por saber parece extinta.

Não falo apenas do Ensino Médio. A erosão do intelecto começa cedo, já nos primeiros anos do Fundamental. Lá, onde deveria germinar o encanto pelo mundo das palavras e dos números, floresce o imediatismo. A paciência para o esforço, para o erro e a correção, se perdeu. O conhecimento se tornou um fardo pesado demais para ombros acostumados ao conforto.

E não é só culpa dos alunos. Os pais, distraídos ou coniventes, não percebem – ou fingem não perceber – a mediocridade que se alastra. Acostumaram-se a uma educação que não cobra, que não exige, que perdoa tudo em nome de uma suposta inclusão. O resultado é uma geração que se orgulha de saber pouco e que rejeita qualquer desafio que exija mais do que um clique.

Penso nos que desistiram: em professores que, vencidos pela apatia estudantil, trocaram a lousa por outros ofícios; em alunos que, cegos pelo desinteresse, desistiram antes mesmo de tentar. Pergunto-me: quando foi que a escola deixou de ser um lugar de descobertas para se tornar um incômodo? Quando foi que aprender passou a ser visto como punição?

Talvez eu esteja velho para essas respostas. Talvez o que vejo seja apenas um fragmento de algo maior, um sintoma de um tempo em que o esforço foi desvalorizado. Mas uma coisa é certa: a colheita virá, sempre vem. E temo que, quando enfim perceberem o estrago, o solo já esteja infértil para qualquer recomeço.


"1 Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos.

2 Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos,

3 Sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, intemperantes, cruéis, sem amor para com os bons,

4 Traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus,

5 Tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te.

6 Porque deste número são os que se introduzem pelas casas, e levam cativas mulheres néscias carregadas de pecados, levadas de várias concupiscências;

7 Que aprendem sempre, e nunca podem chegar ao conhecimento da verdade.

8 E, como Janes e Jambres resistiram a Moisés, assim também estes resistem à verdade, sendo homens corruptos de entendimento e réprobos quanto à fé.

9 Não irão, porém, avante; porque a todos será manifesto o seu desvario, como também o foi o daqueles" ( 2 Tm 3: 1-9).


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. O autor descreve uma inversão na percepção da escola, que antes era vista como um "refúgio" e hoje é encarada como um "castigo". Sob uma perspectiva sociológica, quais fatores sociais, econômicos ou culturais podem ter contribuído para essa mudança na relação dos estudantes com a instituição escolar?

2. O texto lamenta a "aridez de curiosidade" e a dificuldade dos alunos em desenvolver o pensamento lógico e a escrita coerente, apesar da abundância de recursos educacionais. De que maneira a sociologia analisa o papel da escola no desenvolvimento dessas habilidades e quais elementos da sociedade contemporânea poderiam estar impactando negativamente esse processo?

3. O autor aponta para a possível influência dos pais, que se acostumaram a uma educação menos exigente, na formação de uma geração com menor interesse pelo esforço intelectual. Como a sociologia aborda a relação entre família e escola no processo de socialização e na construção dos valores relacionados à educação?

4. O texto expressa uma preocupação com o futuro, utilizando a metáfora da "colheita" para se referir às possíveis consequências do atual cenário educacional. De que forma a sociologia analisa a importância da educação para o desenvolvimento social e econômico de uma sociedade, e quais seriam os potenciais impactos de um sistema educacional com os desafios apontados pelo autor?

5. O autor inclui uma passagem bíblica que descreve "tempos trabalhosos" e características negativas dos indivíduos. Estabeleça uma possível conexão sociológica entre as observações do autor sobre a situação atual da educação e os traços de comportamento descritos na passagem bíblica. Essa conexão sugere uma visão de declínio social? Justifique sua resposta.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Reflexões de um Professor Desacreditado (Os professores incríveis se achando ruins, por conta de um sistema ruim que se acha incrível. — Professora Gesiane Ramalho)

 

Reflexões de um Professor Desacreditado (Os professores incríveis se achando ruins, por conta de um sistema ruim que se acha incrível. — Professora Gesiane Ramalho)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Sempre achei curioso como a escola, esse espaço que deveria ser um celeiro de conhecimento e transformação, consegue muitas vezes funcionar como um moinho que tritura sonhos e expectativas. No início da carreira, acreditava que o trabalho de um professor era iluminar mentes, acender curiosidades, despertar reflexões. Com o tempo, percebi que, dentro desse sistema escolar, o papel do mestre é frequentemente o de um personagem invisível, esmagado por engrenagens que giram sem qualquer preocupação com quem as movimenta.


A caneta paira sobre o papel em branco, hesitante. Mais de trinta anos dedicados ao ensino, e a cada novo ciclo letivo, a mesma ponta de angústia me cutuca. Lembro-me daquele brilho nos olhos quando corrigia a primeira redação impecável, da euforia contagiante ao ver um aluno finalmente desvendar a lógica de um poema. Éramos faróis, incendiando mentes jovens com a chama do conhecimento. Éramos...
Hoje, sinto-me mais como uma vela quase apagada, tremulando sob a brasa de um sistema que insiste em se autoelogiar. Observo meus colegas, outrora mestres entusiasmados, arrastando os pés pelos corredores, o sorriso cansado, a voz embargada por um desânimo silencioso. A paixão que nos movia parece ter se esvaído, gota a gota, diante de metas irreais, burocracias sufocantes e a constante sensação de nadar contra a correnteza.
Lembro-me bem de uma colega brilhante. Suas aulas eram envolventes, sua presença em sala, magnética. Os alunos a respeitavam – ou pelo menos, era o que eu imaginava. Certo dia, encontrei-a cabisbaixa na sala dos professores. "O que houve?", perguntei. Ela suspirou, apontando para um bilhete amassado em sua mão. Era uma anotação da coordenação: uma reclamação formal sobre o seu método, supostamente rígido demais. Nenhuma menção ao impacto positivo que ela causava naqueles que realmente se importavam em aprender, nenhum elogio ao brilho que imprimia em cada explicação. Apenas uma advertência velada, uma tentativa de moldá-la ao formato padrão, insípido e previsível.
Começou sutilmente, talvez com a imposição de um currículo engessado, que parecia ignorar a diversidade dos nossos alunos e as particularidades de cada turma. Depois vieram as avaliações externas, números frios que não capturavam o calor da nossa dedicação nem o progresso individual de cada criança. Aos poucos, a autonomia em sala de aula foi sendo cerceada, as inovações desestimuladas, e a criatividade, essa ferramenta essencial do ensino, tornou-se um luxo raro.
A cada reunião pedagógica, a mesma ladainha: índices, metas, números, relatórios. Mas nunca, jamais, a pergunta essencial: como você está? Você ainda sente que vale a pena? Alguém já lhe disse que seu trabalho faz diferença? No silêncio dessa ausência de reconhecimento, muitos vão apagando a chama que um dia os fez acreditar que poderiam mudar o mundo.
Lembro-me daquele projeto sobre literatura brasileira que desenvolvi com tanto afinco, culminando em uma apresentação teatral emocionante feita pelos alunos. O diretor, na época, elogiou a iniciativa, mas logo em seguida, mandou a coordenadora me orientar a parar com execução do plano, pois os colegas reclamaram que a movimentação atrapalhava as aulas deles. Então, a prioridade passou a ser o cumprimento rigoroso de planilhas e relatórios, como se a alma da educação pudesse ser quantificada em gráficos e tabelas. E assim, fomos nos tornando meros executores de um plano pré-fabricado, peças substituíveis em uma engrenagem que se vangloriava da própria eficiência, enquanto nós, os artesãos do saber, sentíamos nossas mãos cada vez mais atadas.
A ironia é que os professores incríveis, aqueles que desafiam o comodismo e buscam transformar a educação em algo real e pulsante, acabam muitas vezes se sentindo pequenos e desacreditados. Não por incompetência, mas porque operam dentro de um sistema que se vangloria de sua própria eficácia, mesmo quando falha estrondosamente. A escola se acha grandiosa enquanto seus mestres, exaustos, se convencem de que são insuficientes.
Vejo o reflexo dessa insatisfação nos rostos dos meus alunos, que percebem o nosso desânimo, a falta daquele entusiasmo contagiante. Como inspirá-los a sonhar, a ir além, se nós mesmos nos sentimos presos em um ciclo vicioso? A ironia cruel reside justamente aí: nós, que nos dedicamos a construir futuros, nos sentimos impotentes diante de um presente que nos asfixia.
Talvez a maior tragédia não seja a nossa sensação de inadequação, mas o potencial desperdiçado, os talentos sufocados, a energia criativa que poderia transformar a educação, mas que se perde na engrenagem desse sistema que se julga impecável. E enquanto a máquina burocrática continua rodando, alheia ao nosso desgaste, resta-nos a silenciosa constatação de que, por trás de cada professor desmotivado, há um mar de possibilidades inexploradas, um universo de aprendizado que jamais será plenamente descoberto. A pergunta que ecoa em minha mente é: até quando permitiremos que essa engrenagem continue triturando o coração da educação?


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. O autor inicia o texto contrastando a visão idealizada da escola como um "celeiro de conhecimento e transformação" com a realidade percebida como um "moinho que tritura sonhos e expectativas". De que maneira essa metáfora inicial reflete as tensões e desafios enfrentados pelos professores no sistema educacional descrito no texto?

2. O cronista relata a perda de entusiasmo e paixão entre os professores, atribuindo isso a fatores como "metas irreais, burocracias sufocantes e a constante sensação de nadar contra a correnteza". Como a sociologia pode analisar o impacto das condições de trabalho e das estruturas organizacionais na motivação e no bem-estar dos profissionais da educação?

3. A narrativa destaca a falta de reconhecimento e apoio aos professores, evidenciada pela ausência de perguntas sobre seu bem-estar nas reuniões pedagógicas e pela valorização excessiva de métricas e relatórios. De que forma a sociologia aborda a importância do reconhecimento social e profissional para a manutenção da qualidade do trabalho e da saúde mental dos indivíduos?

4. O autor descreve a ironia de "professores incríveis" se sentirem "pequenos e desacreditados" dentro de um sistema que se vangloria de sua eficácia. Como a sociologia explica as dinâmicas de poder e as relações hierárquicas dentro das instituições educacionais, e como essas dinâmicas podem afetar a percepção que os profissionais têm de seu próprio valor?

5. Ao final do texto, o cronista expressa preocupação com o "potencial desperdiçado" e os "talentos sufocados" dentro do sistema educacional. De que maneira a sociologia analisa o papel da educação na promoção do desenvolvimento individual e social, e quais são as possíveis consequências para a sociedade quando o potencial dos educadores e dos alunos não é plenamente realizado?

domingo, 23 de março de 2025

Cicatrizes Invisíveis ("A infância é um reino onde ninguém morre." - Cecília Meireles)

 

Cicatrizes Invisíveis ("A infância é um reino onde ninguém morre." - Cecília Meireles)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Os corredores da escola municipal de Pium, antes preenchidos por vozes animadas e passos apressados, agora ecoavam um silêncio pesado naquela quinta-feira de março. Policiais entravam e saíam da diretoria, carregando equipamentos eletrônicos apreendidos, enquanto olhares atônitos os seguiam. Havia algo no ar, além da poeira suspensa sob a luz que atravessava as janelas: era o peso da confiança quebrada, que pairava sobre aquele espaço que deveria ser sagrado para o desenvolvimento das crianças.

Na sala dos professores, o silêncio opressor tomou conta quando a notícia chegou. O coordenador disciplinar, aquele homem de 53 anos que tanto prezava pelas regras e pela disciplina, havia sido preso. As acusações eram devastadoras: estupro de vulnerável e coação de uma aluna para produzir materiais íntimos.

—"Como não percebemos nada?", perguntou Maria, professora de português, com lágrimas nos olhos. Seu questionamento ecoou entre os colegas, cada um carregando sua própria culpa silenciosa.

A pequena cidade de Pium jamais imaginaria que, por trás da máscara de autoridade, se escondia alguém capaz de criar um perfil falso para ameaçar uma criança de apenas 11 anos com "maldições" contra ela e sua mãe. A perversidade do método não só revelava um planejamento meticuloso, mas também um padrão comportamental. Descobriu-se posteriormente que ele já respondia por um crime semelhante contra a própria enteada em Palmas, antes de se mudar para a pacata cidade em 2018.

Nas semanas seguintes, a comunidade escolar transformou-se. Pais aterrorizados passaram a buscar seus filhos pessoalmente, aguardando ansiosos no portão muito antes do sino final. Professores tornaram-se mais vigilantes, observando cada interação adulto-criança com olhos renovados. A secretaria municipal exonerou o servidor imediatamente, mas a demissão parecia um gesto insuficiente diante do trauma infligido àquela menina e à confiança coletiva depositada na instituição.

Os dispositivos eletrônicos apreendidos naquele dia revelaram um arquivo sombrio de imagens e vídeos que ampliavam o horror para dimensões ainda mais assustadoras. Enquanto o homem era encaminhado para a Unidade Prisional de Paraíso, a cidade inteira parecia refletir sobre as prisões invisíveis em que suas vítimas permaneceriam.

Três meses depois, as aulas seguiam seu curso natural. Novos protocolos de segurança foram implementados, e o novo coordenador disciplinar carregava nos ombros o peso de reconstruir a confiança perdida. Mas havia cicatrizes invisíveis nos corredores — lembrando a todos que a vigilância pelo bem-estar das crianças jamais deveria ser relaxada.

A jovem de 12 anos voltava gradualmente às aulas, seu olhar ainda carregado de desconfiança. Uma psicóloga, durante uma reunião com o corpo docente, compartilhara palavras que agora pareciam gravadas nas paredes da escola: "A pior violência é aquela perpetrada por quem deveria proteger."

Agora, a comunidade carregava uma responsabilidade maior. O silêncio e a omissão eram cúmplices dos predadores que se escondiam por trás de cargos de autoridade. E nenhuma criança deveria atravessar os portões da escola carregando o medo, ao invés da esperança. Esta era a lição que Pium aprendera da maneira mais dolorosa possível.


https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2025/03/20/coordenador-de-escola-e-preso-suspeito-de-estuprar-aluna-apos-coagi-la-a-gravar-videos-intimos-diz-delegada.ghtml (Acessado em 23/03/2025)


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. O texto descreve a prisão do coordenador disciplinar como uma quebra de confiança na comunidade escolar. De que maneira a sociologia analisa o papel das figuras de autoridade em instituições como a escola e as consequências sociais quando essa confiança é abalada?

2. A pergunta da professora Maria, "Como não percebemos nada?", sugere uma reflexão sobre a dificuldade de identificar e prevenir casos de abuso. Sob uma perspectiva sociológica, quais fatores podem contribuir para a invisibilidade da violência sexual contra crianças em ambientes institucionais?

3. O texto menciona o uso de um perfil falso na internet para ameaçar a vítima, revelando uma forma de violência que se utiliza da tecnologia. Como a sociologia estuda as novas formas de violência e coerção facilitadas pelo ambiente virtual, e quais são os desafios para a proteção de crianças e adolescentes nesse contexto?

4. A reação da comunidade escolar, com pais buscando seus filhos e professores tornando-se mais vigilantes, demonstra o impacto social do crime. De que maneira a sociologia analisa as respostas coletivas a eventos traumáticos e a importância da mobilização da comunidade na proteção de seus membros mais vulneráveis?

5. A metáfora das "cicatrizes invisíveis" e a citação da psicóloga sobre a violência perpetrada por quem deveria proteger apontam para as consequências duradouras do abuso. Como a sociologia aborda o conceito de trauma social e a importância do apoio psicossocial para as vítimas e a comunidade afetada por eventos como este?

sábado, 22 de março de 2025

Quem Tem Piolho Que Se Coce ("Palavras são pontes de papel." - Carlos Drummond de Andrade)

 

Quem Tem Piolho Que Se Coce ("Palavras são pontes de papel." - Carlos Drummond de Andrade)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Quarenta anos de magistério e Maria das Graças Oliveira nunca imaginou que uma sexta-feira qualquer a levaria a sentar do outro lado da mesa em uma delegacia. Ela, com seus 59 anos, professora de português do colégio estadual em Campina Grande do Sul, com mais diplomas na parede do que paciência nos dias ruins, indiciada por injúria racial. A vida tem dessas ironias — passa-se décadas tentando ensinar os jovens a serem melhores pessoas, e em um instante de irritação, é-se alvo da própria lição.

Começou como qualquer segunda-feira, 17 de março de 2025. O ar condicionado quebrado, trinta e cinco adolescentes inquietos e Maria, com a garganta já rouca na primeira aula. Quando avistou aquele pontinho preto pulando entre os cabelos de Bruno, seu aluno do segundo ano do ensino médio, foi como se um interruptor tivesse sido acionado dentro dela. Um piolho. Um simples e minúsculo piolho.

— "Bruno, você está com piolho", - anunciou, com a naturalidade de quem comenta sobre o clima. A sala inteira congelou por um segundo, para em seguida explodir em risadas. O rosto de Bruno, um garoto negro de dezesseis anos que sempre se sentava no fundo da sala, ardeu em vermelho sob sua pele escura.

—"Não tenho não, professora", - ele murmurou, passando as mãos pelo cabelo crespo, cortado bem rente à cabeça.

Ela deveria ter parado ali. Deveria ter mudado de assunto, pedido silêncio, continuado a aula sobre orações subordinadas. Mas há algo no cansaço acumulado de quatro décadas que às vezes faz esquecer o óbvio — que as palavras têm peso, especialmente quando vêm de cima de um tablado, diante de uma plateia juvenil ávida por drama.

— "Se tem piolho, come ele então, Bruno. É o que fazem os..." — e parou. Maria jurava que havia parado antes de completar a frase. Mas o estrago já estava feito. O silêncio que se seguiu pesava toneladas. Uma aluna da primeira fileira, Janaína, ergueu o celular sorrateiramente. A professora sabia que estava sendo gravada, mas algo nela já havia desistido de lutar contra a maré.

A ordem, disparada em tom autoritário e carregada de desprezo, foi de uma crueldade impensável. A referência ao piolho, um ser desprezível para muitos, remeteu a um estigma de inferioridade que associa a humanidade à animalidade. O gesto foi além do insulto; foi uma marca na alma de quem presenciou a cena, e de quem, com o tempo, ouviria falar sobre o ocorrido.

Maria experimentou aquela sensação de estar assistindo a si mesma de fora do corpo. Viu-se de longe, uma senhora de cabelos grisalhos presos em um coque desalinhado, óculos de armação vermelha escorregando pelo nariz, olhando para um adolescente humilhado enquanto a sala inteira prendia a respiração.

Bruno levantou-se em silêncio, juntou seu material e saiu. Não bateu a porta. Talvez isso tenha sido o pior — o modo digno como ele se retirou, sem dar à professora o luxo de poder dizer depois que ele foi desrespeitoso.

A diretora chamou Maria no final do dia. As câmeras de segurança da escola haviam registrado o momento exato em que Bruno, no corredor, desabou em lágrimas contra a parede de azulejos desbotados. A ata escolar já estava sendo preparada. A mãe dele havia sido chamada.

— "Maria, por que logo você?", - perguntou Eliane, a diretora, com quem ela compartilhava cafés há mais de vinte anos.

Como explicar? Como dizer que não foi racismo, mas cansaço? Que não associou o piolho à cor da pele dele, mas à condição humana universal de às vezes ver-se infestado por parasitas — literais ou metafóricos? Como argumentar que sua frase inacabada poderia ter mil finais diferentes daquele que todos presumiram?

Mas a verdade é que nem ela mesma sabia qual seria o final daquela frase se não tivesse se contido a tempo.

A notícia se espalhou mais rápido que piolho em creche. Na sexta-feira, o inquérito policial já estava aberto e o nome de Maria circulava nos grupos de WhatsApp da cidade inteira. Campina Grande do Sul pode ser pequena demais para os sonhos de muitos adolescentes, mas é grande o suficiente para que uma fofoca se transforme em escândalo público em questão de horas.

O caso não passou despercebido. Testemunhas relataram a humilhação do aluno, e as imagens das câmeras de segurança mostraram o que, em outras circunstâncias, poderia ter sido apenas um desentendimento verbal. A investigação foi conduzida com a seriedade que o caso exigia. A escola, palco da tragédia, foi envolvida em um processo de apuração que visava compreender a extensão da agressão.

Sentada na delegacia, olhando para o delegado que poderia ser seu ex-aluno, trinta anos mais novo que ela, Maria entendeu finalmente o que tantas vezes tentou ensinar nas suas aulas de análise textual: palavras têm contexto, têm história, têm DNA. Certas expressões carregam séculos de opressão em suas sílabas.

Agora, com o indiciamento por injúria racial pesando sobre seus ombros, esperava pelo parecer do Ministério Público, enquanto as horas se arrastavam como lesmas de borracha. Já não dava aulas — estava afastada "para preservar o ambiente escolar", como dizia o documento oficial da Secretaria de Educação.

Bruno voltou às aulas, soube por colegas. Parecia que os outros professores estavam extra-atenciosos com ele. Maria esperava sinceramente que esta história não o marcasse para sempre, que ele conseguisse ver que o erro terrível dela não definia quem ele era ou seria.

O que aconteceu naquela sala de aula é um reflexo de um problema muito maior que perpassa as paredes das escolas e entra pelas frestas da educação brasileira. Não é apenas um episódio de crueldade isolada ou de um erro pontual. Revela um estado de coisas que, talvez, ainda não estejamos prontos para compreender em sua totalidade.

Como fica o aluno? O que ele aprende em uma escola que, ao invés de formar cidadãos, destrói sua autoestima? O que fica de uma experiência escolar marcada pela dor e pelo medo? Não se pode esperar que alguém se torne um sujeito pleno e consciente se, dentro da própria escola, as bases de seu desenvolvimento são minadas.

A escola, que deveria ser o refúgio do aprendizado, não pode ser um campo de batalha. Não pode se tornar um lugar onde o poder de um professor sobre o aluno é exercido através da humilhação e da opressão. A sala de aula, mais do que um espaço físico, deve ser um lugar de empatia, onde a educação vai além da transmissão de conteúdos, e envolve, acima de tudo, o respeito e a valorização do ser humano.

Quanto a Maria, descobria tardiamente que ensinar também é aprender, muitas vezes da maneira mais dolorosa. No seu caso, aprendeu que não importa quantos livros lemos ou quantos diplomas penduramos na parede — se não houvermos interiorizado verdadeiramente o respeito pela dignidade de cada ser humano, todo nosso conhecimento não passa de casca vazia.

Essa história não é uma exceção. Ao contrário, é um reflexo de uma realidade que, por vezes, se esconde sob o manto de uma autoridade mal compreendida. Somos todos responsáveis pela construção de um ambiente educacional mais saudável e inclusivo, onde todos, professores e alunos, possam se respeitar como seres humanos, acima de qualquer hierarquia ou hierarquização.

E assim, a escola, que deveria ser o lugar da transformação, precisa urgentemente se transformar. Para que o exemplo de hoje não se repita, para que o poder do educador nunca mais seja usado contra a dignidade de um ser humano. Porque, no fim, o que nos une enquanto educadores e alunos não é o medo ou a submissão, mas a crença de que, na escola, todos devem ter a chance de crescer e aprender com respeito e humanidade.

E se o poder de um piolho pode ser tão grande assim, o poder da educação deveria ser infinitamente maior.

Como aqueles piolhos que, ironicamente, Bruno nem mesmo tinha.


https://bandnewsfmcuritiba.com/professora-e-indiciada-apos-mandar-aluno-comer-piolho-durante-aula/ (Acessado em 22/03/2025)


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. A atitude da professora Maria das Graças é descrita como "injúria racial". Explique, com base no texto, por que a ordem dada ao aluno Bruno pode ser classificada dessa forma, considerando os elementos de poder e preconceito presentes na situação.

2. O texto levanta a questão do cansaço e da frustração da professora como possíveis fatores para sua atitude. De que maneira a sociologia pode analisar a relação entre as condições de trabalho dos professores e a ocorrência de incidentes como o relatado?

3. A reação da escola e a abertura de um inquérito policial demonstram uma resposta institucional ao ocorrido. Qual a importância dessas medidas para a manutenção de um ambiente escolar respeitoso e para a promoção da justiça social?

4. O texto afirma que o caso de Maria das Graças reflete um problema maior na educação brasileira. Quais elementos da narrativa sugerem que esse incidente não é um caso isolado e aponta para questões mais amplas no sistema educacional?

5. A reflexão final do texto aborda a necessidade de a escola ser um lugar de empatia e respeito. Como a sociologia compreende o papel da escola na formação de cidadãos e na construção de valores como o respeito à diversidade e à dignidade humana?

sexta-feira, 21 de março de 2025

O homeschooling no Brasil ("A educação é um ato de esperança." - Rubem Alves)

 

O homeschooling no Brasil ("A educação é um ato de esperança." - Rubem Alves)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Na abafada tarde de Salvador, Dona Célia Regina, aos 65 anos, se viu em uma situação que jamais imaginaria. O bairro Resgate, conhecido por suas inúmeras histórias de luta e sobrevivência, foi palco de um episódio que ultrapassou os limites das paredes da escola. Ela, uma professora que dedicou quarenta anos de sua vida ao ensino, enfrentou de forma brutal algo que nunca deveria fazer parte de sua rotina: a violência.

Célia escolheu a profissão de professora por acreditar na transformação que a educação pode proporcionar. Como dizia Paulo Freire, "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção". Apesar dos desafios que enfrentou ao longo de sua carreira, essa convicção sempre a manteve firme.

Tudo começou de forma simples, quase rotineira para quem vive no universo educacional. Era uma segunda-feira comum. O sol de Salvador iluminava a sala onde ela dava aulas de reforço. João (nome fictício) parecia mais disperso do que o habitual. Seus cadernos estavam em branco, e a lição passada na semana anterior permanecia intocada.

— "João, precisamos conversar sobre o exercício que você não copiou", - disse ela, com a mesma voz serena que usava há décadas em sala de aula.

O que veio a seguir era algo que ela jamais imaginou vivenciar em sua trajetória como educadora. O olhar do menino se transformou. — "O que é que você quer? Você não tem nada a ver com isso!", - disparou ele, antes de sua mão atingir o rosto dela com um tapa.

O tempo congelou naquele instante. O som da agressão ecoou pela sala vazia. O rosto de Célia ardia menos do que sua dignidade. Com mãos trêmulas, ela pegou o telefone e ligou para a mãe do aluno, cumprindo o protocolo que sempre seguiu: envolver a família quando necessário.

A mãe chegou sem demora. Não houve perguntas, nem repreensões, apenas um olhar frio na direção da professora, enquanto ordenava ao filho que descesse. Da janela, Célia os viu partir, sentindo um nó na garganta que não conseguia engolir.

O que ela não sabia é que aquele gesto seria apenas o início de um tormento que a transformaria em vítima de um sistema falido e de uma violência sem limites. O pior ainda estava por vir.

No dia seguinte, a campainha tocou. Através do interfone, Célia escutou uma voz masculina que não reconhecia.

— "Preciso falar com a senhora", - disse a voz.

— "Quem é?", - perguntou Célia, já sentindo o coração acelerar.

—"Sou pai do João", - mentiu ele, como ela descobriria depois. Era o padrasto.

Sem saber o que estava prestes a enfrentar, ela ingenuamente permitiu que ele subisse. Quando abriu a porta, o homem não estava sozinho. A mãe e outra mulher, que ela logo descobriu ser a tia do menino, o acompanhavam. A mãe segurava o que Célia identificou como uma pistola de choque elétrico.

Não houve tempo para reação. O homem agarrou-a pelos cabelos com força, lançando-a ao chão como se fosse um objeto sem valor. Começou então o que só poderia ser descrito como uma sessão de espancamento. Golpes vinham de todos os lados — ele puxava de um lado, elas de outro.

A dor era insuportável. Célia sentiu seus cabelos sendo arrancados, punhos atingindo suas costas e seus braços. Em determinado momento, humilhada e incapaz de resistir à dor, perdeu o controle de sua bexiga. Urinou-se, enquanto implorava para que parassem.

— "Isso é para você aprender a não se meter com o menino", - gritavam, entre ofensas que ela jamais poderia repetir.

O padrasto do aluno, impune, dizia com frieza que sairia facilmente de qualquer audiência de custódia, como se a vida de Dona Célia fosse apenas mais uma estatística de violência banal. Ele ainda proferiu ameaças que gelavam a alma: prometeu matá-la e estuprá-la, gabando-se de que nada aconteceria com ele, não importando o quanto ela lutasse por justiça.

Quando finalmente partiram, Célia ficou ali, no chão de sua própria casa, com o corpo coberto de hematomas, os cabelos parcialmente arrancados, os braços dormentes e as costas em chamas de dor. Sua dignidade, destroçada junto com seu corpo.

Dias depois, ela ainda não conseguia se deitar. Permanecia sentada, com as manchas roxas espalhadas pelo corpo, como testemunhas silenciosas da violência que sofrera. O braço dormente, um lembrete constante do preço que pagara por simplesmente fazer seu trabalho: ensinar, orientar, educar.

Ela não sabia mais se os hematomas que cobriam seu corpo eram a dor das pancadas ou o peso de uma sociedade que falha em proteger aqueles que, como ela, dedicam a vida ao bem-estar do outro. E, no entanto, o mais aterrador não foi a violência física. Foi a ameaça de morte que ecoou em seus ouvidos, como uma sentença de que sua luta, sua carreira, seus anos de dedicação não significavam nada diante do descaso e da impunidade.

Enquanto Dona Célia se recupera fisicamente debilitada, mas emocionalmente devastada, a realidade da educação no Brasil se revela em sua forma mais crua. Estamos vivendo um momento em que os professores, esses pilares de nossa sociedade, são constantemente ameaçados, não apenas pela indisciplina dos alunos, mas pela indiferença de um sistema e de uma sociedade que parece não se importar.

Célia não era um caso isolado. Ao conversar com colegas, ela descobriu histórias semelhantes. Professores que recebiam ameaças, tinham seus carros fotografados e eram intimidados quando tentavam impor os limites necessários ao processo educativo. Viviam com medo.

Quando escolheu a educação como profissão, Célia sabia que enfrentaria desafios. Sabia que os salários seriam baixos, que as condições seriam precárias. Mas jamais imaginara que o respeito — esse mínimo de civilidade — seria algo pelo qual teria que lutar todos os dias.

Hoje, ao olhar para Dona Célia, vemos não só uma professora ferida, mas uma mulher que se torna símbolo de todas as dificuldades enfrentadas por aqueles que dedicam suas vidas à educação. Ela, como tantos outros, representa o fracasso de um sistema que deveria proteger, apoiar e valorizar a educação, mas que, na realidade, tem contribuído para a desvalorização de seus profissionais.

O que aconteceu com ela expõe uma ferida profunda na sociedade. A escola não pode ser apenas um lugar de transmissão de conteúdos. Ela precisa ser um espaço de construção de valores, de civilidade, de respeito. Mas como pode a escola cumprir esse papel quando a violência atravessa seus muros, quando o professor é agredido por fazer seu trabalho?

Se o professor, aquele que se dedica à formação de cidadãos, é alvo de agressões, o que nos resta como sociedade? Como podemos esperar um futuro melhor para nossos filhos e para as futuras gerações, se quem educa é tratado com violência e desprezo?

E assim, a pergunta fica no ar: até quando vamos continuar assistindo, impotentes, a esse ciclo de violência, desrespeito e impunidade? A história de Dona Célia não é um caso isolado. Ela é a história de milhares de educadores que se levantam todos os dias para ensinar, para lutar pela educação, mas que, muitas vezes, se veem diante de uma realidade que, em vez de respeito, oferece agressões físicas e psicológicas.

Aos 65 anos, Célia carrega no corpo as marcas da violência, mas no espírito ainda arde a chama da educadora que acredita na transformação. Por isso compartilha sua história. Não para gerar indignação passageira, mas para provocar uma reflexão profunda sobre o que a sociedade está se tornando.

Talvez, ao final, o maior desafio seja este: o que fazer com a dor de ver um país que não cuida de quem cuida de seu futuro? O que fazer quando a educação, que deveria ser a chave para a transformação, se vê presa em um ciclo de violência e desesperança?

Que sua dor não seja em vão. Que sua voz, mesmo trêmula, ecoe além dessa narrativa, despertando consciências. Se nós, como sociedade, não começarmos a agir, temo que o destino de Dona Célia seja o de muitas outras pessoas que, como ela, já não sabem mais se é possível lutar ou se o medo, agora, tomou conta de todos nós.

Porque, apesar de tudo, ela ainda acredita que ensinar é um ato de amor e resistência. E amor e resistência são o que a mantêm de pé, mesmo quando sentar é a única posição que seu corpo machucado suporta.


https://noticias.r7.com/bahia/cidade-alerta-ba/professora-de-65-anos-e-espancada-por-familiares-de-aluno-em-salvador-ba-21032025/ (Acessado em 21/03/2025).


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias principais do meu texto, para estimular a reflexão e o debate:


1. A experiência de Dona Célia revela uma triste realidade para muitos educadores no Brasil. De acordo com o texto, quais são os principais desafios enfrentados pelos professores, além da violência física?

2. O texto menciona a filosofia de Paulo Freire sobre a educação. Como a agressão sofrida por Dona Célia se contrapõe à visão de "criar as possibilidades" para a construção do conhecimento no ambiente escolar?

3. A narrativa descreve a violência sofrida por Dona Célia como um sintoma de um "sistema falido". Quais elementos do texto sustentam essa afirmação?

4. A reação da mãe do aluno e a impunidade do padrasto são pontos cruciais na história. Como esses elementos podem ser analisados sob uma perspectiva sociológica em relação à violência e à justiça?

5. Ao final do texto, há uma reflexão sobre o papel da escola na construção de valores e civilidade. De que maneira a violência sofrida por Dona Célia impacta a capacidade da escola de cumprir esse papel na sociedade brasileira?

Estas questões visam incentivar os alunos a analisar o caso específico de Dona Célia à luz de conceitos sociológicos mais amplos, como violência, papel da educação, falhas do sistema social e a importância do respeito e da justiça.