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sexta-feira, 21 de março de 2025

O homeschooling no Brasil ("A educação é um ato de esperança." - Rubem Alves)

 

O homeschooling no Brasil ("A educação é um ato de esperança." - Rubem Alves)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Na abafada tarde de Salvador, Dona Célia Regina, aos 65 anos, se viu em uma situação que jamais imaginaria. O bairro Resgate, conhecido por suas inúmeras histórias de luta e sobrevivência, foi palco de um episódio que ultrapassou os limites das paredes da escola. Ela, uma professora que dedicou quarenta anos de sua vida ao ensino, enfrentou de forma brutal algo que nunca deveria fazer parte de sua rotina: a violência.

Célia escolheu a profissão de professora por acreditar na transformação que a educação pode proporcionar. Como dizia Paulo Freire, "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção". Apesar dos desafios que enfrentou ao longo de sua carreira, essa convicção sempre a manteve firme.

Tudo começou de forma simples, quase rotineira para quem vive no universo educacional. Era uma segunda-feira comum. O sol de Salvador iluminava a sala onde ela dava aulas de reforço. João (nome fictício) parecia mais disperso do que o habitual. Seus cadernos estavam em branco, e a lição passada na semana anterior permanecia intocada.

— "João, precisamos conversar sobre o exercício que você não copiou", - disse ela, com a mesma voz serena que usava há décadas em sala de aula.

O que veio a seguir era algo que ela jamais imaginou vivenciar em sua trajetória como educadora. O olhar do menino se transformou. — "O que é que você quer? Você não tem nada a ver com isso!", - disparou ele, antes de sua mão atingir o rosto dela com um tapa.

O tempo congelou naquele instante. O som da agressão ecoou pela sala vazia. O rosto de Célia ardia menos do que sua dignidade. Com mãos trêmulas, ela pegou o telefone e ligou para a mãe do aluno, cumprindo o protocolo que sempre seguiu: envolver a família quando necessário.

A mãe chegou sem demora. Não houve perguntas, nem repreensões, apenas um olhar frio na direção da professora, enquanto ordenava ao filho que descesse. Da janela, Célia os viu partir, sentindo um nó na garganta que não conseguia engolir.

O que ela não sabia é que aquele gesto seria apenas o início de um tormento que a transformaria em vítima de um sistema falido e de uma violência sem limites. O pior ainda estava por vir.

No dia seguinte, a campainha tocou. Através do interfone, Célia escutou uma voz masculina que não reconhecia.

— "Preciso falar com a senhora", - disse a voz.

— "Quem é?", - perguntou Célia, já sentindo o coração acelerar.

—"Sou pai do João", - mentiu ele, como ela descobriria depois. Era o padrasto.

Sem saber o que estava prestes a enfrentar, ela ingenuamente permitiu que ele subisse. Quando abriu a porta, o homem não estava sozinho. A mãe e outra mulher, que ela logo descobriu ser a tia do menino, o acompanhavam. A mãe segurava o que Célia identificou como uma pistola de choque elétrico.

Não houve tempo para reação. O homem agarrou-a pelos cabelos com força, lançando-a ao chão como se fosse um objeto sem valor. Começou então o que só poderia ser descrito como uma sessão de espancamento. Golpes vinham de todos os lados — ele puxava de um lado, elas de outro.

A dor era insuportável. Célia sentiu seus cabelos sendo arrancados, punhos atingindo suas costas e seus braços. Em determinado momento, humilhada e incapaz de resistir à dor, perdeu o controle de sua bexiga. Urinou-se, enquanto implorava para que parassem.

— "Isso é para você aprender a não se meter com o menino", - gritavam, entre ofensas que ela jamais poderia repetir.

O padrasto do aluno, impune, dizia com frieza que sairia facilmente de qualquer audiência de custódia, como se a vida de Dona Célia fosse apenas mais uma estatística de violência banal. Ele ainda proferiu ameaças que gelavam a alma: prometeu matá-la e estuprá-la, gabando-se de que nada aconteceria com ele, não importando o quanto ela lutasse por justiça.

Quando finalmente partiram, Célia ficou ali, no chão de sua própria casa, com o corpo coberto de hematomas, os cabelos parcialmente arrancados, os braços dormentes e as costas em chamas de dor. Sua dignidade, destroçada junto com seu corpo.

Dias depois, ela ainda não conseguia se deitar. Permanecia sentada, com as manchas roxas espalhadas pelo corpo, como testemunhas silenciosas da violência que sofrera. O braço dormente, um lembrete constante do preço que pagara por simplesmente fazer seu trabalho: ensinar, orientar, educar.

Ela não sabia mais se os hematomas que cobriam seu corpo eram a dor das pancadas ou o peso de uma sociedade que falha em proteger aqueles que, como ela, dedicam a vida ao bem-estar do outro. E, no entanto, o mais aterrador não foi a violência física. Foi a ameaça de morte que ecoou em seus ouvidos, como uma sentença de que sua luta, sua carreira, seus anos de dedicação não significavam nada diante do descaso e da impunidade.

Enquanto Dona Célia se recupera fisicamente debilitada, mas emocionalmente devastada, a realidade da educação no Brasil se revela em sua forma mais crua. Estamos vivendo um momento em que os professores, esses pilares de nossa sociedade, são constantemente ameaçados, não apenas pela indisciplina dos alunos, mas pela indiferença de um sistema e de uma sociedade que parece não se importar.

Célia não era um caso isolado. Ao conversar com colegas, ela descobriu histórias semelhantes. Professores que recebiam ameaças, tinham seus carros fotografados e eram intimidados quando tentavam impor os limites necessários ao processo educativo. Viviam com medo.

Quando escolheu a educação como profissão, Célia sabia que enfrentaria desafios. Sabia que os salários seriam baixos, que as condições seriam precárias. Mas jamais imaginara que o respeito — esse mínimo de civilidade — seria algo pelo qual teria que lutar todos os dias.

Hoje, ao olhar para Dona Célia, vemos não só uma professora ferida, mas uma mulher que se torna símbolo de todas as dificuldades enfrentadas por aqueles que dedicam suas vidas à educação. Ela, como tantos outros, representa o fracasso de um sistema que deveria proteger, apoiar e valorizar a educação, mas que, na realidade, tem contribuído para a desvalorização de seus profissionais.

O que aconteceu com ela expõe uma ferida profunda na sociedade. A escola não pode ser apenas um lugar de transmissão de conteúdos. Ela precisa ser um espaço de construção de valores, de civilidade, de respeito. Mas como pode a escola cumprir esse papel quando a violência atravessa seus muros, quando o professor é agredido por fazer seu trabalho?

Se o professor, aquele que se dedica à formação de cidadãos, é alvo de agressões, o que nos resta como sociedade? Como podemos esperar um futuro melhor para nossos filhos e para as futuras gerações, se quem educa é tratado com violência e desprezo?

E assim, a pergunta fica no ar: até quando vamos continuar assistindo, impotentes, a esse ciclo de violência, desrespeito e impunidade? A história de Dona Célia não é um caso isolado. Ela é a história de milhares de educadores que se levantam todos os dias para ensinar, para lutar pela educação, mas que, muitas vezes, se veem diante de uma realidade que, em vez de respeito, oferece agressões físicas e psicológicas.

Aos 65 anos, Célia carrega no corpo as marcas da violência, mas no espírito ainda arde a chama da educadora que acredita na transformação. Por isso compartilha sua história. Não para gerar indignação passageira, mas para provocar uma reflexão profunda sobre o que a sociedade está se tornando.

Talvez, ao final, o maior desafio seja este: o que fazer com a dor de ver um país que não cuida de quem cuida de seu futuro? O que fazer quando a educação, que deveria ser a chave para a transformação, se vê presa em um ciclo de violência e desesperança?

Que sua dor não seja em vão. Que sua voz, mesmo trêmula, ecoe além dessa narrativa, despertando consciências. Se nós, como sociedade, não começarmos a agir, temo que o destino de Dona Célia seja o de muitas outras pessoas que, como ela, já não sabem mais se é possível lutar ou se o medo, agora, tomou conta de todos nós.

Porque, apesar de tudo, ela ainda acredita que ensinar é um ato de amor e resistência. E amor e resistência são o que a mantêm de pé, mesmo quando sentar é a única posição que seu corpo machucado suporta.


https://noticias.r7.com/bahia/cidade-alerta-ba/professora-de-65-anos-e-espancada-por-familiares-de-aluno-em-salvador-ba-21032025/ (Acessado em 21/03/2025).


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias principais do meu texto, para estimular a reflexão e o debate:


1. A experiência de Dona Célia revela uma triste realidade para muitos educadores no Brasil. De acordo com o texto, quais são os principais desafios enfrentados pelos professores, além da violência física?

2. O texto menciona a filosofia de Paulo Freire sobre a educação. Como a agressão sofrida por Dona Célia se contrapõe à visão de "criar as possibilidades" para a construção do conhecimento no ambiente escolar?

3. A narrativa descreve a violência sofrida por Dona Célia como um sintoma de um "sistema falido". Quais elementos do texto sustentam essa afirmação?

4. A reação da mãe do aluno e a impunidade do padrasto são pontos cruciais na história. Como esses elementos podem ser analisados sob uma perspectiva sociológica em relação à violência e à justiça?

5. Ao final do texto, há uma reflexão sobre o papel da escola na construção de valores e civilidade. De que maneira a violência sofrida por Dona Célia impacta a capacidade da escola de cumprir esse papel na sociedade brasileira?

Estas questões visam incentivar os alunos a analisar o caso específico de Dona Célia à luz de conceitos sociológicos mais amplos, como violência, papel da educação, falhas do sistema social e a importância do respeito e da justiça.

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