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MINHAS PÉROLAS

Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Fernando Pessoa

sábado, 22 de março de 2025

Quem Tem Piolho Que Se Coce ("Palavras são pontes de papel." - Carlos Drummond de Andrade)

 

Quem Tem Piolho Que Se Coce ("Palavras são pontes de papel." - Carlos Drummond de Andrade)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Quarenta anos de magistério e Maria das Graças Oliveira nunca imaginou que uma sexta-feira qualquer a levaria a sentar do outro lado da mesa em uma delegacia. Ela, com seus 59 anos, professora de português do colégio estadual em Campina Grande do Sul, com mais diplomas na parede do que paciência nos dias ruins, indiciada por injúria racial. A vida tem dessas ironias — passa-se décadas tentando ensinar os jovens a serem melhores pessoas, e em um instante de irritação, é-se alvo da própria lição.

Começou como qualquer segunda-feira, 17 de março de 2025. O ar condicionado quebrado, trinta e cinco adolescentes inquietos e Maria, com a garganta já rouca na primeira aula. Quando avistou aquele pontinho preto pulando entre os cabelos de Bruno, seu aluno do segundo ano do ensino médio, foi como se um interruptor tivesse sido acionado dentro dela. Um piolho. Um simples e minúsculo piolho.

— "Bruno, você está com piolho", - anunciou, com a naturalidade de quem comenta sobre o clima. A sala inteira congelou por um segundo, para em seguida explodir em risadas. O rosto de Bruno, um garoto negro de dezesseis anos que sempre se sentava no fundo da sala, ardeu em vermelho sob sua pele escura.

—"Não tenho não, professora", - ele murmurou, passando as mãos pelo cabelo crespo, cortado bem rente à cabeça.

Ela deveria ter parado ali. Deveria ter mudado de assunto, pedido silêncio, continuado a aula sobre orações subordinadas. Mas há algo no cansaço acumulado de quatro décadas que às vezes faz esquecer o óbvio — que as palavras têm peso, especialmente quando vêm de cima de um tablado, diante de uma plateia juvenil ávida por drama.

— "Se tem piolho, come ele então, Bruno. É o que fazem os..." — e parou. Maria jurava que havia parado antes de completar a frase. Mas o estrago já estava feito. O silêncio que se seguiu pesava toneladas. Uma aluna da primeira fileira, Janaína, ergueu o celular sorrateiramente. A professora sabia que estava sendo gravada, mas algo nela já havia desistido de lutar contra a maré.

A ordem, disparada em tom autoritário e carregada de desprezo, foi de uma crueldade impensável. A referência ao piolho, um ser desprezível para muitos, remeteu a um estigma de inferioridade que associa a humanidade à animalidade. O gesto foi além do insulto; foi uma marca na alma de quem presenciou a cena, e de quem, com o tempo, ouviria falar sobre o ocorrido.

Maria experimentou aquela sensação de estar assistindo a si mesma de fora do corpo. Viu-se de longe, uma senhora de cabelos grisalhos presos em um coque desalinhado, óculos de armação vermelha escorregando pelo nariz, olhando para um adolescente humilhado enquanto a sala inteira prendia a respiração.

Bruno levantou-se em silêncio, juntou seu material e saiu. Não bateu a porta. Talvez isso tenha sido o pior — o modo digno como ele se retirou, sem dar à professora o luxo de poder dizer depois que ele foi desrespeitoso.

A diretora chamou Maria no final do dia. As câmeras de segurança da escola haviam registrado o momento exato em que Bruno, no corredor, desabou em lágrimas contra a parede de azulejos desbotados. A ata escolar já estava sendo preparada. A mãe dele havia sido chamada.

— "Maria, por que logo você?", - perguntou Eliane, a diretora, com quem ela compartilhava cafés há mais de vinte anos.

Como explicar? Como dizer que não foi racismo, mas cansaço? Que não associou o piolho à cor da pele dele, mas à condição humana universal de às vezes ver-se infestado por parasitas — literais ou metafóricos? Como argumentar que sua frase inacabada poderia ter mil finais diferentes daquele que todos presumiram?

Mas a verdade é que nem ela mesma sabia qual seria o final daquela frase se não tivesse se contido a tempo.

A notícia se espalhou mais rápido que piolho em creche. Na sexta-feira, o inquérito policial já estava aberto e o nome de Maria circulava nos grupos de WhatsApp da cidade inteira. Campina Grande do Sul pode ser pequena demais para os sonhos de muitos adolescentes, mas é grande o suficiente para que uma fofoca se transforme em escândalo público em questão de horas.

O caso não passou despercebido. Testemunhas relataram a humilhação do aluno, e as imagens das câmeras de segurança mostraram o que, em outras circunstâncias, poderia ter sido apenas um desentendimento verbal. A investigação foi conduzida com a seriedade que o caso exigia. A escola, palco da tragédia, foi envolvida em um processo de apuração que visava compreender a extensão da agressão.

Sentada na delegacia, olhando para o delegado que poderia ser seu ex-aluno, trinta anos mais novo que ela, Maria entendeu finalmente o que tantas vezes tentou ensinar nas suas aulas de análise textual: palavras têm contexto, têm história, têm DNA. Certas expressões carregam séculos de opressão em suas sílabas.

Agora, com o indiciamento por injúria racial pesando sobre seus ombros, esperava pelo parecer do Ministério Público, enquanto as horas se arrastavam como lesmas de borracha. Já não dava aulas — estava afastada "para preservar o ambiente escolar", como dizia o documento oficial da Secretaria de Educação.

Bruno voltou às aulas, soube por colegas. Parecia que os outros professores estavam extra-atenciosos com ele. Maria esperava sinceramente que esta história não o marcasse para sempre, que ele conseguisse ver que o erro terrível dela não definia quem ele era ou seria.

O que aconteceu naquela sala de aula é um reflexo de um problema muito maior que perpassa as paredes das escolas e entra pelas frestas da educação brasileira. Não é apenas um episódio de crueldade isolada ou de um erro pontual. Revela um estado de coisas que, talvez, ainda não estejamos prontos para compreender em sua totalidade.

Como fica o aluno? O que ele aprende em uma escola que, ao invés de formar cidadãos, destrói sua autoestima? O que fica de uma experiência escolar marcada pela dor e pelo medo? Não se pode esperar que alguém se torne um sujeito pleno e consciente se, dentro da própria escola, as bases de seu desenvolvimento são minadas.

A escola, que deveria ser o refúgio do aprendizado, não pode ser um campo de batalha. Não pode se tornar um lugar onde o poder de um professor sobre o aluno é exercido através da humilhação e da opressão. A sala de aula, mais do que um espaço físico, deve ser um lugar de empatia, onde a educação vai além da transmissão de conteúdos, e envolve, acima de tudo, o respeito e a valorização do ser humano.

Quanto a Maria, descobria tardiamente que ensinar também é aprender, muitas vezes da maneira mais dolorosa. No seu caso, aprendeu que não importa quantos livros lemos ou quantos diplomas penduramos na parede — se não houvermos interiorizado verdadeiramente o respeito pela dignidade de cada ser humano, todo nosso conhecimento não passa de casca vazia.

Essa história não é uma exceção. Ao contrário, é um reflexo de uma realidade que, por vezes, se esconde sob o manto de uma autoridade mal compreendida. Somos todos responsáveis pela construção de um ambiente educacional mais saudável e inclusivo, onde todos, professores e alunos, possam se respeitar como seres humanos, acima de qualquer hierarquia ou hierarquização.

E assim, a escola, que deveria ser o lugar da transformação, precisa urgentemente se transformar. Para que o exemplo de hoje não se repita, para que o poder do educador nunca mais seja usado contra a dignidade de um ser humano. Porque, no fim, o que nos une enquanto educadores e alunos não é o medo ou a submissão, mas a crença de que, na escola, todos devem ter a chance de crescer e aprender com respeito e humanidade.

E se o poder de um piolho pode ser tão grande assim, o poder da educação deveria ser infinitamente maior.

Como aqueles piolhos que, ironicamente, Bruno nem mesmo tinha.


https://bandnewsfmcuritiba.com/professora-e-indiciada-apos-mandar-aluno-comer-piolho-durante-aula/ (Acessado em 22/03/2025)


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas e simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. A atitude da professora Maria das Graças é descrita como "injúria racial". Explique, com base no texto, por que a ordem dada ao aluno Bruno pode ser classificada dessa forma, considerando os elementos de poder e preconceito presentes na situação.

2. O texto levanta a questão do cansaço e da frustração da professora como possíveis fatores para sua atitude. De que maneira a sociologia pode analisar a relação entre as condições de trabalho dos professores e a ocorrência de incidentes como o relatado?

3. A reação da escola e a abertura de um inquérito policial demonstram uma resposta institucional ao ocorrido. Qual a importância dessas medidas para a manutenção de um ambiente escolar respeitoso e para a promoção da justiça social?

4. O texto afirma que o caso de Maria das Graças reflete um problema maior na educação brasileira. Quais elementos da narrativa sugerem que esse incidente não é um caso isolado e aponta para questões mais amplas no sistema educacional?

5. A reflexão final do texto aborda a necessidade de a escola ser um lugar de empatia e respeito. Como a sociologia compreende o papel da escola na formação de cidadãos e na construção de valores como o respeito à diversidade e à dignidade humana?

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