"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

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MINHAS PÉROLAS

sábado, 15 de março de 2025

A língua viva que o Brasil fala ("A língua é a pátria. E onde ela falta, a alma desterra-se." - Olavo Bilac)

 

A língua viva que o Brasil fala ("A língua é a pátria. E onde ela falta, a alma desterra-se." - Olavo Bilac)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Há algo que sempre me inquieta ao observar o sistema educacional brasileiro: a relação entre a língua falada e a língua escrita. O Brasil, com seus 15 milhões de analfabetos e 33 milhões de analfabetos funcionais, enfrenta um dilema que parece não ter fim. Isso se reflete diretamente no ensino de português, especialmente quando vemos que, de cada três alunos do ensino médio, um não entende o que lê. A situação é dramática, e o pior é que essa incapacidade de comunicação formal coloca em risco a preparação dos jovens para o mercado de trabalho.

Um dos maiores pontos de discórdia no ensino da língua portuguesa é o livro didático adotado em mais de 4 mil escolas, que gerou um frenesi entre especialistas, professores e alunos. O problema central? O que é certo ou errado quando se fala e escreve em português. O texto de Heloísa Ramos, que defende a flexibilidade na língua falada, questiona se devemos realmente seguir à risca as regras da norma culta ou se seria mais sensato aceitar as variantes linguísticas do Brasil real.

Ora, sabemos que ninguém fala a língua culta o tempo inteiro. O próprio Brasil, com sua rica diversidade de sotaques e formas de expressão, jamais poderia ser prisioneiro de uma gramática rígida, quase impessoal. A fala popular tem seu próprio ritmo, sabor e beleza. E, no entanto, é inegável que a escola, como instituição de ensino, precisa preparar o aluno para o mundo formal, onde a norma culta prevalece.

Refletindo sobre isso, lembro-me de Fernando Pessoa, que, apesar de nunca ter condenado a fala popular, fazia questão de destacar o valor da palavra escrita e bem elaborada. "Quem não vê bem uma palavra, não vê bem uma alma", disse ele, reconhecendo na escrita a capacidade de revelar o mais profundo do ser humano. É com essa reflexão em mente que me pergunto: estamos, como educadores, oferecendo aos nossos alunos as ferramentas necessárias para que possam, além de se expressar no cotidiano, navegar com confiança no universo formal e acadêmico?

A questão é delicada. Em muitos momentos, o ensino da norma culta parece quase um luxo, uma prerrogativa das classes mais abastadas. A maioria das escolas e professores, ao lidarem com a língua falada nas periferias e nos interiores do Brasil, enfrentam um desafio enorme: como ensinar português correto quando o aluno chega à escola carregando consigo a bagagem de um português popular, cheio de gírias, regionalismos e desvios gramaticais?

Mas não é só isso. A língua que falamos, com suas variações, é, em muitos casos, um passaporte para uma identidade, para um pertencimento social. Falar "nós vai", como fez o poeta Sérgio Vaz, é uma maneira de afirmar: "Eu sou do meu povo, eu sou da minha gente". E, no entanto, sabemos que, para alcançar outros espaços e possibilidades, o aluno precisará aprender a "falar direito", ou melhor, a escrever de acordo com o padrão da norma culta.

A polêmica surge quando se tenta separar a língua da moralidade. A língua não é boa ou má, correta ou incorreta. Ela é apenas uma ferramenta, e seu uso depende do contexto. O problema, portanto, não está na língua que se fala, mas nas portas que se fecham para quem não domina a linguagem acadêmica. A escola deve, portanto, aceitar a língua viva do povo, mas também preparar o aluno para o mundo em que a língua padrão é a chave para o sucesso.

Não posso deixar de lembrar o que disse a professora Heloísa Ramos: "Você pode falar como quiser em casa, no seu bairro, mas no mercado de trabalho, na escola, você precisará seguir as regras." E isso é um ponto crucial. Ao mesmo tempo em que valorizamos as diversas formas de expressão, precisamos ensinar aos alunos que, em determinados contextos, é a norma culta que abrirá portas, que dará acesso à civilização, à cultura escrita, à compreensão do mundo.

Entretanto, a questão é mais complexa do que parece. Quando o professor, que também pode ser um falante não padrão, tenta ensinar essa norma culta, há uma verdadeira batalha interna. O professor precisa lidar com a realidade linguística do aluno, enquanto tenta transmitir o que a sociedade espera dele. Uma batalha que, muitas vezes, parece interminável.

No fim das contas, o que realmente está em jogo é a construção de uma sociedade mais justa, onde todos, independentemente de sua origem ou classe social, tenham a oportunidade de se expressar e de serem ouvidos. A língua, seja ela a variante culta ou a variante popular, deve ser vista como um meio de acesso a um mundo mais amplo, onde o conhecimento e a educação se tornam as chaves para a liberdade e para a inclusão social.

E é por isso que, mesmo diante das controvérsias, não podemos deixar de afirmar que a norma culta, com todo o seu peso histórico e cultural, ainda é uma ferramenta indispensável. Mas, ao mesmo tempo, devemos lembrar que a língua falada é a alma de um povo, que não pode ser desprezada ou ignorada. Afinal, como diz o ditado popular: "quem não ouve o povo, não entende a história." E talvez seja essa a verdadeira lição que a escola precisa aprender: respeitar as origens, mas preparar para o futuro.

Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseadas nas ideias centrais do texto, para estimular a reflexão sociológica sobre o tema:

1. O texto apresenta dados alarmantes sobre analfabetismo e analfabetismo funcional no Brasil. Sob uma perspectiva sociológica, quais são as principais consequências sociais e econômicas dessa realidade para os indivíduos e para a sociedade brasileira como um todo?

2. O texto aborda a polêmica em torno do ensino da norma culta da língua portuguesa nas escolas, considerando a diversidade linguística do Brasil. Do ponto de vista da sociologia, como podemos analisar a tensão entre a necessidade de um padrão formal de linguagem e o reconhecimento das diferentes formas de expressão cultural e regional?

3. O autor menciona que a língua falada pode ser um "passaporte para uma identidade" e um "pertencimento social". Explique essa afirmação sob a ótica dos estudos sociológicos sobre identidade e cultura, utilizando exemplos do texto para fundamentar sua resposta.

4. A partir da leitura do texto, qual o papel da escola como instituição social na mediação entre a língua falada pelos alunos e as exigências da norma culta? Quais desafios socioculturais os professores enfrentam nesse processo, conforme descrito no texto?

5. O texto conclui que a questão da língua na educação está intrinsecamente ligada à construção de uma sociedade mais justa. De que maneira o domínio ou a falta de domínio da norma culta pode influenciar as oportunidades sociais e a inclusão de diferentes grupos no Brasil, segundo as ideias apresentadas no texto?

sexta-feira, 14 de março de 2025

Sob O Olhar da Coordenadora ("O verdadeiro segredo da observação é ver mais do que os olhos podem registrar." )

 

Sob O Olhar da Coordenadora ("O verdadeiro segredo da observação é ver mais do que os olhos podem registrar." )

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A coordenadora pode assistir à aula do professor? Sim, pode. Mas, a questão que realmente interessa não é essa! O que ela vai fazer lá dentro? Como se comportar? E, mais importante, qual será o impacto de sua presença?

Naquela manhã, quando vi a silhueta da coordenadora na porta da sala, senti um calafrio percorrer minha espinha. Já sabia o que aquilo significava. Ela não viera apenas para uma visita cordial ou para trocar algumas palavras amáveis. Ela queria ver, avaliar, medir. Sempre que isso acontecia, em meu período probatório, quando eu estava recém concursado, a sensação era a de estar sob um microscópio, com cada palavra e gesto analisados minuciosamente.

Ela entrou sem alarde, ocupou um canto discreto ao fundo da sala e cruzou os braços, como um espectador num teatro silencioso. Os alunos perceberam. Não era apenas a minha aula que estava sob escrutínio, mas também o comportamento deles. Sorrisos contidos, olhares desconfiados, o burburinho da sala de aula, que normalmente dançavam entre o permitido e o insolente, tornaram-se um sussurro tímido. A coordenadora era um farol de vigilância, um olho bem visível que pesava sobre cada ação. Suspeitava que, quando eles descobrissem que o alvo era apenas o professor, a presença da coordenadora se tornaria outro motivo para os alunos hostilizarem o docente, pois, é sabido que os inimigos se unem quando o adversário é comum. Você sabia que, em muitas vezes, os alunos ficam na porta da sala com o professor dentro da sala para a coordenadora "brigar" com ele, essa é a intensão. A coordenadora várias vezes foi na minha sala, vendo os meninos fora, botava a cabeça na porta e me perguntava: — Professor, o que este meninos fazem fora da sala? E os "estudantes" entravam rindo. E quase sempre acrescentavam: — O professor não está passando nada, não!

Fiz o que sempre faço. Expliquei, perguntei, provoquei reflexões. O ritmo da aula seguiu seu curso, ainda que eu sentisse o peso daquela observação. A presença da coordenadora me lembrava que ensinar não era só um ofício, mas também um espetáculo, e que, como todo espetáculo, estava sujeito a críticas.
Após a aula, veio a devolutiva: — "Gostei da sua abordagem, mas notei que alguns alunos não estavam tão engajados... Notei também e sei que sua matéria de ensino, a sociologia, não é uma ciência exata, portanto não há um roteiro que se segue com precisão cirúrgica. É um jogo de tentativa e erro, um equilíbrio delicado entre o que planejamos e o que acontece de fato".
A coordenadora se foi, e eu fiquei ali, sozinho na sala vazia, pensando na estranha relação entre quem ensina e quem avalia. A ideia de que alguém observa para entender e melhorar é bonita na teoria, mas, na prática, muitas vezes se transforma em uma sensação incômoda, quase invasiva.
E então, concluí: mais importante do que assistir a uma aula é compreender a complexidade de ser professor. Porque há algo que nenhum observador pode captar de fato: o peso diário da responsabilidade, os desgastes visíveis e invisíveis, o cansaço que se disfarça em entusiasmo. Só quem está dentro do palco da sala de aula entende a real arte de ensinar.
No fim das contas, a coordenadora pode assistir à aula. Mas, será que ela realmente vê? Aí, o povo responde: — "Olha, esse papo todo é muito bonito, mas, na real, ninguém aqui fica preocupado com a formação da coordenadora pedagógica, não. O que a galera quer saber é se ela vai ajudar a melhorar a escola ou só ficar de 'blá-blá-blá'. E quem é que se importa com essa história de especialização? A pedagoga pode não saber de matemática ou física, mas se ela for boa de papo e souber lidar com a galera, já tá valendo. E outra, se ela é coordenadora, é porque tá no comando, né? O povo tá cansado de esperar que alguém que 'entende de educação' venha resolver as paradas, porque o que rola mesmo é que, às vezes, quem manda lá não sabe nada de sala de aula. Então, se a pedagoga souber organizar a escola e dar uma ajuda pros professores, já tá ótimo, mesmo sem saber os detalhes de todas as matérias".


Questões Discursivas sobre a Observação em Sala de Aula


1. A presença da coordenadora na sala de aula altera o comportamento dos alunos e do professor? Explique como essa alteração pode influenciar a avaliação da aula e a devolutiva ao professor.

2. O texto menciona que a sociologia não é uma ciência exata. Como essa característica da disciplina influencia a forma como a aula é conduzida e avaliada?

3. A devolutiva da coordenadora se concentra no engajamento dos alunos. Quais outros aspectos da aula poderiam ser observados e discutidos na devolutiva?

4. O autor questiona se a coordenadora "realmente vê" ao observar a aula. O que essa pergunta sugere sobre a diferença entre observar e compreender o processo de ensino e aprendizagem?

5. O texto aborda a "estranha relação entre quem ensina e quem avalia". Como essa relação pode ser construída de forma mais colaborativa e menos tensa?

segunda-feira, 10 de março de 2025

Quando o Educador Falha ("A educação nunca é inocente." - George Orwell)

 

Quando o Educador Falha ("A educação nunca é inocente." - George Orwell)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A tragédia de Evaëlle ecoa como um grito que atravessa a alma de qualquer educador. Não se trata apenas de um caso isolado, mas de um reflexo de algo mais profundo: a sociedade que cria suas próprias vítimas e, muitas vezes, não consegue lidar com as consequências de suas construções. Uma sombra paira sobre todos os envolvidos no processo de ensino, desde o aluno que se vê excluído até o professor que, por mais que busque a didática, pode, inadvertidamente, tornar-se um algoz.

Tudo começou em 2019, quando Evaëlle, aos 15 anos, decidiu pôr fim à sua dor. Encontrada sem vida por seu pai em sua casa em Herblay, nos arredores de Paris, sua partida abalou a todos que a cercavam. A busca por explicações, dúvidas e causas logo tomou forma. O olhar recaiu sobre o ambiente escolar, afinal, quem melhor do que a escola, um espaço que deveria ser de acolhimento e aprendizado, poderia ser responsável por minar a confiança de uma jovem a ponto de fazê-la desistir de viver?

O tribunal, que começou a julgar o caso nesta segunda-feira, trouxe à tona o nome da professora envolvida: uma mulher de 62 anos que, como muitos, viu sua rotina escolar marcada pelo peso das responsabilidades da profissão. No entanto, como muitos, ela também cometeu erros, talvez imperceptíveis, talvez fatais. Acusada de "assédio escolar", ela agora enfrenta o julgamento de sua ética e de suas ações em um contexto onde a linha entre o educativo e o cruel se tornou perigosamente tênue.

Evaëlle, segundo relatos, tornou-se alvo de uma série de humilhações que destruíram seu espírito. Como se o bullying fosse uma prática normal, a professora teria pedido aos alunos que comentassem o que os incomodava em Evaëlle, na frente de toda a turma, expondo-a ao riso e ao desdém. Evaëlle, vulnerável e fragilizada, começou a chorar. E, ao invés de acolhimento, recebeu insensibilidade. A professora, irritada, insistiu para que a aluna falasse, como se a dor da jovem fosse um obstáculo a ser vencido para restabelecer a ordem na sala. Essa, talvez, tenha sido a gota d'água em um mar de sofrimento.

A frase da advogada da família de Evaëlle ecoa: "A escola serve para ensinar, proteger, criar cidadãos em um ambiente de calma e harmonia". A escola é um templo de transformação, onde cada palavra e ação pode moldar ou despedaçar. A linha entre educador e opressor, por vezes invisível, existe, e quem ensina não pode esquecer sua responsabilidade humana.

Hoje, a professora, antes no lugar da sabedoria e do cuidado, está na posição oposta. Sua imagem, antes respeitada, se dissolve diante do tribunal, e o peso da acusação se torna maior que as notas que corrigiu. Não é apenas o peso das palavras, mas o da indiferença, da falta de empatia e da insensibilidade.

O que aprendemos com a queda de Evaëlle e o julgamento da professora? A maior lição é a de que o olhar atento é fundamental. Cada aluno, com sua complexidade emocional, deve ser visto como um ser inteiro, não apenas um corpo na sala de aula. A educação, antes de saberes, é construção de dignidade, autoestima e respeito. A missão do educador é formar seres humanos completos e respeitosos.

O julgamento da professora é um reflexo de todos nós, de uma sociedade que negligencia a dor dos mais frágeis e esquece que somos responsáveis pelo sofrimento que causamos, por ação ou omissão.


https://extra.globo.com/mundo/noticia/2025/03/professora-e-julgada-por-assedio-escolar-apos-suicidio-de-aluna-na-franca.ghtml (Acessado em 10/03/2025)


Aqui estão 5 questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A escola como reflexo da sociedade: O texto afirma que a tragédia de Evaëlle é um reflexo de uma sociedade que "cria suas próprias vítimas". Como a sociologia pode analisar a relação entre a escola e a sociedade, e de que forma as desigualdades e violências sociais se manifestam no ambiente escolar?

2. O papel do professor na prevenção do bullying: O texto destaca a responsabilidade do professor em criar um ambiente de "calma e harmonia" e em evitar que o bullying se manifeste. Como a sociologia pode analisar o papel do professor na prevenção do bullying, considerando as dimensões pedagógicas, éticas e emocionais do trabalho docente?

3. A construção social da vítima e do algoz: O texto menciona que o professor pode, "inadvertidamente, tornar-se um algoz". Como a sociologia pode analisar a construção social das identidades de vítima e algoz no contexto escolar, e de que forma os discursos e práticas pedagógicas podem contribuir para essa construção?

4. A importância da empatia e do cuidado na educação: O texto ressalta a necessidade de um "olhar atento" para as complexidades emocionais dos alunos e a importância da empatia e do cuidado na educação. Como a sociologia pode analisar o papel das emoções na educação e de que forma as práticas pedagógicas podem promover a empatia e o cuidado entre os alunos?

5. A responsabilidade coletiva na prevenção do bullying: O texto conclui que o julgamento da professora é um reflexo de uma sociedade que "negligencia a dor dos mais frágeis". Como a sociologia pode analisar a responsabilidade coletiva na prevenção do bullying, considerando o papel da escola, da família, da comunidade e das políticas públicas?

sábado, 8 de março de 2025

À Beira do Esgotamento: Confissões de um Professor ("O reconhecimento é um banquete que se serve aos mortos." - Provérbio popular )

 

À Beira do Esgotamento: Confissões de um Professor ("O reconhecimento é um banquete que se serve aos mortos." - Provérbio popular )

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Hoje li uma notícia que me fez rir de nervoso: um estudo da Universidade Federal de São Paulo concluiu que um terço dos professores da Educação Básica sofre de Burnout. "Um terço?" Joguei a cabeça para trás numa gargalhada amarga que ecoou pelas paredes da sala vazia dos professores.

Quem são esses outros dois terços privilegiados? Na minha escola, parece que a proporção é inversa: a cada três, quatro já acendem velas para o próprio funeral profissional.

Fevereiro mal terminou e já vejo nos olhos dos meus colegas recém-chegados o cansaço que costumava aparecer só em novembro. Cadê aquele brilho de quem começa o ano letivo cheio de planos e expectativas? Evaporou como orvalho sob o sol inclemente da nossa realidade.

Esta manhã, enquanto tomava apressadamente meu café, me peguei estudando o calendário escolar não para planejar aulas, mas para mapear os próximos feriados como quem traça rotas de fuga. O Carnaval mal passou e já estou contando os dias para a próxima pausa — pequenos oásis num deserto, este que parece se estender infinitamente.

Curioso como meu corpo aprendeu a antecipar o cansaço. Programo meu esgotamento futuro com a mesma precisão que programo minhas aulas. "Aqui, nesta quinta-feira de março, terei uma crise de ansiedade; então entre a primeira e a segunda aula, reservarei três minutos no banheiro para me recompor."

Os carros têm luzes no painel que acendem quando algo não vai bem. Nós, professores, funcionamos sem esse sistema de alerta. Vamos rodando sem óleo, engasgando, superaquecendo, até que um dia simplesmente paramos de funcionar.

Não conheço pessoalmente esse tal de "Burnout", mas tenho certeza de que sou mais íntima do cansaço do que ele o é. Se tem algo que se espalha com mais eficiência que piolho nas escolas, é o desânimo e as dívidas de consignado. Ambos coçam, incomodam e parecem impossíveis de eliminar completamente.

A sala de aula é um vampiro energético. Suga nossas forças com uma voracidade impressionante. Um ano lecionando equivale a seis de vida normal — isso não é cálculo oficial, é percepção de quem sente na pele. Como aqueles aparelhos que medem a "idade biológica", deveríamos ter um que medisse a "idade docente". Tenho 65 anos no RG e uns 87 na alma professoral.

E a cada ano fica mais intenso. A inclusão aumenta (o que é maravilhoso), mas o suporte diminui (o que é trágico). Diretores cobram resultados, alunos desafiam limites, pais transferem responsabilidades e o governo? Ah, o governo apenas observa de longe, oferecendo palmas no Dia do Professor e migalhas no contracheque.

Não sou professor de matemática, mas até eu sei que essa conta não fecha. E para provar que não estou exagerando, basta olhar ao redor: vejo colegas engolindo ansiolíticos com o café da manhã, outros abandonando a profissão que escolheram com amor e alguns simplesmente existindo entre uma aula e outra, como fantasmas de quem um dia foram.

Enquanto escrevo estas linhas, pergunto-me quantos de nós sobreviverão até dezembro sem desabar. Somos equilibristas em uma corda bamba cada vez mais fina, carregando nas costas não apenas nossos fardos, mas o peso de um sistema que nos valoriza em discursos e nos abandona na prática.

Para quem lê esta crônica e não é professor: imagine trabalhar incansavelmente sabendo que, não importa o quanto se esforce, nunca será suficiente. Agora multiplique essa sensação por duzentos dias letivos.

Para meus colegas de profissão que estão lendo: vocês não estão sozinhos neste esgotamento. Estamos todos juntos neste barco que parece furar um pouco mais a cada onda.

E para mim mesmo: respire. Um dia após o outro. Um feriado após o outro. E talvez, apenas talvez, descubramos como pertencer àqueles misteriosos dois terços que, segundo a pesquisa, ainda não sucumbiram.

Por enquanto, sigo contando feriados e sonhando com julho.


Aqui estão 5 questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A Síndrome de Burnout e a precarização do trabalho docente: O texto aborda a alta incidência de Burnout entre professores da educação básica. Como a sociologia pode analisar a relação entre a precarização do trabalho docente (salários defasados, falta de suporte, etc.) e o desenvolvimento dessa síndrome?

2. O papel das instituições na saúde mental dos professores: O texto critica a falta de suporte e reconhecimento por parte das instituições (escola, governo, etc.). Como a sociologia pode analisar o papel das instituições na promoção da saúde mental dos professores e na prevenção do Burnout?

3. A naturalização do sofrimento e a cultura do esgotamento: O texto mostra como o sofrimento e o esgotamento são naturalizados no ambiente escolar. Como a sociologia pode analisar a construção social da "cultura do esgotamento" e seus impactos na saúde mental dos professores?

4. A relação entre inclusão e sobrecarga de trabalho: O texto aponta para a contradição entre o aumento da inclusão e a diminuição do suporte. Como a sociologia pode analisar os desafios da inclusão no contexto escolar e seus impactos na sobrecarga de trabalho dos professores?

5. O papel da sociedade na valorização do professor: O texto critica a falta de valorização do professor pela sociedade. Como a sociologia pode analisar o papel da sociedade na construção da imagem do professor e na promoção de uma cultura de valorização do trabalho docente?

quinta-feira, 6 de março de 2025

Café, Papel e Outras Contribuições "Voluntárias" ("Não se pode esperar construir um mundo melhor com pessoas piores." - Madre Teresa de Calcutá)

 Crônica 



Café, Papel e Outras Contribuições "Voluntárias" ("Não se pode esperar construir um mundo melhor com pessoas piores." - Madre Teresa de Calcutá)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Foi numa terça-feira comum que notei o celular de Maria vibrar insistentemente sobre a mesa da sala dos professores. Ela olhou para a tela, suspirou profundamente e guardou o aparelho no bolso do jaleco azul-marinho que usávamos como uniforme na escola prisional onde lecionávamos.

— "Mais uma vaquinha?", — perguntei, enquanto tentava organizar as provas que precisava corrigir antes do fim da semana.

— "Vinte e cinco reais este mês" — respondeu ela com um sorriso amarelo. — "Para material escolar dos alunos."

Trabalhar numa escola dentro de uma unidade prisional já trazia desafios próprios: alunos com histórias complexas, segurança reforçada e a constante sensação de estar fazendo algo significativo, ainda que dentro de circunstâncias difíceis. Mas havia um detalhe que não constava nas descrições oficiais do cargo: as contribuições "voluntárias".

O grupo de WhatsApp dos professores se transformava, mês após mês, em um mural de cobranças disfarçadas de pedidos. Primeiro foi o café – afinal, quem aguenta dar aulas às sete da manhã sem uma dose generosa de cafeína? Depois, o papel sulfite, que misteriosamente acabava antes que as remessas oficiais chegassem. E agora, material escolar para os alunos.

"Voluntário, mas necessário", dizia sempre a mensagem da coordenação, acompanhada de um emoji sorridente que só aumentava nossa indignação silenciosa.

Naquela tarde, enquanto observava Maria transferir os vinte e cinco reais via Pix, lembrei-me da reunião pedagógica da semana anterior, onde o diretor exibiu slides impressionantes sobre os recursos recebidos pela escola. Falou do Programa Nacional de Alimentação Escolar, do Fundo da Educação Básica, das verbas estaduais complementares. Números que somavam muito mais do que algumas resmas de papel e lápis de cor.

"Você não acha estranho?", perguntei a Maria enquanto saíamos para o intervalo. "Tanta verba específica e a gente precisa fazer vaquinha para comprar o básico?"

—"Acho" — ela respondeu, olhando para os lados como quem verifica se não está sendo observada. — "Mas quem vai ser o primeiro a questionar? Lembra do Carlos? Questionou as vaquinhas no semestre passado e, coincidentemente, perdeu as aulas extras que complementavam seu salário."

O medo era real e palpável como as grades que separavam a escola do restante da prisão. Não era apenas o valor – cinco, dez, vinte e cinco reais escorregando de nossos bolsos já apertados por salários defasados. Era o princípio da coisa, a contradição evidente entre os recursos anunciados e a realidade que vivíamos.

Na semana seguinte, a notícia estampou os jornais locais. Um vereador havia levado a denúncia ao plenário da Câmara Municipal. Prints das nossas conversas no WhatsApp circulavam como provas do que, para nós, era apenas o cotidiano naturalizado.

De repente, aquilo que discutíamos em sussurros na sala dos professores estava sendo debatido abertamente por políticos. Um vereador ligado ao magistério duvidava da veracidade das denúncias – "diretores prestam contas de todo recurso" — dizia ele com a convicção de quem conhece as regras, mas não o jogo.

Quando retornamos à escola após a repercussão do caso, um novo aviso no quadro da sala dos professores informava que "todas as contribuições estavam suspensas até segunda ordem" e que "uma sindicância interna apuraria os fatos".

Observei Maria sorrir genuinamente pela primeira vez em semanas.

— "Sabe o que é mais irônico?" — ela me disse enquanto servíamos café – agora fornecido oficialmente pela escola. "Não precisava de vereador, de jornal, de escândalo. Bastava seguir as regras que já existem."

Naquela tarde, percebi que, às vezes, a educação acontece também fora das salas de aula. Entre professores que precisam aprender a dizer não a pequenas injustiças, gestores que precisam reaprender o significado de transparência e um sistema que precisa ser constantemente vigiado para funcionar como deveria.

As vaquinhas para café e papel sulfite podem parecer insignificantes diante dos grandes problemas da educação brasileira. Mas são nesses pequenos desvios que começamos a normalizar o inaceitável. E talvez seja justamente aí – no café servido e no papel distribuído – que possamos começar a construir uma escola onde os recursos cheguem realmente a quem deles necessita: alunos e professores. https://www.feiradesantana.ba.leg.br/vereador-pede-apuracao-de-denuncia-sobre-contribuicao-de-professor-para-compra-de-material-de-alunos-em-escola-do-estado (Acessado em 6/3/2025)


Questões discursivas baseadas no texto, explorando as ideias principais e provocando reflexões sociológicas:


1. A cultura da "vaquinha" e a precarização do trabalho docente: O texto revela a prática das "vaquinhas" como uma forma de suprir a falta de recursos na escola prisional. Como a sociologia pode analisar essa prática sob a ótica da precarização do trabalho docente e da cultura da "vaquinha" no contexto educacional brasileiro?

2. O papel da burocracia e da gestão escolar: O texto critica a falta de transparência na gestão dos recursos e a inércia da burocracia diante da falta de materiais básicos. Como a sociologia pode analisar o papel da burocracia e da gestão escolar na perpetuação de desigualdades e na falta de recursos nas escolas?

3. A naturalização da injustiça e o medo da represália: O texto mostra como a prática das "vaquinhas" é naturalizada pelos professores, que temem represálias caso questionem a situação. Como a sociologia pode analisar o papel do medo e da naturalização da injustiça na manutenção de práticas abusivas no ambiente de trabalho?

4. A relação entre educação e sistema prisional: O texto se passa em uma escola dentro de uma unidade prisional, o que traz desafios específicos para o trabalho docente. Como a sociologia pode analisar a relação entre educação e sistema prisional, considerando o papel da escola na ressocialização dos detentos e os desafios enfrentados pelos professores nesse contexto?

5. O papel da mídia e da sociedade civil na luta por uma educação de qualidade: O texto mostra como a denúncia das "vaquinhas" na mídia levou à suspensão da prática e à abertura de uma sindicância. Como a sociologia pode analisar o papel da mídia e da sociedade civil na luta por uma educação de qualidade, considerando a importância da transparência e da fiscalização dos recursos públicos?