Professor em Território de Silêncio: DOS RELATÓRIOS MANUAIS ÀS PLANILHAS ELETRÔNICAS ("Em tempos de transição Deus levanta os improváveis!" — Marcelo Rissma)
Antes da pandemia, a escola já mostrava suas rachaduras. O “velho normal” não era normal: era um edifício em erosão lenta, onde a aparência de ordem escondia a solidão de quem ensinava. Não me sentia amparado. Caminhava sozinho entre protocolos frágeis, atravessando salas que funcionavam mais como trincheiras do que como espaços de escuta.
A coordenação, pressionada por reclamações externas, muitas vezes escolhia o caminho mais simples: proteger a imagem da instituição. Não se julgava o mérito, mas a conveniência. O professor tornava-se o ponto mais frágil da cadeia. Bastava um desconforto, uma queixa, um ruído — e o equilíbrio se rompia.
Vieram as advertências. Vieram os registros. Cheguei a ser denunciado por ter tomado uma cerveja sem álcool fora do espaço escolar, como se a vida privada fosse um anexo da sala de aula. Uma ex-aluna da EJA, marcada por sua própria frustração, transformou ressentimento em acusação. Outras reclamações surgiam menos por justiça do que por estratégia: dar aos filhos a liberdade irrestrita dentro dos muros da escola. E a instituição, temerosa da comunidade, quase sempre optava pela capitulação.
Cada reunião terminava da mesma forma: assinaturas em atas, formalidades cumpridas, arquivos alimentados. Os documentos cresciam. Eu diminuía. Relatórios se acumulavam não como instrumentos de cuidado, mas como escudos burocráticos. O que deveria ser mediação virava registro; o que deveria ser diálogo virava dossiê. Ao lado das cópias dos meus diplomas, repousavam papéis que não contavam quem eu era, mas quem eu poderia ser, acusado de ser.
Então a pandemia chegou. E não trouxe ruptura — apenas iluminação. O que já estava doente tornou-se explícito. O distanciamento social não criou o vazio; apenas o revelou. Veio a avalanche de plataformas, siglas, formulários, planilhas, reuniões virtuais. SIAP, MAPA DE NOTA, relatórios infinitos, plataformas, grupos, formulários, apostilas repetidas para os “DESINTERNETIZADOS”. A educação foi engolida por um oceano de tarefas que simulavam trabalho, mas rareavam o sentido.
As planilhas não ensinaram ninguém. Os formulários não escutaram ninguém. O excesso de controle não produziu mais aprendizagem — apenas mais silêncio.
Depois, o retorno. Já não se denunciavam alunos. Havia medo. E o medo move o silêncio. Pais transferiam à escola o que não conseguiam fazer em casa, e à escola cabia sobreviver. O professor tornava-se alvo fácil. Não se educava pelo vínculo, mas pelo protocolo.
A escola seguiu existindo, não como espaço de formação, mas como estrutura que aprende a se manter de pé mesmo desfigurada. Sobreviveu como sobrevivem certas instituições: não pela verdade, mas pela capacidade de adaptação à própria contradição.
Hoje, quando olho para trás, percebo que a pandemia não destruiu a escola física. Ela apenas retirou o verniz. O que havia por baixo já estava ali: o cansaço, o medo, o silêncio, a burocracia travestida de cuidado.
E talvez o mais duro não tenha sido o vírus, nem as plataformas, nem as atas. Talvez tenha sido a constatação de que, nesse sistema, ensinar é um ato de resistência solitária — e permanecer humano, uma forma discreta de insubordinação.
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Como seu professor de Sociologia, este texto é um relato potente sobre a crise crônica da escola, a burocratização da docência e a solidão do professor na sociedade contemporânea. Preparei cinco questões discursivas simples para analisarmos a desfiguração da instituição escolar e as novas formas de controle.
1. Burocracia e o Dossiê como Ferramenta de Controle
O narrador afirma que os relatórios e atas não eram instrumentos de cuidado, mas "escudos burocráticos" que se acumulavam para criar um "dossiê" ao lado de seus diplomas. Utilize o conceito de Burocracia Racional-Legal (Weber) para discutir como o excesso de documentos formais é usado pela instituição escolar. De que forma o registro exaustivo de ocorrências serve para proteger a imagem institucional e controlar o professor , transferindo o ônus do conflito e minando a autoridade moral do docente?
2. O Conflito Escola versus Comunidade e a "Capitulação"
O professor relata que a instituição, "temerosa da comunidade", optava pela "capitulação" diante das reclamações dos pais, que utilizavam estratégias para garantir a "liberdade irrestrita" dos filhos. Analise essa dinâmica como uma Inversão da Autoridade Pedagógica. Por que o medo da pressão externa faz com que a escola abdique de seu papel normativo e de julgamento de mérito, e quais são as consequências dessa priorização da conveniência sobre os princípios educacionais?
3. O Distanciamento Social e a Revelação do Vazio
O texto argumenta que a pandemia “não trouxe ruptura — apenas iluminação”, e que o distanciamento social “não criou o vazio; apenas o revelou”. Discuta as implicações sociológicas dessa revelação. De que forma a crise sanitária expôs a fragilidade estrutural e o colapso de sentido que já existiam na escola do “velho normal”, mostrando que a instituição se mantinha de pé mais pela aparência do que pela coesão interna?
4. Tecnologia e a Simulação do Trabalho
A avalanche de plataformas (SIAP, MAPA DE NOTA, Google Forms, etc.) é descrita como um “oceano de tarefas que simulavam trabalho, mas rareavam o sentido”, pois "planilhas não ensinaram ninguém". Relacione esse fenômeno com o conceito de Alienação do Trabalho (Marx). De que maneira o uso excessivo de tecnologias de gestão e controle durante a pandemia desvia o foco do ato pedagógico e transforma o trabalho docente em uma atividade burocrática e inútil (simulação), gerando um profundo esvaziamento de sentido?
5. O Professor como Ator de "Resistência Solitária"
O narrador conclui que, no sistema escolar atual, “ensinar é um ato de resistência solitária — e permanecer humano, uma forma discreta de insubordinação”. Discuta o significado da resistência individual do professor. Por que o "cansaço, o medo, o silêncio e a burocracia" tornam a prática docente um ato de solidão, e como a tentativa de manter a humanidade e o foco no ensino (em vez do protocolo) pode ser vista como um ato de insubordinação ética contra o sistema?
Antes da pandemia, a escola já mostrava suas rachaduras. O “velho normal” não era normal: era um edifício em erosão lenta, onde a aparência de ordem escondia a solidão de quem ensinava. Não me sentia amparado. Caminhava sozinho entre protocolos frágeis, atravessando salas que funcionavam mais como trincheiras do que como espaços de escuta.
A coordenação, pressionada por reclamações externas, muitas vezes escolhia o caminho mais simples: proteger a imagem da instituição. Não se julgava o mérito, mas a conveniência. O professor tornava-se o ponto mais frágil da cadeia. Bastava um desconforto, uma queixa, um ruído — e o equilíbrio se rompia.
Vieram as advertências. Vieram os registros. Cheguei a ser denunciado por ter tomado uma cerveja sem álcool fora do espaço escolar, como se a vida privada fosse um anexo da sala de aula. Uma ex-aluna da EJA, marcada por sua própria frustração, transformou ressentimento em acusação. Outras reclamações surgiam menos por justiça do que por estratégia: dar aos filhos a liberdade irrestrita dentro dos muros da escola. E a instituição, temerosa da comunidade, quase sempre optava pela capitulação.
Cada reunião terminava da mesma forma: assinaturas em atas, formalidades cumpridas, arquivos alimentados. Os documentos cresciam. Eu diminuía. Relatórios se acumulavam não como instrumentos de cuidado, mas como escudos burocráticos. O que deveria ser mediação virava registro; o que deveria ser diálogo virava dossiê. Ao lado das cópias dos meus diplomas, repousavam papéis que não contavam quem eu era, mas quem eu poderia ser, acusado de ser.
Então a pandemia chegou. E não trouxe ruptura — apenas iluminação. O que já estava doente tornou-se explícito. O distanciamento social não criou o vazio; apenas o revelou. Veio a avalanche de plataformas, siglas, formulários, planilhas, reuniões virtuais. SIAP, MAPA DE NOTA, relatórios infinitos, plataformas, grupos, formulários, apostilas repetidas para os “DESINTERNETIZADOS”. A educação foi engolida por um oceano de tarefas que simulavam trabalho, mas rareavam o sentido.
As planilhas não ensinaram ninguém. Os formulários não escutaram ninguém. O excesso de controle não produziu mais aprendizagem — apenas mais silêncio.
Depois, o retorno. Já não se denunciavam alunos. Havia medo. E o medo move o silêncio. Pais transferiam à escola o que não conseguiam fazer em casa, e à escola cabia sobreviver. O professor tornava-se alvo fácil. Não se educava pelo vínculo, mas pelo protocolo.
A escola seguiu existindo, não como espaço de formação, mas como estrutura que aprende a se manter de pé mesmo desfigurada. Sobreviveu como sobrevivem certas instituições: não pela verdade, mas pela capacidade de adaptação à própria contradição.
Hoje, quando olho para trás, percebo que a pandemia não destruiu a escola física. Ela apenas retirou o verniz. O que havia por baixo já estava ali: o cansaço, o medo, o silêncio, a burocracia travestida de cuidado.
E talvez o mais duro não tenha sido o vírus, nem as plataformas, nem as atas. Talvez tenha sido a constatação de que, nesse sistema, ensinar é um ato de resistência solitária — e permanecer humano, uma forma discreta de insubordinação.
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Como seu professor de Sociologia, este texto é um relato potente sobre a crise crônica da escola, a burocratização da docência e a solidão do professor na sociedade contemporânea. Preparei cinco questões discursivas simples para analisarmos a desfiguração da instituição escolar e as novas formas de controle.
1. Burocracia e o Dossiê como Ferramenta de Controle
O narrador afirma que os relatórios e atas não eram instrumentos de cuidado, mas "escudos burocráticos" que se acumulavam para criar um "dossiê" ao lado de seus diplomas. Utilize o conceito de Burocracia Racional-Legal (Weber) para discutir como o excesso de documentos formais é usado pela instituição escolar. De que forma o registro exaustivo de ocorrências serve para proteger a imagem institucional e controlar o professor , transferindo o ônus do conflito e minando a autoridade moral do docente?
2. O Conflito Escola versus Comunidade e a "Capitulação"
O professor relata que a instituição, "temerosa da comunidade", optava pela "capitulação" diante das reclamações dos pais, que utilizavam estratégias para garantir a "liberdade irrestrita" dos filhos. Analise essa dinâmica como uma Inversão da Autoridade Pedagógica. Por que o medo da pressão externa faz com que a escola abdique de seu papel normativo e de julgamento de mérito, e quais são as consequências dessa priorização da conveniência sobre os princípios educacionais?
3. O Distanciamento Social e a Revelação do Vazio
O texto argumenta que a pandemia “não trouxe ruptura — apenas iluminação”, e que o distanciamento social “não criou o vazio; apenas o revelou”. Discuta as implicações sociológicas dessa revelação. De que forma a crise sanitária expôs a fragilidade estrutural e o colapso de sentido que já existiam na escola do “velho normal”, mostrando que a instituição se mantinha de pé mais pela aparência do que pela coesão interna?
4. Tecnologia e a Simulação do Trabalho
A avalanche de plataformas (SIAP, MAPA DE NOTA, Google Forms, etc.) é descrita como um “oceano de tarefas que simulavam trabalho, mas rareavam o sentido”, pois "planilhas não ensinaram ninguém". Relacione esse fenômeno com o conceito de Alienação do Trabalho (Marx). De que maneira o uso excessivo de tecnologias de gestão e controle durante a pandemia desvia o foco do ato pedagógico e transforma o trabalho docente em uma atividade burocrática e inútil (simulação), gerando um profundo esvaziamento de sentido?
5. O Professor como Ator de "Resistência Solitária"
O narrador conclui que, no sistema escolar atual, “ensinar é um ato de resistência solitária — e permanecer humano, uma forma discreta de insubordinação”. Discuta o significado da resistência individual do professor. Por que o "cansaço, o medo, o silêncio e a burocracia" tornam a prática docente um ato de solidão, e como a tentativa de manter a humanidade e o foco no ensino (em vez do protocolo) pode ser vista como um ato de insubordinação ética contra o sistema?
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