Os Carrapatos de Terno ("Não há maior infortúnio que a justiça pervertida." — Francis Bacon)
Era uma terça-feira qualquer quando presenciei uma cena que me fez refletir sobre os pequenos dramas silenciosos que se espalham pelo tecido da nossa sociedade. Eu estava na fila do banco, distraído com o vai-e-vem das manhãs apressadas, quando um homem bem vestido tropeçou — ou fingiu tropeçar — diante do balcão de atendimento. O que se seguiu foi um espetáculo digno de aplausos, não fosse o tom farsesco da encenação.
— "Ai, meu joelho!", - gritou ele, agarrando a perna com uma intensidade dramática que faria corar um veterano de palco. Funcionários correram para ajudá-lo, enquanto ele, entre gemidos bem calculados, já sacava o celular para fotografar o “local do acidente”. Foi ali, diante dos meus olhos, que nasceu mais um processo judicial.
Saí do banco com uma sensação estranha, não exatamente de revolta, mas de um desalento discreto — uma melancolia provocada pela esperteza travestida de desgraça. Segui meu caminho pelas ruas apressadas da cidade e, pela primeira vez, me peguei observando as pessoas não como anônimos passageiros do cotidiano, mas como possíveis atores de pequenas farsas. Quantos ali, pensei, carregavam pastas recheadas não de currículos ou contratos, mas de estratégias para lucrar com as quedas alheias?
Lembrei-me de uma conversa recente com meu vizinho aposentado, homem simples, de fala mansa e olhos vividos. Contava-me, com uma mistura de incredulidade e cansaço, sobre um conhecido que havia “descoberto” uma nova profissão: caçador de indenizações. — "Ele tem mais processos em andamento do que eu tive empregos na vida toda", - comentou, balançando a cabeça. — "Escorregou no shopping, foi discriminado no trabalho, sofreu danos morais na padaria... Sempre acontece alguma coisa com ele."
O que me marcou não foi o absurdo da história, mas a naturalidade com que foi contada — como se fosse apenas mais um ofício do mercado moderno: o profissional autônomo da vitimização.
Nos dias seguintes, meus olhos, agora mais atentos, passaram a flagrar cenas antes ignoradas. A mulher que “tropeçava” na calçada irregular, o sujeito que “se feria” ao empurrar a porta giratória, o cliente que se dizia “humilhado” por um olhar distraído do atendente. Será que todos estavam certos? Ou estaria nascendo ali uma nova economia subterrânea, sustentada por uma cultura de compensação?
Não nego que injustiças acontecem. A dor real existe e precisa de amparo. Mas há um limite tênue — e perigoso — entre a busca legítima por reparação e o uso da justiça como atalho para o enriquecimento. Quando a exceção vira regra, o sistema que deveria proteger vira ferramenta de abuso. A justiça, então, vira jogo. E alguns jogam com as cartas marcadas.
Numa manhã qualquer, enquanto tomava café numa padaria, ouvi duas pessoas conversando animadamente na mesa ao lado. Uma delas explicava, quase com orgulho, como havia conseguido uma indenização por "constrangimento" numa loja. O tom era de quem entrega uma fórmula mágica, um segredo lucrativo. — "É só saber como falar com o advogado", - dizia, - "ele conhece os truques."
Aquela frase me atravessou como uma lembrança. Pensei no meu avô, que passava os dias numa oficina de bairro, mãos calejadas e olhar honesto. Para ele, dinheiro suado era medalha. Dinheiro fácil, desonra. Jamais entenderia essa nova forma de sustento. — "Quem vive do suor do outro é ladrão", - dizia com firmeza, e com razão.
Talvez por isso me sinta tomado por uma nostalgia silenciosa ao ver essa epidemia de processos fabricados. Sinto falta dos tempos em que um desentendimento era resolvido com uma boa conversa, e não com uma petição. Hoje, a primeira reação não é mais o diálogo — é a ameaça: — “vou processar”.
Andando pelas mesmas ruas de antes, percebo que nos tornamos uma sociedade de caçadores: uns atrás de causas para lucrar, outros atrás de culpados para punir. E no meio disso tudo, fomos esquecendo a arte do perdão, a nobreza do trabalho honesto e o valor da palavra dada.
Não sei se ainda é possível reverter esse curso. Mas, sei que, individualmente, ainda podemos escolher o que ser. Podemos construir ou parasitar, contribuir ou explorar. A decisão, por ora, ainda nos pertence.
Porque, no fim das contas, o que realmente nos define não é o quanto conseguimos arrancar dos outros, mas o que somos capazes de construir com as próprias mãos.
Minha crônica é uma reflexão perspicaz sobre a perversão do sistema de justiça e a ascensão de uma "cultura de compensação" na sociedade. Como seu professor de sociologia, preparei cinco questões discursivas simples para aprofundar as ideias de meu texto.
1 - A crônica descreve a cena de um homem que simula um acidente para abrir um processo judicial, chamando-o de "espetáculo digno de aplausos". Do ponto de vista da Sociologia do Direito, como a busca por indenizações pode se desvirtuar de sua função original de reparação e se tornar um instrumento de oportunismo, impactando a credibilidade do sistema judiciário?
2 - O texto apresenta a figura do "caçador de indenizações" como uma "nova profissão" e uma "economia subterrânea". À luz da Sociologia do Trabalho e do Desvio Social, discuta como essa prática pode ser interpretada como uma forma de parasitismo social, e quais as implicações éticas e econômicas de uma sociedade onde a "vitimização" se torna uma fonte de renda.
3 - A crônica lamenta a perda do diálogo e a prevalência da "ameaça: 'vou processar'". Com base na Sociologia dos Conflitos, como a judicialização das relações sociais transforma a maneira como os indivíduos resolvem seus desentendimentos, e quais são as consequências dessa tendência para a coerência social e a capacidade de resolução de problemas fora do âmbito legal?
4 - Ao contrastar a nova cultura de "processos fabricados" com o valor do "dinheiro suado" do outro, o texto evidencia uma mudança de valores sociais. Utilizando conceitos da Sociologia da Moral, analise como a ética do trabalho honesto e da responsabilidade individual pode ser erodida por práticas que buscam o ganho fácil às custas do outro, e quais os impactos dessa erosão na confiança interpessoal.
5 - A reflexão final do autor sobre uma "sociedade de caçadores" — uns atrás de lucros, outros de culpados — levanta questões sobre o futuro das relações humanas. Sob a ótica da Sociologia Contemporânea, discuta como a individualização extrema e a busca incessante por direitos (muitas vezes, sem a correspondente percepção de deveres) podem fragilizar os laços comunitários e a "arte do perdão", transformando as interações em disputas constantes.
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