Uma aluna da Educação de Jovens e Adultos (EJA), na extensão do colégio — alguém que mal domina a composição de um texto, por vezes nem um simples bilhete — travava uma disputa por nota integral, humilhando o professor ao se colocar em pé de igualdade com ele. Quem, sem domínio da escrita, se julga capaz de avaliar os critérios de correção de quem vive o ofício diariamente?
A seu lado, um colega de caligrafia garrancheira e ilegível, cuja única propriedade era o tamanho do papel, mantinha os fones nos ouvidos como um muro simbólico. Apoiada por ele, a aluna reivindicava sem sequer fundamentar seu pedido. Os semelhantes se defendem. Queria a mesma nota da colega de quem colou ou apenas o espetáculo de me constranger? Afinal, ninguém produz uma redação idêntica à de outrem, porque ninguém pensa de modo igual. Ao final, dobrei-me às pressões.
Foi então que o cenário se configurou como um teatro de papéis invertidos: o mestre transformado em réu; o erro reivindicando razão; a fragilidade julgando a experiência, como se todo saber pudesse ser medido pelo volume do protesto. Havia ali menos aprendizagem e mais disputa de vaidades — um silêncio calculado no qual o mérito se dissolvia no desejo de igualdade sem esforço. Observava, calado, o peso da superficialidade que revestia gestos simples e os convertia em acusações. Ainda assim, mantive a dignidade da palavra, como quem segura uma tocha contra o vento: tremendo, porém acesa.
A loucura que me atribuem não é delírio, mas sobrevivência — abrigo derradeiro de quem insiste em ensinar algo que tenha sentido. Ser “louco”, aqui, é não ceder ao vazio. E talvez seja justamente nesse abismo que minha sanidade se firma.
Sempre há um incompetente nas relações sociais: naquele episódio, atribuí a mim esse papel por não conseguir compreendê-los; eles, porém, não se culpam por não compreender a mim. Alguns colegas, vivendo os mesmos cenários, aconselham-me a buscar tratamento psicológico, como se o desgaste fosse sinal de fraqueza. Tornaram-se aliados do conforto, da diplomacia do nada. Mas pergunto: quem é o enfermo — o que sente demais ou o que finge não sentir nada?
Escolhi permanecer autêntico, pois ser professor é, antes de tudo, aceitar a tarefa árdua de convencer corações distraídos. Meu destino será moldado pela loucura criativa que insiste em ensinar o que é útil; o deles, pela hipocrisia imóvel das promessas vazias.
O futuro pertence aos loucos lúcidos, enquanto os hipócritas se sustentam em amizades interesseiras. Não é pecado ser louco; pecado é condenar a lucidez inquieta em nome de um politicamente correto que produz silêncio, mas não paz.
Sei que o parasita não preserva nada do que consome — vive de desfrutar, espoliar e descartar — e, por isso, devora o hospedeiro até o fim. Que sugue. Pois está escrito: “Mas Deus lhe disse: Louco! Esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” (Lc 12:20).
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Abaixo, apresento 5 questões discursivas e simples que visam estimular a reflexão dos alunos sobre as ideias centrais tratadas no meu relato, conectando-as à teoria social.
1. Relações de Poder e Inversão de Papéis: O narrador descreve a situação como um "teatro de papéis invertidos: o mestre transformado em réu; o erro reivindicando razão; a fragilidade julgando a experiência". Com base nas relações sociais e de poder, explique o que essa "inversão de papéis" pode significar para a autoridade e o reconhecimento do saber formal (do professor) na sociedade contemporânea.
2. Meritocracia e Igualdade sem Esforço: O texto critica o momento em que "o mérito se dissolvia no desejo de igualdade sem esforço". Diferencie, sociologicamente, o conceito de Equidade (que busca justiça e oportunidades iguais) do ideal de Igualdade Superficial (ou "sem esforço") que o narrador aponta. Qual o risco social de exigir a mesma recompensa sem o reconhecimento do esforço ou da competência?
3. Autenticidade Profissional vs. "Diplomacia do Nada": O professor confronta a postura de colegas que o aconselham a buscar tratamento psicológico, caracterizando-os como "aliados do conforto, da diplomacia do nada". Analise como o conceito de Autenticidade (a escolha de "permanecer autêntico") é apresentado no texto como uma forma de resistência ao Vazio ou à Anomia (ausência de normas/valores fortes) no ambiente de trabalho e nas relações sociais.
4. A Crítica ao "Politicamente Correto" e a Lucidez Inquieta: O autor afirma que "pecado é condenar a lucidez inquieta em nome de um politicamente correto que produz silêncio, mas não paz". Discuta como o uso excessivo e não reflexivo do "politicamente correto" pode, segundo o texto, sufocar o debate e a crítica construtiva, criando um ambiente de superficialidade e inautenticidade nas relações.
5. Solidariedade e Dinâmica de Grupo: A união entre os alunos é resumida na frase: "Os semelhantes se defendem". Qual tipo de Solidariedade Social (mecanismo de coesão social, segundo Émile Durkheim, por exemplo) está em ação nessa cena? O que, no contexto narrado, une esses indivíduos e qual é a função dessa união para o grupo, considerando o objetivo de "constranger" o professor?
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