MERCANTILISMO ("Prostituição não é vender o corpo. É vender a dignidade." — Adriana Cristina Razia)
Por Claudeci Ferreira de Andrade
Caminhava eu, naquela tarde soalheira, pela movimentada Avenida Dom Emanuel, em Senador Canedo. O burburinho da cidade soava como uma velha canção familiar aos meus ouvidos. No entanto, havia algo que destoava da melodia do cotidiano: uma frase antiga martelava minha mente, inquietando meus pensamentos — “Nada de graça presta.” Tão comum quanto o calor do asfalto, essa máxima popular ganhava contornos mais profundos sob o sol que me cobria. Simples à primeira vista, ela se descortinava, ali, como uma verdade amarga sobre os fios invisíveis que tecem os relacionamentos humanos.
Meus pensamentos vagavam, como nuvens dispersas no céu seco, e pousaram sobre uma realidade especialmente dolorosa: a das crianças lançadas cedo demais aos palcos da vida artística. Nessas histórias, a inocência se torna frágil, quase translúcida — um convite involuntário aos predadores que se ocultam sob disfarces de afeto. E então emergiu, feroz e desconfortável, a imagem da pedofilia: um horror cotidiano, cruel, que seduz com presentes e agrados, como se a dignidade de uma criança pudesse ser comprada por um preço tão “baixo”, tão vil. A pureza da infância, manchada pela perversidade, apertava-me o peito como se carregasse em silêncio a dor de toda uma cidade.
Logo, minha mente se deslocou para o universo dos adultos, onde ouvi ressoar uma ideia recorrente: “Sexo pago é para quem não se valoriza.” Mas, naquele instante, algo em mim resistiu à sentença. Não seria todo relacionamento, no fundo, uma troca — velada ou explícita? Até mesmo na esfera religiosa, há algo de contratual: entrega-se fé, devoção, tempo, e em troca se espera a vida eterna. Que outro nome dar a isso senão um pacto sagrado, um acordo não declarado, mas profundamente sentido?
Nas relações conjugais, que o discurso social insiste em pintar como isentas de interesse, me veio à lembrança uma frase popular que sempre me intrigou: “A mulher casada custa mais, mas até os mendigos a têm de graça.” Mas seria possível receber amor e entrega sem nenhum esforço? Nenhuma relação verdadeira vem sem custo. O amor exige investimento — não de dinheiro, mas de presença, renúncia, paciência. A gratidão, percebi, esmorece quando não há reciprocidade, quando o que se dá não encontra eco no que se recebe.
Naquele instante, ouvi no íntimo a voz do meu avô, como um sussurro persistente que dançava no vento quente da avenida: “Não há almoço grátis.” Sua sabedoria simples, que eu tantas vezes deixei passar sem dar-lhe o devido valor, agora me parecia a chave para compreender a estrutura invisível da vida. Tudo tem seu preço. Tudo. Seja financeiro, físico, emocional — ou, por vezes, todos esses ao mesmo tempo. Nada que valha a pena chega sem um tipo de esforço.
Ao fim da caminhada, com o sol já se rendendo ao horizonte de Senador Canedo, senti uma mistura rara de tristeza e clareza. Tristeza pelas verdades que se impõem com a idade e a lucidez. Clareza por finalmente entender que a vida não nos oferece gratuidade — ela nos testa, exige de nós escolhas conscientes, atenção aos detalhes, e sobretudo, empenho genuíno por tudo aquilo que desejamos conservar.
1 - A crônica inicia com a máxima "Nada de graça presta" e a aplica a diversas esferas da vida. Do ponto de vista da Sociologia das Relações Sociais, como essa percepção sobre o "preço" ou "custo" se manifesta nas interações cotidianas (amizades, família, trabalho), e de que forma a ausência de uma "contrapartida" pode afetar a manutenção desses laços?
2 - O texto aborda a "triste e revoltante realidade da pedofilia", onde "presentes e agrados" são utilizados para vilipendiar a dignidade. À luz da Sociologia do Desvio e da Violência, discuta como a vulnerabilidade social de crianças e adolescentes é explorada e quais são os mecanismos sociais que permitem que tais atos ocorram, muitas vezes disfarçados em "afeto".
3 - Ao questionar a ideia de que "sexo pago é para quem não se valoriza" e afirmar que "todo relacionamento, no fundo, é uma troca", a crônica provoca uma reflexão sobre a natureza das interações humanas. Com base na Sociologia da Sexualidade e dos Gêneros, analise como a sociedade constrói valores morais em torno das relações sexuais e afetivas, e de que forma a lógica da "troca" (seja ela afetiva, material ou simbólica) está presente em diferentes tipos de vínculos.
4 - A crônica compara as relações conjugais e até mesmo a fé religiosa a uma forma de "barganha divina" ou "pacto sagrado", onde há uma troca implícita. Utilizando conceitos da Sociologia da Família e da Religião, discuta como as instituições sociais (casamento, igreja) estabelecem sistemas de reciprocidade e compromisso, e como a gratidão e a reciprocidade são fundamentais para a coesão e o significado dessas relações.
5 - O autor conclui que "o valor das coisas não está no quanto custam, mas no quanto nos transformam" e que "o que exige esforço, sim — porque nele investimos pedaços de nós". Sob a perspectiva da Sociologia do Consumo e da Subjetividade, como essa percepção sobre o valor se distancia de uma visão puramente materialista e se conecta à busca por sentido e realização pessoal através do investimento de tempo, emoção e esforço em suas experiências e conquistas?