O Sistema que nos Engole: Receba um bom dia ("Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma." — Carl Jung)
Lembro-me do exato momento em que percebi que havia sido engolido pelo sistema. Não foi um despertar dramático, apenas uma constatação silenciosa numa manhã aparentemente comum. Eu cruzava o corredor em direção à sala dos professores quando notei que passava por colegas, funcionários da secretaria, pessoal da limpeza e da cozinha como se fossem apenas elementos do cenário. Nem "bom dia" eu dizia mais.
Em que momento deixei de ser aquele professor entusiasta e sorridente? Quando foi que esse pequeno gesto de cordialidade desapareceu do meu repertório diário?
Era cada vez mais difícil sair da cama pela manhã. Sentia-me pesado, como se carregasse um fardo invisível. E quando finalmente chegava à escola, apenas cumpria protocolos, passando pelos movimentos necessários, sem realmente estar presente. A verdade incontestável era que eu não estava sozinho nesse processo.
Os corredores da escola haviam se transformado em um desfile de rostos fechados e olhares distantes. O "bom dia" raramente encontrava resposta – quando muito, recebia um murmúrio desanimado ou um silêncio cortante. Alguns professores, absortos em sua própria pressa, pareciam nem notar a saudação. Outros, imersos em suas angústias pessoais, mostravam-se incapazes de retribuí-la.
O sistema que nos engole é um monstro sem rosto. Uma força silenciosa, uma névoa que envolve principalmente os recém-chegados, transformando-os gradualmente. O jovem professor inicia sua jornada repleto de ideias inovadoras, motivado, acreditando genuinamente que pode fazer a diferença. Contudo, dia após dia, observa a indiferença ao seu redor, os olhares cansados, os suspiros de exaustão. É um processo lento e imperceptível: o brilho nos olhos se apaga, a voz entusiasmada torna-se monótona, e o simples "bom dia" é a primeira vítima dessa desumanização coletiva.
A rotina nos consumia. Cada um carregava suas frustrações profissionais, a sensação de estar preso a um ciclo repetitivo e desgastante, a falta crônica de reconhecimento. A escola, que deveria representar um espaço de crescimento e aprendizado contínuo, havia se convertido em um campo minado de mal-entendidos e desânimo generalizado.
O choque veio quando um aluno me cumprimentou no corredor e só percebi o silêncio que devolvi quando já era tarde demais. Aquele momento foi revelador. Quando foi que parei de responder? Quando permiti que me deixasse levar pelo mesmo desânimo que um dia critiquei veementemente nos outros?
Naquela manhã, tomei uma decisão: lutar contra esse sistema invisível que nos suga a energia e a paixão, que nos transforma em meras engrenagens de uma máquina sem propósito ou significado. Voltei deliberadamente a dizer: "Receba um bom dia" em alto e bom som, mesmo quando não obtinha resposta. Forcei-me a sorrir, ainda que os rostos ao redor insistissem em permanecer fechados.
Foi apenas um pequeno gesto, mas percebi que, ao menos para mim, fazia uma diferença significativa. Talvez fosse um recomeço. Talvez fosse a simples lembrança de que, por trás dos cansaços acumulados e frustrações diárias, ainda somos humanos tentando sobreviver ao peso implacável dos dias.
E é exatamente isso que quero transmitir: não deixem que o sistema os engula por completo. Não permitam que a paixão e a energia que um dia os trouxe a esta profissão se perca nos meandros da burocracia e das políticas institucionais. Sejam professores que se importam verdadeiramente, que se preocupam com cada aluno, que renovam diariamente o amor pela educação.
Porque, ao final de cada jornada, o que realmente importa não é o sistema, não são os protocolos intermináveis ou as reuniões pedagógicas. É a paixão genuína, a energia renovada e a dedicação constante que nos definem como educadores.
E se nada mais funcionar, que ao menos continuemos dizendo: "Receba um bom dia" – esse pequeno ato de resistência humana contra a maré de indiferença que ameaça nos submergir. E correr o risco de cumprimentar uma mulher e ser acusado de assédio sexual.
Questões Discursivas
1. O texto menciona um "sistema que nos engole" como "um monstro sem rosto". Analise como as instituições sociais podem promover processos de desumanização e alienação entre seus membros, relacionando com o conceito sociológico de anomia social.
2. O autor descreve uma transformação gradual que afeta os professores novatos, do entusiasmo inicial à apatia. Discuta como os processos de socialização profissional podem contribuir para a reprodução de comportamentos e atitudes no ambiente escolar.
3. "A escola, que deveria representar um espaço de crescimento e aprendizado contínuo, havia se convertido em um campo minado de mal-entendidos e desânimo generalizado." A partir desta afirmação, reflita sobre a contradição entre o papel ideal das instituições educacionais e sua realidade prática na sociedade contemporânea.
4. No texto, o simples ato de dizer "Receba bom dia" é apresentado como uma forma de resistência. Discuta como pequenos gestos cotidianos podem representar formas de resistência microssocial contra processos de alienação nas instituições.
5. O autor menciona a "falta crônica de reconhecimento" como um dos elementos que contribuem para o desgaste profissional. Analise como as relações de trabalho na sociedade atual podem afetar a construção da identidade profissional dos educadores.
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