Dizem que o Carnaval é uma pausa — uma brecha ruidosa entre os compromissos do ano e a busca por algum sentido maior. Mas para mim, ele sempre foi mais que isso. Há algo de sagrado nesse profano que se espalha pelas ruas, algo que revela o ser humano em sua inteireza. Máscaras caem quando outras se colocam, e por trás da fantasia, emerge uma verdade que poucos têm coragem de encarar.
Não me vesti de Arlequim nem cobri o corpo de lantejoulas. Preferi trajar a alma com perguntas — aquelas que não se calam mesmo diante do batuque. Entrei no bloco não para dançar, mas para observar. A dança dos corpos, os olhos em busca de sentido, os risos que escondem silêncios: tudo ali carregava mais do que a alegria estampada. Carregava sede. De quê? Nem todos sabiam. Mas era evidente que não se tratava apenas de festa.
Havia quem buscasse libertação, outros apenas fuga. Um homem vestido de anjo vendia cerveja quente com o mesmo fervor de um pregador. Uma mulher quase nua, coberta de glitter e fé, caminhava com passos de quem levava o mundo nos ombros. Um padre aposentado, de colar havaiano e sorriso largo, cantava “É hoje o dia da alegria” como se fosse um salmo. E ali, entre eles, tentei entender se é possível ser livre quando se está preso aos próprios desejos.
A verdade é que o Carnaval não esconde nossa natureza — ele a escancara. Ao som ensurdecedor do trio, ouvi um grito que parecia vir de dentro de mim: “Onde está o bloco de Jesus?” Ninguém respondeu. Talvez porque Jesus, cansado de ser símbolo, estivesse buscando ser presença. Talvez dançasse também, entre os cínicos e os desesperados, os que procuram Deus nos lugares onde ele costuma ser negado.
Lembrei-me então de Viviane Mosé: “Lúcido deve ser parente de Lúcifer. A lucidez custa caro.” E custa mesmo. Ser lúcido no Carnaval é como tentar sussurrar no meio da multidão. É resistir ao apelo da carne com o coração dividido — entre o impulso e a consciência, entre o prazer e a permanência.
Reconheço: há uma força sedutora na permissividade. A energia efervescente dessa festividade parece justificar tudo em nome do gozo momentâneo. E ainda que eu compreenda os apelos físicos e psicológicos que ela desperta, sei que entregar-se sem medida é correr o risco de perder o centro. A indulgência, quando sem freios, não emancipa — aprisiona. E não nos faz humanos, apenas instintivos.
É preciso lembrar que o pecado, por vezes, vem disfarçado de liberdade, e o Diabo não aparece com tridente — aparece com glitter. Os limites éticos e espirituais se confundem com a batida do tambor, e a carne, essa velha conhecida da tentação, clama por protagonismo. Não é a festa que nos corrompe, mas o esquecimento de quem somos em meio a ela.
Voltei para casa com os pés sujos de rua e o espírito marcado. O Carnaval havia me atravessado — e não o contrário. Ainda ecoava o batuque no asfalto, mas, em mim, o silêncio da reflexão era mais alto. Talvez a beleza do Carnaval esteja justamente nisso: na confusão humana que, se bem conduzida, revela o que temos de mais autêntico.
E se, afinal, a carne é fraca — que a alma esteja atenta. Porque quando a música parar, só restará a pergunta que ecoa mesmo no fim do último acorde: "E agora, quem somos nós sem a fantasia?"
Como seu professor de Sociologia, vejo que esta crônica oferece um material riquíssimo para pensarmos as dinâmicas sociais para além da superfície. A minha observação atenta do Carnaval nos permite analisar questões que vão do indivíduo à estrutura social.
1. O Carnaval como Rito Social e Expressão Humana: O autor descreve o Carnaval como algo que "revela o ser humano em sua inteireza" e onde "máscaras caem". Sociologicamente, como podemos entender o papel de ritos e festividades como o Carnaval na expressão da identidade individual e coletiva, e na (possível) quebra das regras sociais cotidianas?
2. A Busca por Sentido e a Fuga em Eventos de Massa: O texto capta uma "sede" nos foliões, uma busca por "libertação" ou "fuga". Discuta, do ponto de vista sociológico, o que leva as pessoas a buscar "escape" ou (aparentes) "sentidos" em grandes celebrações coletivas, e que necessidades sociais podem estar por trás dessa busca na sociedade contemporânea.
3. Corpo, Prazer e Moralidade na Esfera Pública: A crônica aborda a intensidade da "festa da carne" e a tensão entre a entrega ao prazer e a consciência. Como a Sociologia analisa a relação entre o corpo, a busca por prazer (como no Carnaval) e a construção social da moralidade e dos limites éticos em espaços públicos?
4. A Indulgência, a Permissividade e o Controle Social (Simbolizado): A crítica à "indulgência sem freios" que "aprisiona" e à ideia de que o "pecado" vem "disfarçado de liberdade" sugere uma reflexão sobre controle social. Como a Sociologia interpreta os períodos de permissividade social (como o Carnaval) e os mecanismos (visíveis ou simbólicos) que atuam para manter, mesmo que sutilmente, uma ordem social?
5. O Indivíduo Observador diante da Massa: O autor se posiciona como "observador" no meio da folia, "trajado de perguntas", e reflete sobre o custo da "lucidez". O que a Sociologia nos diz sobre a experiência do indivíduo que, consciente ou inconscientemente, se distancia ou questiona as normas e comportamentos predominantes em um evento de forte adesão coletiva?