"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

Pesquisar neste blog ou na Web

MINHAS PÉROLAS

Um professor desconhece os perigos de sê-lo. Mas, as forças do além fazem-no permanecer vivo, porque ele precisa exemplificar o que ensinou! É professor e cobaia de si mesmo!
Claudeci Ferreira de Andrade

quarta-feira, 16 de abril de 2025

A Aula Que me Cortou por Dentro ("No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho" — Carlos Drummond de Andrade)

 

A Aula Que me Cortou por Dentro ("No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho" — Carlos Drummond de Andrade)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A notícia me alcançou na sala dos professores, entre pilhas de provas por corrigir. Veio pelo rádio, na voz de um locutor que, com sua frieza jornalística, destoava do calafrio que me subiu pela espinha: um colega de profissão, em São Miguel do Araguaia, havia sido atacado pelas costas. Com um canivete. Por uma aluna. As palavras flutuaram no ar antes de afundarem como pedras no estômago. Aquele nome de cidade, até então apenas um ponto distante no mapa de Goiás, tornou-se, de súbito, o epicentro de um terremoto íntimo — um drama que senti ecoar em qualquer sala de aula. Inclusive na minha.

Ao longo do dia, os detalhes emergentes tornavam a história ainda mais sombria e perturbadora: a idade da agressora, quinze anos; a menção a um desentendimento anterior, soando como um eco fraco e insuficiente para justificar tamanha violência; o cálculo frio para burlar a segurança, escondendo a arma no muro e recuperando-a após passar pelo detector de metais.

Fechei os olhos e a cena se desenhou, indesejada. Não visualizei uma sala específica, mas a ideia universal de uma: o cheiro do marcador, o murmúrio contido dos alunos, o professor de costas, absorto em seu ofício diante do quadro branco. Um gesto tão cotidiano — símbolo da partilha do saber, da confiança implícita que depositamos a cada aula — transformado, num instante, em vulnerabilidade absoluta. Ali, naquele segundo suspenso no tempo, não o som de uma resposta nem o burburinho do intervalo, mas o brilho rápido e frio da lâmina. Imagino o susto, a dor aguda, a incredulidade nos olhos dos presentes, o caos rompendo a frágil paz de um ambiente que deveria ser sagrado.

Pensei no colega desconhecido. No homem que dedica seus dias a iluminar mentes e vê sua segurança estilhaçada pelas mãos de quem deveria orientar. A ferida física, felizmente, não foi grave; ele seria liberado e voltaria ao trabalho na semana seguinte. Uma semana para processar, talvez para tentar remendar a confiança rompida. Mas, e a outra ferida? Aquela que não sangra? A cicatriz invisível do medo que, talvez, o acompanhe toda vez que virar de costas para escrever no quadro? Perguntei-me se eu teria essa mesma coragem.

Na minha escola, o assunto dominou as conversas. Discutimos segurança, dividimos angústias, confessamos medos guardados. Um colega de matemática, pela primeira vez em vinte anos, admitiu sentir receio ao entrar em certas turmas. Essa revelação doeu. Há algo de profundamente simbólico — e cruel — em ser atacado no exato momento em que se ensina. No gesto de confiança que agora parece tingido de ingenuidade. A violência que invade o espaço da educação não fere apenas um professor; atinge a própria ideia de escola como refúgio, revelando-a porosa, vulnerável às mesmas sombras que rondam o mundo lá fora.

Dias depois, ao retornar à minha sala, peguei-me olhando por sobre o ombro enquanto escrevia no quadro. Um reflexo involuntário. Um pequeno trauma adquirido por procuração. Percebi, então, que embora não estivesse no Colégio Dom Bosco naquela terça-feira, algo em mim também fora atingido. Aquele episódio não era um caso isolado. Soava, antes, como um sintoma doloroso de algo maior — uma rachadura na nossa capacidade de diálogo, de cuidar da saúde mental de jovens e educadores.

Enquanto psicólogos e assistentes sociais tentam costurar o tecido esgarçado daquela comunidade escolar, permaneço aqui, remoendo o ocorrido. O quadro branco daquela sala, em São Miguel, talvez já tenha sido limpo. Mas a mancha deixada por aquele gesto — essa não se apaga com um simples apagador. Ela nos interpela. Obriga-nos a olhar além da superfície e perguntar: onde foi que nós, como sociedade, começamos a errar o traço?

Torço para que meu colega desconhecido, ao pegar novamente o pincel de escrever, ainda consiga acreditar que “cada linha vermelha traçada é mais poderosa que qualquer lâmina”. E que todos nós, professores, mesmo marcados por cicatrizes — visíveis ou não — possamos continuar escrevendo histórias de esperança. Porque, apesar da dor, ainda é no quadro que tentamos desenhar um futuro menos violento, mais humano e, quem sabe, um pouco mais justo.


https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2025/04/16/estudante-da-golpe-de-canivete-em-professor-durante-aula.ghtml (Acessado em 16/04/2025)


Com base nas ideias e reflexões apresentadas nesta crônica, aqui estão 5 questões discursivas e simples com enfoque sociológico:


1. Espaço Social e Significado: A crônica descreve a escola como um lugar que deveria ser um "refúgio" e ter uma paz "sagrada". Do ponto de vista sociológico, como a invasão da violência nesse espaço (a sala de aula) afeta o significado social atribuído à escola pela comunidade e, em particular, pelos professores, conforme descrito no texto?

2. Vulnerabilidade e Identidade Profissional: O narrador relata o medo compartilhado entre os colegas e o seu próprio "trauma adquirido por procuração". Explique como um evento de violência direcionado a um membro de um grupo profissional (professores) pode impactar a percepção coletiva de vulnerabilidade e a própria identidade desse grupo na sociedade.

3. Ato Individual como Sintoma Social: O texto sugere que o ataque não é apenas um ato isolado, mas um "sintoma doloroso de algo maior", mencionando "rachadura na nossa capacidade de diálogo, de cuidar da saúde mental". Como a sociologia pode analisar a relação entre um ato individual de violência (como o da estudante) e problemas estruturais ou falhas em processos sociais mais amplos?

4. Simbolismo e Relações Sociais: A crônica enfatiza o simbolismo do professor ser atacado "enquanto escrevia no quadro", um gesto de "confiança implícita". Analise sociologicamente o que esse ato específico (o ataque durante o gesto de ensinar de costas) revela sobre as expectativas, a confiança e a quebra das relações sociais esperadas dentro do ambiente escolar.

5. Coesão Social e Resposta à Crise: Diante do medo e da angústia ("conversas na sala dos professores", "medos guardados"), como a crônica ilustra as formas pelas quais um grupo social busca lidar com uma crise que abala sua segurança e coesão, e como tentam reafirmar seu propósito ("continuar escrevendo histórias de esperança")?

Nenhum comentário: