Do Lado de Cá da Cerca ("A santidade que se ostenta é a que menos se pratica." Autor: William Shakespeare)
Há vizinhos muito inteligentes. Não falo da inteligência brilhante, daquelas que abalam a ciência e mudam o mundo, mas da sabedoria cotidiana que rege as pequenas ações diárias. Eles sabem onde o limite da sua propriedade termina e a minha começa, como se houvesse uma linha invisível de respeito que deve ser preservada a todo custo. Capinam suas terras com régua e compasso, respeitam o espaço e, em cada gesto, parecem mostrar que entendem o valor da boa convivência. Esses são os mestres da ordem, os defensores da moral… ou ao menos dessa parte da moral que se apura apenas na superfície.
Mas, ao lado desse zelo, surge uma contradição escancarada: o lixo. Quando se trata de manter a fachada limpa, eles são primorosos. Porém, no que diz respeito ao que sobra, ao que não interessa mais, a regra parece mudar. O lixo não respeita limites, claro, e tampouco os vizinhos. O braço se estica além da cerca e, de maneira quase invisível, o entulho, a sujeira, o que não presta, encontra abrigo no meu terreno. Não é uma grande quantidade, mas suficiente para criar aquele desconforto sutil, aquela sensação de que o respeito está indo embora, que há uma falha no contrato de convivência.
Esses mesmos vizinhos, que possuem um domínio invejável da disciplina na capina, são os mesmos que, com a bíblia nas mãos e um sorriso sereno no rosto, dirigem-se à igreja aos domingos, com o desejo explícito de conquistar os céus. Batizam-se, comungam e rezam, pedindo perdão, tentando se livrar das imperfeições da carne, buscando a salvação da alma. São figuras de fé, não há dúvida, mas, paradoxalmente, são também figuras de esquecimento — esquecem-se do essencial, daquilo que, de fato, deveria ser purificado antes da alma: a própria ação.
Porque, veja bem, eu não me importaria se o lixo fosse de qualquer outro lugar, se caísse no terreno de alguém que não se importa, que talvez até o recebesse com um sorriso, como quem recebe um presente inesperado. Mas não. O lixo, sempre que se solta do braço do vizinho, encontra seu caminho certo: vai direto ao meu lado da cerca. E, no final, é isso o que mais me incomoda — o símbolo de um desleixo disfarçado de perfeição, de um gesto impuro travestido de santidade.
Eles querem ir para o céu, claro. E, se forem, não vou impedir. Mas, antes disso, eu gostaria que eles soubessem que o céu, às vezes, começa aqui, na terra. Começa no respeito ao espaço do outro, na atenção aos detalhes que parecem insignificantes, mas que no fundo definem nossa convivência. Porque, quando se joga lixo no terreno alheio, por mais invisível que seja o gesto, ele reverbera em quem o recebe. E é na vida cotidiana, nesses pequenos gestos, que medimos o verdadeiro caráter de alguém.
Então, querido vizinho, antes de pensar no céu, talvez seja bom olhar para baixo. Não é necessário muito esforço para manter a terra limpa e o espaço ao redor em ordem. Ao contrário, o trabalho para limpar a alma começa aqui — no chão, no limite da cerca, onde, por um simples gesto, podemos escolher jogar lixo ou respeitar.
E, caso decida seguir para o céu, leve o lixo com você. Quem sabe lá em cima, onde tudo é puro, você possa também aprender a purificar os pequenos gestos que tanto falham por aqui.
Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples que exploram as principais ideias do meu texto:
1. O autor descreve dois tipos de "inteligência" nos vizinhos. Explique a distinção que ele faz entre a "inteligência brilhante" e a "sabedoria cotidiana", utilizando exemplos do texto para ilustrar sua resposta.
2. Apesar da aparente ordem e respeito demonstrados pelos vizinhos em relação aos limites de suas propriedades, o autor aponta para uma "contradição escancarada". Qual é essa contradição e o que ela revela sobre o comportamento social dos vizinhos, segundo o texto?
3. O texto estabelece uma relação entre as práticas religiosas dos vizinhos e suas ações cotidianas, como o ato de jogar lixo no terreno alheio. De que maneira o autor analisa essa relação, e qual crítica social ele parece estar implícita nessa análise?
4. Na perspectiva do autor, qual a importância dos "pequenos gestos" na avaliação do "verdadeiro caráter" de uma pessoa? Utilize o exemplo do lixo jogado na propriedade para fundamentar sua resposta.
5. O autor afirma que "o céu, às vezes, começa aqui, na terra". Explique o significado dessa afirmação dentro do contexto do texto, relacionando-a com a mensagem que o autor busca transmitir sobre a convivência e o respeito entre vizinhos.
Espero que estas questões estimulem a reflexão e a compreensão das complexas dinâmicas sociais presentes no seu texto!
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