Crônica
MULHERES "FABIOLADAS" ("/Ninguém é o dono do que a vida dá/" — Dani Black)
O mundo ergue-se sobre alicerces de conceitos profundamente enraizados, ideias que, como árvores centenárias, fincam suas raízes no solo fértil da tradição. Entre essas concepções persistentes, a noção de posse, especialmente em relação à mulher, projeta-se como uma sombra que atravessa gerações. Numa tarde qualquer, enquanto o sol filtrava seus raios entre os prédios da cidade, avistei um casal em um café – ele, absorto em seu jornal; ela, com o olhar perdido na fumaça da xícara, um traço de melancolia nos lábios. A cena corriqueira abriu caminho para reflexões sobre a liberdade feminina e os laços que, tantas vezes, tentam subjugá-la.
Lembrei-me das histórias da minha avó, narrativas de um tempo em que a mulher era vista como extensão do marido, dona do lar, mas não de si mesma. Um tempo em que o “pertencimento” sobrepunha-se ao próprio ser, onde o amor, que deveria dar asas, transformava-se em correntes. Essa crença ancestral de que a mulher deveria pertencer ao homem, disfarçada sob o manto da utilidade, revelou-se, ao longo dos anos, um fardo sufocante. Embora pintada com cores aparentemente inofensivas, essa narrativa escondia armadilhas cruéis, capazes de transformar vidas em histórias de submissão. A tradição, como um jardim repleto de flores rígidas, perpetuou o mito da exclusividade, convertendo mulheres em propriedades, objetos de controle ou, pior, meros adereços de conveniência.
Nesse contexto, o homem, muitas vezes cego pela mania de “consertar” suas “coisas”, transforma o amor em algo amargo, como absinto, enquanto faz da fidelidade uma espada de dois gumes, ferindo tanto o outro quanto a liberdade que ele próprio pretende proteger. Recordo-me de Fabíola, uma amiga vibrante e dona de uma risada contagiante, que vivenciou na própria pele o impacto dessa dinâmica. Casou-se com um homem que, a princípio, parecia ideal, mas que, aos poucos, transformou o relacionamento em uma gaiola dourada. O controle substituiu a confiança, os horários tornaram-se rígidos, os amigos foram afastados, e Fabíola, outrora um espírito livre, viu-se aprisionada.
Acompanhei sua metamorfose com inquietação. As unhas, antes pintadas com cores vibrantes, passaram a exibir tons neutros, quase apagados. As risadas foram se tornando escassas, os encontros com as amigas, raros. A chama que a definia extinguia-se lentamente, até que, como uma fênix, ela renasceu das cinzas. Um corte de cabelo ousado, um sorriso resgatado das profundezas e a decisão de retomar as rédeas da própria vida marcaram seu retorno à liberdade. A separação foi dolorosa, mas necessária, porque, para voar novamente, era preciso livrar-se das correntes.
Enquanto pensava em Fabíola, lembrei-me de um livro antigo que folheei na biblioteca da minha avó. Ele dedicava páginas e mais páginas ao “pecado” da infidelidade feminina, mas ignorava qualquer menção à figura da esposa de Cristo. Como se a fidelidade fosse uma via de mão única, destinada exclusivamente às mulheres, uma imposição que contrastava com a liberdade masculina. Essa disparidade me levou a questionar: o que, afinal, é fidelidade? Uma promessa proferida diante de um altar? Um contrato firmado em cartório? Ou, quem sabe, um compromisso diário com a verdade e o respeito mútuo?
Acredito que a fidelidade autêntica reside, antes de tudo, na lealdade a si mesmo. É na busca pela própria felicidade, sem aprisionar ou ser aprisionado, que se encontra o verdadeiro sentido da lealdade. A infidelidade, vista como um pecado moral, é, muitas vezes, apenas um sintoma de relações que falham em nutrir a individualidade. Mulheres que rompem com esses pesos – a ansiedade, a culpa – embarcam numa jornada de autodescoberta que desafia as amarras tradicionais.
O casamento, esse consórcio idealizado como eterno, frequentemente se revela uma metamorfose contínua. O lema “até que a morte os separe” muitas vezes prenuncia a morte do próprio eu, deixando claro que não há garantias para a eternidade conjugal. A fidelidade genuína, acredito, pertence somente a Deus e ao próprio ser. Não se trata de defender a licenciosidade, mas de valorizar a liberdade como a essência da felicidade. Shakespeare estava certo ao dizer: “O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”. E, talvez, ser conveniente seja, no fundo, buscar a própria realização.
Ao observar o movimento das ruas, vejo mulheres que, como Fabíola, recuperam o brilho nos olhos e a coragem de trilhar seus próprios caminhos. As unhas coloridas, símbolos de vitalidade, ressurgem como manifestações de liberdade e autoafirmação. E, nessa teia de histórias, percebo que o amor, em sua forma mais pura, não aprisiona, mas liberta. Não controla, mas confia. Não exige, mas oferece. Um amor verdadeiro permite que cada indivíduo voe em seu próprio ritmo, sem receios de perder-se, pois sabe que, no reencontro, haverá ainda mais para compartilhar.
Essa, afinal, é a beleza da vida. Como Raul Seixas tão bem cantou sobre “A Maçã”, a liberdade é um direito inalienável, uma busca constante que nos reconecta à nossa essência mais profunda. E, nesse voo, encontramos não apenas o outro, mas a nós mesmos.
ENCAMINHAMENTO DE PERCEPÇÃO
1. De que forma a cena do casal no café serve como ponto de partida para a reflexão sobre a liberdade feminina no texto?
2. Como a tradição e o conceito de posse influenciam os relacionamentos, segundo o texto, e qual a consequência dessa dinâmica para a mulher?
3. A história de Fabíola é central para a argumentação do texto. Descreva a trajetória dela, desde o casamento até a sua libertação, e explique o significado simbólico da mudança em suas unhas.
4. O texto contrapõe a visão tradicional sobre a infidelidade com uma perspectiva mais ampla sobre a fidelidade. Explique essa contraposição e qual a definição de fidelidade autêntica apresentada.
5. Qual a mensagem central do texto sobre o amor e a liberdade, e como a referência à música “A Maçã”, de Raul Seixas, contribui para reforçar essa mensagem?