"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

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MINHAS PÉROLAS

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Do Lado de Cá da Cerca ("A santidade que se ostenta é a que menos se pratica." Autor: William Shakespeare)

 

Do Lado de Cá da Cerca ("A santidade que se ostenta é a que menos se pratica." Autor: William Shakespeare)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Há vizinhos muito inteligentes. Não falo da inteligência brilhante, daquelas que abalam a ciência e mudam o mundo, mas da sabedoria cotidiana que rege as pequenas ações diárias. Eles sabem onde o limite da sua propriedade termina e a minha começa, como se houvesse uma linha invisível de respeito que deve ser preservada a todo custo. Capinam suas terras com régua e compasso, respeitam o espaço e, em cada gesto, parecem mostrar que entendem o valor da boa convivência. Esses são os mestres da ordem, os defensores da moral… ou ao menos dessa parte da moral que se apura apenas na superfície.

Mas, ao lado desse zelo, surge uma contradição escancarada: o lixo. Quando se trata de manter a fachada limpa, eles são primorosos. Porém, no que diz respeito ao que sobra, ao que não interessa mais, a regra parece mudar. O lixo não respeita limites, claro, e tampouco os vizinhos. O braço se estica além da cerca e, de maneira quase invisível, o entulho, a sujeira, o que não presta, encontra abrigo no meu terreno. Não é uma grande quantidade, mas suficiente para criar aquele desconforto sutil, aquela sensação de que o respeito está indo embora, que há uma falha no contrato de convivência.

Esses mesmos vizinhos, que possuem um domínio invejável da disciplina na capina, são os mesmos que, com a bíblia nas mãos e um sorriso sereno no rosto, dirigem-se à igreja aos domingos, com o desejo explícito de conquistar os céus. Batizam-se, comungam e rezam, pedindo perdão, tentando se livrar das imperfeições da carne, buscando a salvação da alma. São figuras de fé, não há dúvida, mas, paradoxalmente, são também figuras de esquecimento — esquecem-se do essencial, daquilo que, de fato, deveria ser purificado antes da alma: a própria ação.

Porque, veja bem, eu não me importaria se o lixo fosse de qualquer outro lugar, se caísse no terreno de alguém que não se importa, que talvez até o recebesse com um sorriso, como quem recebe um presente inesperado. Mas não. O lixo, sempre que se solta do braço do vizinho, encontra seu caminho certo: vai direto ao meu lado da cerca. E, no final, é isso o que mais me incomoda — o símbolo de um desleixo disfarçado de perfeição, de um gesto impuro travestido de santidade.

Eles querem ir para o céu, claro. E, se forem, não vou impedir. Mas, antes disso, eu gostaria que eles soubessem que o céu, às vezes, começa aqui, na terra. Começa no respeito ao espaço do outro, na atenção aos detalhes que parecem insignificantes, mas que no fundo definem nossa convivência. Porque, quando se joga lixo no terreno alheio, por mais invisível que seja o gesto, ele reverbera em quem o recebe. E é na vida cotidiana, nesses pequenos gestos, que medimos o verdadeiro caráter de alguém.

Então, querido vizinho, antes de pensar no céu, talvez seja bom olhar para baixo. Não é necessário muito esforço para manter a terra limpa e o espaço ao redor em ordem. Ao contrário, o trabalho para limpar a alma começa aqui — no chão, no limite da cerca, onde, por um simples gesto, podemos escolher jogar lixo ou respeitar.

E, caso decida seguir para o céu, leve o lixo com você. Quem sabe lá em cima, onde tudo é puro, você possa também aprender a purificar os pequenos gestos que tanto falham por aqui.


Como um bom professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples que exploram as principais ideias do meu texto:


1. O autor descreve dois tipos de "inteligência" nos vizinhos. Explique a distinção que ele faz entre a "inteligência brilhante" e a "sabedoria cotidiana", utilizando exemplos do texto para ilustrar sua resposta.

2. Apesar da aparente ordem e respeito demonstrados pelos vizinhos em relação aos limites de suas propriedades, o autor aponta para uma "contradição escancarada". Qual é essa contradição e o que ela revela sobre o comportamento social dos vizinhos, segundo o texto?

3. O texto estabelece uma relação entre as práticas religiosas dos vizinhos e suas ações cotidianas, como o ato de jogar lixo no terreno alheio. De que maneira o autor analisa essa relação, e qual crítica social ele parece estar implícita nessa análise?

4. Na perspectiva do autor, qual a importância dos "pequenos gestos" na avaliação do "verdadeiro caráter" de uma pessoa? Utilize o exemplo do lixo jogado na propriedade para fundamentar sua resposta.

5. O autor afirma que "o céu, às vezes, começa aqui, na terra". Explique o significado dessa afirmação dentro do contexto do texto, relacionando-a com a mensagem que o autor busca transmitir sobre a convivência e o respeito entre vizinhos.

Espero que estas questões estimulem a reflexão e a compreensão das complexas dinâmicas sociais presentes no seu texto!

quarta-feira, 16 de abril de 2025

A Aula Que me Cortou por Dentro ("No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho" — Carlos Drummond de Andrade)

 

A Aula Que me Cortou por Dentro ("No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho" — Carlos Drummond de Andrade)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A notícia me alcançou na sala dos professores, entre pilhas de provas por corrigir. Veio pelo rádio, na voz de um locutor que, com sua frieza jornalística, destoava do calafrio que me subiu pela espinha: um colega de profissão, em São Miguel do Araguaia, havia sido atacado pelas costas. Com um canivete. Por uma aluna. As palavras flutuaram no ar antes de afundarem como pedras no estômago. Aquele nome de cidade, até então apenas um ponto distante no mapa de Goiás, tornou-se, de súbito, o epicentro de um terremoto íntimo — um drama que senti ecoar em qualquer sala de aula. Inclusive na minha.

Ao longo do dia, os detalhes emergentes tornavam a história ainda mais sombria e perturbadora: a idade da agressora, quinze anos; a menção a um desentendimento anterior, soando como um eco fraco e insuficiente para justificar tamanha violência; o cálculo frio para burlar a segurança, escondendo a arma no muro e recuperando-a após passar pelo detector de metais.

Fechei os olhos e a cena se desenhou, indesejada. Não visualizei uma sala específica, mas a ideia universal de uma: o cheiro do marcador, o murmúrio contido dos alunos, o professor de costas, absorto em seu ofício diante do quadro branco. Um gesto tão cotidiano — símbolo da partilha do saber, da confiança implícita que depositamos a cada aula — transformado, num instante, em vulnerabilidade absoluta. Ali, naquele segundo suspenso no tempo, não o som de uma resposta nem o burburinho do intervalo, mas o brilho rápido e frio da lâmina. Imagino o susto, a dor aguda, a incredulidade nos olhos dos presentes, o caos rompendo a frágil paz de um ambiente que deveria ser sagrado.

Pensei no colega desconhecido. No homem que dedica seus dias a iluminar mentes e vê sua segurança estilhaçada pelas mãos de quem deveria orientar. A ferida física, felizmente, não foi grave; ele seria liberado e voltaria ao trabalho na semana seguinte. Uma semana para processar, talvez para tentar remendar a confiança rompida. Mas, e a outra ferida? Aquela que não sangra? A cicatriz invisível do medo que, talvez, o acompanhe toda vez que virar de costas para escrever no quadro? Perguntei-me se eu teria essa mesma coragem.

Na minha escola, o assunto dominou as conversas. Discutimos segurança, dividimos angústias, confessamos medos guardados. Um colega de matemática, pela primeira vez em vinte anos, admitiu sentir receio ao entrar em certas turmas. Essa revelação doeu. Há algo de profundamente simbólico — e cruel — em ser atacado no exato momento em que se ensina. No gesto de confiança que agora parece tingido de ingenuidade. A violência que invade o espaço da educação não fere apenas um professor; atinge a própria ideia de escola como refúgio, revelando-a porosa, vulnerável às mesmas sombras que rondam o mundo lá fora.

Dias depois, ao retornar à minha sala, peguei-me olhando por sobre o ombro enquanto escrevia no quadro. Um reflexo involuntário. Um pequeno trauma adquirido por procuração. Percebi, então, que embora não estivesse no Colégio Dom Bosco naquela terça-feira, algo em mim também fora atingido. Aquele episódio não era um caso isolado. Soava, antes, como um sintoma doloroso de algo maior — uma rachadura na nossa capacidade de diálogo, de cuidar da saúde mental de jovens e educadores.

Enquanto psicólogos e assistentes sociais tentam costurar o tecido esgarçado daquela comunidade escolar, permaneço aqui, remoendo o ocorrido. O quadro branco daquela sala, em São Miguel, talvez já tenha sido limpo. Mas a mancha deixada por aquele gesto — essa não se apaga com um simples apagador. Ela nos interpela. Obriga-nos a olhar além da superfície e perguntar: onde foi que nós, como sociedade, começamos a errar o traço?

Torço para que meu colega desconhecido, ao pegar novamente o pincel de escrever, ainda consiga acreditar que “cada linha vermelha traçada é mais poderosa que qualquer lâmina”. E que todos nós, professores, mesmo marcados por cicatrizes — visíveis ou não — possamos continuar escrevendo histórias de esperança. Porque, apesar da dor, ainda é no quadro que tentamos desenhar um futuro menos violento, mais humano e, quem sabe, um pouco mais justo.


https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2025/04/16/estudante-da-golpe-de-canivete-em-professor-durante-aula.ghtml (Acessado em 16/04/2025)


Com base nas ideias e reflexões apresentadas nesta crônica, aqui estão 5 questões discursivas e simples com enfoque sociológico:


1. Espaço Social e Significado: A crônica descreve a escola como um lugar que deveria ser um "refúgio" e ter uma paz "sagrada". Do ponto de vista sociológico, como a invasão da violência nesse espaço (a sala de aula) afeta o significado social atribuído à escola pela comunidade e, em particular, pelos professores, conforme descrito no texto?

2. Vulnerabilidade e Identidade Profissional: O narrador relata o medo compartilhado entre os colegas e o seu próprio "trauma adquirido por procuração". Explique como um evento de violência direcionado a um membro de um grupo profissional (professores) pode impactar a percepção coletiva de vulnerabilidade e a própria identidade desse grupo na sociedade.

3. Ato Individual como Sintoma Social: O texto sugere que o ataque não é apenas um ato isolado, mas um "sintoma doloroso de algo maior", mencionando "rachadura na nossa capacidade de diálogo, de cuidar da saúde mental". Como a sociologia pode analisar a relação entre um ato individual de violência (como o da estudante) e problemas estruturais ou falhas em processos sociais mais amplos?

4. Simbolismo e Relações Sociais: A crônica enfatiza o simbolismo do professor ser atacado "enquanto escrevia no quadro", um gesto de "confiança implícita". Analise sociologicamente o que esse ato específico (o ataque durante o gesto de ensinar de costas) revela sobre as expectativas, a confiança e a quebra das relações sociais esperadas dentro do ambiente escolar.

5. Coesão Social e Resposta à Crise: Diante do medo e da angústia ("conversas na sala dos professores", "medos guardados"), como a crônica ilustra as formas pelas quais um grupo social busca lidar com uma crise que abala sua segurança e coesão, e como tentam reafirmar seu propósito ("continuar escrevendo histórias de esperança")?

sábado, 12 de abril de 2025

A Escola Silenciada ("Primeiro estranha-se, depois entranha-se." Autor: Fernando Pessoa)

 

A Escola Silenciada ("Primeiro estranha-se, depois entranha-se." Autor: Fernando Pessoa)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Foi numa manhã comum de quarta-feira que percebi: a escola estava perdendo a voz. Não a voz literal — aquela que ecoa pelos corredores e quadros brancos —, mas a outra: a que forma, contesta, ensina e ousa dizer não. Essa voz, que um dia foi bússola, agora me soava como um sussurro abafado por aplausos protocolares e carimbos de satisfação.


A primeira pista surgiu numa reunião de pais. Um encontro para alinhamento de expectativas, diziam. Mas logo se revelou um tribunal informal. A cada fala do professor, um julgamento. A cada proposta pedagógica, uma objeção. “Acho que seria melhor mudar o conteúdo de História para algo menos... polarizador”, sugeriu um pai, com o sorriso de quem já trazia o veredito. A professora retribuiu o sorriso — não por concordância, mas por cansaço.


Foi então que percebi: o papel do docente vinha sendo reescrito — e não por ele. De formador de pensamento, passara a prestador de serviço. Bastava um feedback negativo no grupo de WhatsApp para que a direção o chamasse “só para conversar”. E a tal conversa, invariavelmente, era um eufemismo para: “veja se agrada mais os pais, está bem?”. A escola tornou-se um palco em que os professores atuam sem roteiro, tentando satisfazer uma plateia exigente e volúvel, que aplaude apenas o que lhe convém.


Lembro de uma colega recém-chegada que ousou propor um trabalho sobre desigualdade social. Em três dias, já enfrentava uma enxurrada de queixas. “Meu filho chegou triste em casa, professor não é terapeuta”, disseram. Em uma semana, o tema foi retirado da grade. Ela continuou, claro. Mas um pouco mais calada, um pouco mais retraída. Assim como todos nós.


O mais irônico é que, por trás de tantos discursos sobre autonomia, respeito e desenvolvimento integral, instalou-se uma pedagogia da conveniência. Educar, agora, é agradar. Questionar tornou-se arriscado. Reprovar, então, virou pecado. O aluno aprende cedo que basta uma reclamação estratégica para que o mundo se curve ao seu favor. E aprende rápido.


Outro dia, uma aluna me interrompeu no meio da explicação para dizer que não prestava atenção em minha aula, porque não concordava com nada que eu dizia. Quando tentei argumentar, ele avisou que sua mãe já estava “falando com a coordenação”. Saí da sala com um gosto amargo na boca — não era frustração, era impotência. Não se tratava mais de ensinar, mas de sobreviver ao dia sem desagradar demais.


Aos poucos, compreendi: a escola que escuta demais, sem critério, vai se esquecendo de ensinar. Cada vez que silencia uma orientação em nome do agrado, renuncia um pouco de si mesma. E a cada concessão sem debate, abre espaço para um vazio onde deveria haver reflexão.


Hoje, quando olho para os quadros repletos de fórmulas e palavras bonitas, me pergunto quantas delas ainda dizem algo verdadeiro. Porque educar não é entreter. Não é agradar. Não é evitar o choro, nem apagar as diferenças. Educar é, muitas vezes, frustrar com propósito. Fazer do incômodo um degrau. E isso exige coragem.


Mas a coragem anda sumida. Talvez esteja soterrada sob pilhas de avaliações externas, protocolos de conduta e relatórios de desempenho. Talvez tenha sido silenciada pelo medo de retaliações. Ou, quem sabe, ainda esteja ali, viva — esperando o tempo em que a escola volte a ser escola. Não uma loja de agrados, nem um balcão de queixas.


De tudo isso, fica uma certeza: a verdadeira educação não busca palmas fáceis. Ela busca transformação. E transformar, meu caro, nunca foi tarefa para os que temem desagradar.


Olá! Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples com base nas ideias principais do texto:


1. O autor descreve a perda da "voz" da escola, distinguindo-a da voz literal. Explique o que o autor entende por essa "voz" pedagógica e quais elementos do texto indicam que essa voz está sendo silenciada no ambiente escolar contemporâneo.

2. O texto apresenta a reunião de pais como um "tribunal informal". Analise essa metáfora, identificando os papéis sociais que pais e professores parecem assumir nessa dinâmica, e discuta como essa situação pode afetar a autonomia e a prática pedagógica dos educadores.

3. O autor argumenta que o papel do docente está sendo redefinido, passando de "formador de pensamento" a "prestador de serviço". Quais exemplos concretos do texto ilustram essa transformação? Discuta as implicações dessa mudança para a qualidade da educação e para a relação entre professores, alunos e pais.

4. A experiência da professora que propôs o trabalho sobre desigualdade social revela tensões entre a liberdade pedagógica e as expectativas dos pais. Sob uma perspectiva sociológica, como você analisa esse episódio? Quais são os possíveis impactos da supressão de temas relevantes para a formação crítica dos alunos?

5. O autor conclui que a "verdadeira educação não busca palmas fáceis" e que "transformar nunca foi tarefa para os que temem desagradar". Explique essa afirmação à luz dos exemplos apresentados no texto. Qual a importância da "coragem" mencionada pelo autor no contexto da prática educativa e da resistência às pressões externas?

Estilhaços na Noite de Santa Rosa ("Não é o sofrimento das crianças que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica esse sofrimento." — Albert Camus [em "A Peste"])

 

Estilhaços na Noite de Santa Rosa ("Não é o sofrimento das crianças que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica esse sofrimento." — Albert Camus [em "A Peste"])

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Há noites em Campina Grande que descem mansas, quase preguiçosas, embaladas pela brisa morna que sobe da Borborema. A gente se acostuma com essa cadência — o burburinho distante dos carros, as luzes que piscam como estrelas caídas no asfalto. A gente quase acredita que a tranquilidade é a regra, um direito adquirido pela simples passagem das horas. Mas foi numa dessas noites — a de uma quarta-feira — que o véu da normalidade se rasgou com a violência de um raio inesperado.

Eu não estava lá, na Escola Estadual Antônio Oliveira, no bairro de Santa Rosa. E provavelmente ninguém que lê estas linhas estava. Mas a notícia chegou — primeiro como rumor, depois como uma confirmação gelada que nos atinge como estilhaços: um jovem, aluno da própria escola, tentou assaltar o vigilante ali dentro. Dentro dos muros que deveriam ser santuário do saber, da descoberta, do futuro. O impensável não apenas aconteceu, como deixou sua marca em sangue e medo.

Imagino a cena — não pelos vídeos frios das câmeras de segurança que circularam depois, mas pela ótica do coração apertado. A tensão no ar, o silêncio pesado que antecede a tempestade. O vigilante — um homem talvez acostumado à solidão das horas noturnas — guardando mais do que o patrimônio físico: guardando, talvez, a ilusão de segurança que todos nós almejamos. E, de repente, a invasão. Não de conhecimento ou curiosidade juvenil, mas da sombra, armada com a urgência desesperada do crime. Uma espingarda. Uma faca. Objetos que cortam, que ferem, que simbolizam a fratura exposta de uma sociedade em que um menino de dezenove anos cruza essa linha — e o faz dentro da própria escola.

O confronto. Rápido. Brutal. O som dos disparos ecoando no pátio vazio, talvez ricocheteando nas paredes onde, durante o dia, ressoam risadas e lições. O resultado: o jovem assaltante — o aluno — caído. Ferido não só no corpo, mas na trajetória que ali se desviava, talvez para sempre. Levado às pressas ao Trauma, para a sala vermelha — esse limbo entre a vida e o que poderia ter sido. O outro, o comparsa, engolido pela noite — uma pergunta sem resposta correndo pelas ruas.

Fico pensando nesse rapaz de dezenove anos. O que o levou até ali? Que ausências, que desesperos, que descaminhos o fizeram trocar o caderno pela arma, a sala de aula pelo cenário de um assalto fadado ao fracasso e à tragédia? Não há respostas fáceis. E a crônica não existe para julgar, mas para tatear as feridas abertas da nossa convivência. A escola — palco da esperança — transformou-se em palco de um conflito que espelha tantas outras batalhas silenciosas, travadas diariamente.

E o vigilante? O homem que reagiu — que cumpriu seu dever, talvez. Mas a que custo? Que peso carregará em sua memória? A noite, que deveria ser apenas mais uma, tornou-se uma cicatriz.

Hoje, as aulas seguiram — dizem as notas oficiais. A vida tenta retomar seu curso, como a grama que insiste em crescer entre as pedras. Mas algo se quebrou naquela noite em Santa Rosa. Não foi só a tentativa de roubo. Não foi só o corpo baleado. Foi um pouco da nossa inocência coletiva — da nossa crença de que certos espaços estariam imunes à barbárie.

Os estilhaços daquela noite voaram longe. Atingiram não apenas os envolvidos diretos, mas todos nós que habitamos esta cidade e sonhamos com um futuro menos áspero para nossos jovens. Resta a pergunta, pairando no ar junto com a poeira das investigações: como juntamos os cacos? Como evitamos que a escola — berço de tantos amanhãs — continue sendo palco de noites assim, tão dolorosamente presentes?

A resposta, talvez, não esteja apenas na polícia ou nos boletins médicos, mas em algo mais profundo — que precisamos, urgentemente, reencontrar dentro de nós e da nossa comunidade.


Como um professor de sociologia, analisando as ricas reflexões presentes na minha crônica, elaboro as seguintes 5 questões discursivas simples, focadas nos aspectos sociais abordados:


1. Ruptura da Normalidade e Percepção de Segurança: A crônica inicia descrevendo uma sensação de tranquilidade habitual que é subitamente quebrada ("o véu da normalidade se rasgou"). Do ponto de vista sociológico, como a ocorrência de um ato de violência inesperado em um local familiar (como a escola) afeta a percepção coletiva de segurança e a confiança na ordem social cotidiana?

2. A Escola como Espaço Social Simbólico: O texto enfatiza o significado da escola como "santuário do saber" e "palco da esperança". Analise sociologicamente o impacto da violência quando ela invade um espaço com uma carga simbólica tão forte para a socialização e o futuro dos jovens. O que esse evento revela sobre as contradições presentes na sociedade?

3. Determinantes Sociais da Violência Juvenil: Ao refletir sobre o jovem aluno, o cronista questiona: "Que ausências, que desesperos, que descaminhos o fizeram trocar o caderno pela arma?". Discuta, com base nessa reflexão, como fatores sociais (ex: desigualdade, falta de oportunidades, falhas institucionais, etc.) podem influenciar a trajetória de jovens e sua possível relação com a criminalidade.

4. Impacto Coletivo e Coesão Social: A crônica menciona que os "estilhaços daquela noite voaram longe", afetando a "inocência coletiva". Explique como um evento traumático específico, mesmo envolvendo diretamente poucas pessoas, pode gerar um impacto social mais amplo, abalando a coesão e exigindo uma resposta ou reflexão da comunidade ("como juntamos os cacos?").

5. Respostas Sociais à Violência: O texto sugere que as soluções para problemas como este vão além das respostas institucionais imediatas (polícia, hospital), apontando para a necessidade de "algo mais profundo" na comunidade. Que tipo de respostas sociais mais profundas a crônica parece sugerir como necessárias para lidar com as causas e consequências da violência, especialmente envolvendo jovens e o ambiente escolar?

domingo, 6 de abril de 2025

Cansados, mas não do que pensam ("O cansaço do corpo não é nada comparado ao cansaço da alma." - Clarice Lispector)

 


 

Crônica

Cansados, mas não do que pensam ("O cansaço do corpo não é nada comparado ao cansaço da alma." - Clarice Lispector)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Março de 2025. O cansaço que outrora nos alcançava apenas em outubro, como prenúncio do esgotamento ao fim do ano letivo, já se instalara entre nós, professores, com a força inesperada de uma tempestade. A manhã outonal, com suas folhas em espiral descendente, anunciava mais um dia que, embora envolto na aparência da normalidade, carregava um peso incomum — um fardo que nem o café forte, tampouco a promessa de descanso dominical, conseguia aliviar.

Ao cruzar o limiar da sala dos professores, pairava no ar a notícia da aposentadoria precoce de Marcelina — densa como a fumaça de um incêndio mal contido. Seus olhos, antes vivos e vibrantes, agora refletiam uma opacidade triste, marca de anos de dedicação exaustiva. Ela era apenas mais um nome a engrossar a alarmante estatística de colegas que, mesmo diante da redução salarial, preferiam abandonar o campo de batalha da educação.

Na sala de aula, o cenário se repetia: um calor sufocante esmagava cinquenta alunos em um espaço cada vez mais reduzido. As janelas, escassas e mal cuidadas, ofereciam alívio irrisório. As carteiras, riscadas com a tinta da frustração silenciosa, contavam histórias que jamais seriam registradas nos boletins. E nós, ali, persistíamos — tentando semear conhecimento num solo ressecado, onde o caos silencioso já se tornara rotina.

É fundamental reafirmar: amamos ensinar. Essa é a força que nos move, a razão pela qual resistimos — apesar de tudo. A exaustão que nos consome não vem da sala de aula, da troca com os alunos, do brilho nos olhos ao descobrir um novo conceito. O desgaste nasce da burocracia sufocante, dos relatórios estéreis que consomem nosso tempo, das tarefas repetitivas que nos afastam do planejamento cuidadoso, da correção atenta, do olhar individualizado que cada estudante merece. Pagam-nos por oito aulas, mas cobram vinte. E não contabilizam o trabalho invisível que atravessa os muros da escola, invade nossos lares, ocupa nossos fins de semana.

Mais desolador que a sobrecarga é o abandono. A ausência gritante de reconhecimento. Já senti na pele a violência — física e verbal — dentro da sala. Já vi colegas desmoronarem em lágrimas após ameaças. E ainda ouvimos, como punhal, a acusação de sermos os únicos responsáveis pelo fracasso escolar, como se tivéssemos o poder de converter em milagre pedagógico a complexidade de um abandono social estruturado.

Inevitavelmente, surge a pergunta: "por que não mudar de profissão?" Talvez porque, se todos os que ainda acreditam cederem ao cansaço, o que restará? Somos nós, com anos de estudo e formação rigorosa, que ainda sustentamos a frágil estrutura da educação, agarrados a um fio obstinado de esperança. Como bem respondeu um colega, quando questionado por uma mãe: "Se todos os médicos desistissem de clinicar porque os hospitais estão sucateados, quem cuidaria dos doentes?"

A verdade incômoda é que não estamos exaustos de ensinar — estamos exauridos de tudo que nos impede de fazê-lo com dignidade. Cansamos de educar filhos que não receberam os alicerces mínimos, de preencher formulários que parecem sem propósito, de conviver com a violência que ronda nossas salas e, ainda assim, carregar a culpa por cada aprendizado não alcançado — como se estivéssemos à frente de uma equação que ignora todas as variáveis.

Enquanto a sociedade não compreender que valorizar a educação é, antes de tudo, valorizar quem educa, continuaremos assistindo ao êxodo silencioso de profissionais como Marcelina — que preferem a incerteza da aposentadoria precoce ao desgaste de permanecer num sistema que suga sua energia e destrói sua paixão.

E assim seguimos, resistindo em março com a mesma fadiga de outubro, tentando reacender, a cada manhã, a chama da vocação que teimam em apagar. Porque, no fundo, não estamos em lados opostos. Estamos todos imersos nesta complexa jornada chamada "educação" — mesmo que, por vezes, a solidão da trincheira nos faça duvidar se alguém realmente se importa com a nossa luta.


Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseando-me nas ideias principais do texto apresentado:


1. A crônica descreve a exaustão dos professores em março de 2025, comparando-a ao cansaço de outubro. Sob uma perspectiva sociológica, quais fatores estruturais e conjunturais do sistema educacional brasileiro podem contribuir para esse desgaste precoce dos profissionais da educação?

2. O autor menciona a sobrecarga de trabalho dos professores, que vai além das horas em sala de aula, incluindo burocracia e atividades não remuneradas. Como a sociologia do trabalho analisa a divisão do trabalho e as condições laborais na profissão de professor, e quais as possíveis consequências dessa sobrecarga para a saúde e a qualidade do ensino?

3. A narrativa aborda a falta de reconhecimento e o sentimento de abandono vivenciado pelos professores, além da injusta culpabilização pelo fracasso escolar. De que maneira a sociologia da educação pode explicar a posição social e o status da profissão docente na sociedade brasileira, e como essa percepção social impacta o trabalho e a motivação dos professores?

4. O texto alude a um ambiente escolar desafiador, com salas superlotadas e até mesmo relatos de violência. Como a sociologia pode analisar as dinâmicas sociais dentro da escola, considerando fatores como a infraestrutura, o número de alunos por turma e as relações de poder entre os diferentes atores (professores, alunos, gestão)?

5. Na conclusão, o autor apela para a necessidade de valorização da educação e dos professores pela sociedade. Qual a importância da valorização social da educação para o desenvolvimento de uma sociedade, segundo a sociologia? Que mecanismos sociais e políticos poderiam ser mobilizados para promover essa valorização?