"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

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MINHAS PÉROLAS

domingo, 21 de agosto de 2022

O QUE SE ENSINA, APRENDE-SE! ("Quem ensina aprende ao ensinar. E quem aprende ensina ao aprender". — Paulo Freire Pedagogia da Autonomia.)

 


O QUE SE ENSINA, APRENDE-SE! ("Quem ensina aprende ao ensinar. E quem aprende ensina ao aprender". — Paulo Freire Pedagogia da Autonomia.)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

No "velho normal", ser professor era vocação. Hoje, o ofício parece ter se tornado a última opção, acessível a qualquer um que tenha concluído um curso superior. Como afirma Flavines Rebolo Lapo, "se o professor não consegue outra atividade rentável, que garanta a sua sobrevivência e a de sua família, ele dificilmente deixará definitivamente o trabalho, por mais insatisfeito que possa estar". Assim, a sala de aula se torna refúgio para o advogado que não passou na OAB, o médico que não pode ver sangue, o engenheiro civil reprovado pelo mestre de obras, e tantos outros.

Essa realidade revela um ciclo de frustrações profissionais que deságua na escola, transformando-a em um depósito de carreiras mal resolvidas. O problema não está apenas em quem chega, mas na forma como o sistema os acolhe sem critério, nivelando a docência por baixo. Com isso, a autoridade do professor é corroída, não pelo esforço de ensinar, mas pela falta de reconhecimento de sua legitimidade. Nesse contexto, a pedagogia de Paulo Freire — que buscava a libertação — contrasta com um ensino acorrentado por improvisos e paliativos, incapaz de garantir a dignidade do mestre ou o compromisso do aprendiz.

Essa "lambança" sistêmica ensinou aos alunos que comportar-se ou fazer as atividades é um favor. Certo dia, uma aluna me pediu R$ 10,00 para assistir à aula em silêncio. Ela certamente pensou que meu sofrimento por vê-los bagunçar teria um preço, ou talvez tenha sido condicionada a pensar assim, de tanto receber presentes sem merecimento. A atitude se repetiu: outro aluno propôs que, se eu lhe pagasse o lanche, ele ficaria quieto. Essas propostas revelaram que, de tanto implorarem por atenção e bom comportamento, os alunos aprenderam a usar a própria conduta como moeda de troca, retaliando o sistema ao atrapalhar aulas e depredar o patrimônio público.

Afinal, quem precisa de uma boa aula? O professor, para garantir seu "ganha-pão" e manter o emprego, ou o aluno? Paulo Freire já ressuscitou, e eu não o vi?


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Com base no texto que discute temas tão relevantes para a Sociologia da Educação, preparei cinco questões discursivas e simples para aprofundarmos a reflexão.


1 - O texto afirma que o professorado tem se tornado um "depósito de restos de carreiras mal resolvidas". Discuta como a desvalorização da profissão docente e a falta de critérios de seleção podem afetar a autoridade e a legitimidade do professor em sala de aula.

2 - A crônica relata uma situação em que alunos pedem dinheiro ou favores para se comportarem. Analise esse comportamento a partir da Sociologia, abordando como a educação pode ser vista como uma mercadoria ou uma moeda de troca pelos estudantes.

3 - O autor menciona que a pedagogia de Paulo Freire visava "libertar", enquanto a situação atual do ensino estaria "acorrentada por improvisos e paliativos". Explique como os conceitos de "libertação" e "opressão", na visão freiriana, se relacionam com as dinâmicas de poder e com a falta de dignidade no ambiente escolar, conforme descrito no texto.

4 - O texto sugere que a "lambança" do sistema ensinou aos alunos que se comportar é um "favor prestado ao professor". Discorra sobre como essa lógica pode impactar a socialização dos estudantes, modificando suas noções de dever, responsabilidade e respeito pelas regras sociais.

5 - A frase final, "Quem precisa de uma boa aula? (...) é o professor (...) ou o aluno?", levanta um questionamento sobre o papel de cada um no processo de ensino-aprendizagem. Reflita sobre essa pergunta, considerando os diferentes capitais (social, cultural e econômico) envolvidos na educação e como eles podem influenciar o engajamento de professores e alunos.

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sábado, 20 de agosto de 2022

O PRAZER DA DISPERSÃO IRRESPONSÁVEL ("Se escolheres o prazer, conscientiza-te que atrás dele há alguém que só te trará atribulações e arrependimento. — Leonardo da Vinci)

 


O PRAZER DA DISPERSÃO IRRESPONSÁVEL ("Se escolheres o prazer, conscientiza-te que atrás dele há alguém que só te trará atribulações e arrependimento. — Leonardo da Vinci)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

O aluno treinado em "live" talvez nunca perca o vício, afinal, foi imerso no prazer da dispersão, de estudar deitado e mastigando algo. A prática de "selecionar, copiar e colar" se tornou um hábito corriqueiro. O sedentarismo e o sobrepeso também contribuem, mantendo o estudante o tempo todo no conforto de sua casa. E nesse ambiente, há sempre uma aba para ser fechada, uma nova distração para ser alimentada.

Atrás da "telinha", o aluno tem poder para assumir a imagem que quiser, seja inventando uma nova versão de si ou expressando a própria identidade. Ele pode vestir as máscaras que julgar mais convenientes e sustentar a narrativa que lhe for mais agradável. Uma máscara pode substituir a outra, ou simplesmente servir para confundir. E tudo isso é premiado pela aprovação automática.

Mas não precisamos aceitar essa nova realidade como uma sentença definitiva. Se existe o vício, também pode haver reeducação. O primeiro passo seria resgatar a disciplina que o espaço físico da escola impunha: horários bem definidos, câmeras abertas e interações que aproximem, em vez de distrair. A tecnologia, quando bem conduzida, pode deixar de ser uma fuga e voltar a ser uma ponte.

É necessário criar estratégias híbridas que valorizem o encontro humano e, ao mesmo tempo, aproveitem o alcance da tela, sem permitir que ela se transforme em uma máscara. Só assim o aluno aprenderá a habitar o ambiente digital sem se perder nele.

É pouco provável o retorno do "velho normal". A deliciosa e ilusória sensação de dever cumprido, sem resultados substanciais, ainda perdurará por muito tempo.


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Como um professor de Sociologia, preparei 5 questões discursivas simples para que você possa aprofundar a discussão sobre o texto e as ideias que ele apresenta.


1 - O texto menciona que o aluno "atrás da 'telinha', tem poder para assumir a imagem que quiser". Discorra sobre como a tecnologia pode influenciar a construção da identidade e as interações sociais, tanto no ambiente virtual quanto no físico.

2 - A partir da crônica, discuta o papel da escola como instituição social na imposição de disciplina e na mediação das relações humanas. De que forma a modalidade de ensino à distância desafia ou modifica essa função tradicional?

3 - O autor fala sobre a "aprovação automática" e a "sensação de dever cumprido, sem resultados substanciais". Analise essa crítica sob a perspectiva da Sociologia do Trabalho e do mérito. Quais seriam as consequências sociais de uma formação que não valoriza o esforço e a profundidade?

4 - O texto sugere que as "estratégias híbridas" podem ser a solução. Comente, com base em seus conhecimentos, como a sociedade pode equilibrar o uso da tecnologia (vista como "ponte") e a necessidade de interações humanas diretas para o desenvolvimento educacional e social.

5 - Reflita sobre a expressão "vício da 'telinha'". Do ponto de vista sociológico, como a dispersão e a busca por conforto no ambiente digital podem ser entendidas como respostas às pressões e demandas da sociedade contemporânea?

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O BEM E O MAL COMPARTILHADOS ("A maldade humana tem apenas uma motivação: a busca insana pela superioridade." — Lúcio Kwayela)

 


O BEM E O MAL COMPARTILHADOS ("A maldade humana tem apenas uma motivação: a busca insana pela superioridade." — Lúcio Kwayela)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Prezados alunos que me veem como um obstáculo, devo confessar que é simples me tirar do caminho: basta que não haja mais alunos, pois sem vocês, não há professor. Contudo, percebo que, em vez de me ignorarem, vocês me atacam. Falam mal de mim e inventam denúncias para esse fim, o que apenas me entristece e alegra aqueles que torcem contra mim. Outros, mais sutis, me elogiam em público, fingindo apoio, mas esse falso suporte só desperta o ciúme dos colegas. Eles, por sua vez, conspiram e lançam sombras até me excluírem do convívio. A discriminação é, afinal, a prova mais viva da maldade instalada. Meu problema é simples, embora solitário: "consigo ver o anzol, enquanto vocês ainda se distraem com a isca".

As aulas gratuitas oferecidas pelo Estado deveriam despertar gratidão, afinal, o professor, como funcionário do povo, sustenta-as com sua voz e seu tempo. No entanto, a sociedade o reduz à condição de assalariado, como se seu salário anulasse o valor de seu serviço. Curiosamente, o governador, também pago com dinheiro público, é aplaudido e eleito como um benfeitor.

Esse paradoxo não se restringe ao professor. Médicos, policiais e garis são igualmente alvos fáceis de críticas, como se a remuneração de seus ofícios anulasse o impacto de suas ações. Esquecemos que a dignidade de um trabalho não está no contracheque, mas no serviço que constrói a cidade, preserva a vida e protege a sociedade. Enquanto isso, os políticos, igualmente sustentados pelo erário, são tratados como salvadores por distribuírem promessas ou migalhas. Essa inversão de valores não surge por acaso: ela serve para invisibilizar quem constrói a cidadania e fortalecer quem perpetua privilégios.

Se a lógica fosse justa, um professor candidato venceria facilmente, considerando a quantidade de alunos votantes, o tempo de serviço e o benefício social que ele oferece. Mas essa vitória nunca acontece. A resposta é seca, cortante, quase irônica: "Só que não".


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Vamos analisar o texto que acabamos de ler. Ele traz reflexões importantes sobre o papel do professor e de outros profissionais, além de questionar a lógica da nossa sociedade. Pensem sobre as ideias discutidas e preparem-se para responder às seguintes questões.


1 - O texto afirma que a dignidade de um ofício não está no contracheque, mas no serviço que ele presta à sociedade. Explique, com suas palavras, o que significa essa afirmação e dê exemplos de como a sociedade valoriza mais o cargo (como o de político) do que a função social (como a de professor, médico ou gari).

2 - A frase "consigo ver o anzol, enquanto vocês ainda se distraem com a isca" é uma metáfora. Analise essa frase e explique qual é o "anzol" e a "isca" na relação entre professor e alunos, segundo o autor do texto.

3 - O texto aborda a inversão de valores que invisibiliza profissionais essenciais e eleva políticos a "salvadores". A partir da sua leitura, discuta como essa inversão afeta a percepção do trabalho e do valor de cada profissão na sociedade.

4 - Em que sentido a discriminação contra o professor pode ser vista como a "prova mais viva da maldade instalada"? Relacione essa afirmação com a crítica do autor sobre a forma como o falso apoio e o ciúme se manifestam na escola.

5 - O texto argumenta que, pela lógica, um professor deveria vencer facilmente uma eleição, mas isso não acontece. Baseando-se no texto, explique o paradoxo dessa afirmação e o que a resposta "Só que não" revela sobre a relação entre o serviço público e o reconhecimento social e político.

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sexta-feira, 19 de agosto de 2022

FACADA MALDITA ("Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil, isso é mentira" — Jair Bolsonaro)

 


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

SEM O DOMÍNIO DA INCOERÊCIA ("A mudança é como a morte. Não se sabe como é até que ela chegue." — Jurassic World: Reino Ameaçado)

 


SEM O DOMÍNIO DA INCOERÊCIA ("A mudança é como a morte. Não se sabe como é até que ela chegue." — Jurassic World: Reino Ameaçado)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

A escola pública brasileira padece sob um excesso de leis inúteis e ordens momentâneas, que emergem dos caprichos de cada nova gestão. Nesse cenário de "casa da 'mãe Joana'", a alta rotatividade impede que o plantio pedagógico gere bons frutos, e o professor envelhece na profissão sem consolidar uma prática eficaz. Constantemente, surgem "novidades" como o Novo Ensino Médio, onde o "vinho novo se perde no odre velho", ou a Escola de Tempo Integral, que se assemelha mais a uma creche para pais trabalhadores, com professores reduzidos a "babás". Paralelamente, os Projetos das Profissões são introduzidos, submetendo alunos a testes vocacionais, mesmo que a etapa não seja profissionalizante. Essa frenética sucessão de inovações impede qualquer adaptação ou consolidação pedagógica.

O ponto mais grave reside na própria instituição escolar minar a autoridade docente, ao afirmar que o professor é despreparado ou incompetente. Em um movimento contraditório, as notas são artificialmente elevadas para forjar "bonitas estatísticas e coloridos gráficos", culminando na má fama do professorado. Nesse cenário, o clientelismo político se instala, com cada vereador apadrinhando representantes na escola. Gestores, por sua vez, legislam em causa própria, instituindo leis parciais e frágeis, quase feitas para serem rompidas. A violação de uma norma rapidamente desencadeia a anarquia de outras, até que o responsável seja compulsoriamente substituído pela Secretaria de Educação, perpetuando um ciclo vicioso de instabilidade administrativa.

A raiz do problema pedagógico reside na inversão de prioridades: enquanto todos se arrogam o direito de ensinar o professor a ensinar, ninguém se ocupa de ensinar o aluno a aprender. Nesse vácuo educacional, a concessão de presentes e gratificações — o anacrônico “pão e circo” — apenas solidifica o comodismo e a desvalorização de um aprendizado que não exigiu sacrifício algum.

Para enfrentar tal cenário, as críticas devem ser articuladas em blocos claros, desvelando as raízes da instabilidade administrativa, da desprofissionalização docente e do clientelismo político. Os exemplos são abundantes: gestores substituídos como meras peças de tabuleiro, professores compelidos a acatar decretos improvisados e alunos reduzidos a números em gráficos que mascaram a realidade. Contudo, a crítica não pode se restringir ao lamento; é imperativo apontar caminhos. Medidas urgentes incluem a garantia de estabilidade na gestão escolar, a valorização contínua da carreira docente e a redução das interferências políticas. O que se almeja, em última análise, não é um espetáculo de improvisos, mas uma escola onde professores possam verdadeiramente ensinar, alunos possam eficazmente aprender e a comunidade possa confiar no processo educativo como um projeto sério e duradouro.


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Questão 1 - Instabilidade Administrativa

O texto menciona que a escola pública brasileira sofre com "excesso de leis inúteis e ordens momentâneas" que surgem a cada nova gestão. Explique como essa instabilidade administrativa pode afetar negativamente o processo de ensino-aprendizagem e dê exemplos de como isso se manifesta no cotidiano escolar.

Questão 2 - Desvalorização Docente

Segundo o autor, "a própria instituição escolar mina a autoridade docente". Analise essa afirmação explicando como a desvalorização do professor pode criar um ciclo negativo que prejudica toda a comunidade escolar (professores, alunos e famílias).

Questão 3 - Clientelismo na Educação

O texto critica o "clientelismo político" que se instala nas escolas, com vereadores "apadrinhando representantes". Explique o que é clientelismo e como essa prática política pode comprometer a qualidade da educação pública, interferindo nos objetivos pedagógicos da escola.

Questão 4 - Inversão de Prioridades Educacionais

O autor afirma que existe uma "inversão de prioridades" onde "todos se arrogam o direito de ensinar o professor a ensinar, mas ninguém se ocupa de ensinar o aluno a aprender". Reflita sobre essa crítica: o que significa "ensinar o aluno a aprender" e por que isso deveria ser uma prioridade no sistema educacional?

Questão 5 - Soluções para a Crise Educacional

O texto apresenta algumas medidas para melhorar a educação: "estabilidade na gestão escolar", "valorização contínua da carreira docente" e "redução das interferências políticas". Escolha uma dessas medidas e explique detalhadamente como ela poderia contribuir para resolver os problemas mencionados no texto, apresentando também outros caminhos possíveis para transformar a realidade da escola pública brasileira.

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A NAVALHA RITUALÍSTICA ("Eu preciso muito deixar acontecer o momento da renovação, trocar de pele, mudar de cor." — Caio Fernando Abreu)

 


A NAVALHA RITUALÍSTICA ("Eu preciso muito deixar acontecer o momento da renovação, trocar de pele, mudar de cor." — Caio Fernando Abreu))

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Metaforicamente, sou eu quem tem a função da raspagem neste meu tempo. Ainda que me prenderam em uma casa solitária, fiz um buraco na porta — estreito, mas suficiente — e dele saí para o mundo, representando a navalha poderosa que empunho. Cumpro essa responsabilidade porque uma grande necessidade me chama: alisar, cortar e raspar as asperezas. Os amigos da escola não me esperam mais para conduzir-me ao teatro; para eles, eu era apenas o palhaço do circo. Procurei-os, mas não os encontro, pois a pandemia nos distanciou. Restou-me apenas a espera, sozinho, no ponto de ônibus. No auge do desespero, vieram os amigos da igreja, que me levaram ao teatro: era tempo do ritual, o cenário já montado. No centro, um bolo ornamentado boiava numa bacia com água, entre galhos de rosas, compondo um batismo sagrado diante dos espectadores. Cheguei confuso, e em voz alta perguntei: “O que devo fazer?”. Uma voz respondeu: “Você é a Navalha que corta o bolo”.

Parece não ter relação, mas ao despertar do sonho, pesquisei o significado ritualístico da navalha. “Ok, Google, o que é uma navalha?” — “Objeto semelhante a um canivete, que abre e fecha, especialmente afiado, como uma gilete, usado em tempos passados para raspar a barba e os cabelos. A palavra deriva do francês antigo rasor, de raser — raspar. Mulheres da vida noturna a utilizavam por ser discreta e perigosa, escondendo-a na meia-cinta, junto à coxa, como arma de defesa. Um corte de navalha sangra intensamente pela perfeição do corte e pode levar à morte por hemorragia.”

A navalha sobreviveu e se adaptou. Assumiu novas formas, mas permanece no universo humano: corta cabelos que crescem demais, restaura a limpeza da cabeça e abre espaço para que novos fios surjam com mais força. Cabeça raspada é sinal de submissão ou iniciação, enquanto o cabelo simboliza vitalidade, erotismo, força, vaidade, virtudes e até poderes espirituais ou demoníacos, quando exagerado ou doente.

Entre o sonho enigmático e a realidade pesquisada, percebo que a navalha atravessa não apenas a pele, mas também o tempo e a simbologia das culturas. Não é à toa que os profetas, em suas tradições, associaram o cabelo e a barba à honra, à força e até à identidade espiritual do homem (cf. 2Sm 10,4; Ez 16,7; Pr 16,31). Quando a lâmina aparece, seja no ritual ou no corte cotidiano, ela não cumpre só a função de limpar, mas também de separar: distingue o puro do impuro, o sagrado do profano, o que permanece do que deve ser descartado. Assim, meu sonho não se rompe como devaneio isolado, mas se prolonga em reflexão sobre o poder de cada gesto aparentemente banal. E se raspar a cabeça, por vezes, é vergonha, noutras se torna sinal de reinício, lembrando que a perda pode ser também a preparação de um novo nascimento.

Em contrapartida, raspar a cabeça é quase sempre interpretado como desonra, tanto para homens quanto para mulheres (cf. 2Sm 10,4). Apenas em casos de luto o símbolo do cabelo se enfraquece: homens escondem a barba, carpideiras arrancam os cabelos. O ritual hebraico do bode emissário — “o cabeludo” — carregava os pecados do povo (Lv 16,21-22) e, por isso, foi associado ao demônio e à feitiçaria. Entretanto, de modo geral, o cabelo bem tratado conserva sentido positivo: da cabeleira vigorosa da juventude (Ez 16,7) aos veneráveis fios brancos dos idosos, pois “cabelos brancos são coroa de honra; a gente os acha nos caminhos da justiça” (Pr 16,31).

O ato de raspar a cabeça, portanto, raramente é neutro. É vergonha ou purificação, luto ou renascimento. Se em tempos antigos já se relacionava à desonra ou à consagração, hoje, em meio a tantas doenças transmissíveis e crises que exigem novas limpezas, talvez a navalha ainda nos convoque a repensar o que precisa ser cortado para que outra vida, mais forte, possa nascer.


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O texto que lemos é bem interessante porque usa a metáfora da navalha para falar sobre transformações na nossa vida. Ele mistura experiências pessoais com significados históricos e sociais, o que é um prato cheio para a sociologia. Com base nisso, preparei cinco questões para vocês refletirem e discutirem em grupo. Pensem sobre as relações entre a experiência do narrador e os simbolismos da navalha que o texto apresenta.


1 - O narrador se descreve como a "navalha" que "raspa as asperezas". Baseado na sua leitura, o que essas "asperezas" podem representar no contexto da vida social do narrador, especialmente após a pandemia?

2 - O texto diferencia a "navalha" de suas funções. No contexto da narrativa, o que o ato de "raspar" ou "cortar" simboliza para o narrador? Qual é a diferença entre ser a navalha e cumprir a função de cortar?

3 - O texto menciona que a navalha pode ser usada para "separar: distingue o puro do impuro, o sagrado do profano". Como essa ideia de separação se manifesta na vida do narrador, considerando suas relações com os "amigos da escola" e os "amigos da igreja"?

4 - A navalha pode representar tanto desonra quanto purificação. Como o texto explora essa dualidade? Cite exemplos que mostram a navalha como algo vergonhoso e como algo ligado a um novo começo ou renovação.

5 - O texto termina com a ideia de que a navalha nos convoca a repensar o que precisa ser cortado para uma "vida, mais forte, possa nascer". Conecte essa ideia com a experiência do narrador e explique como a metáfora da navalha se aplica a processos de mudança social e pessoal.

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