"Se você tem uma missão Deus escreve na vocação"— Luiz Gasparetto

" A hipocrisia é a arma dos mercenários." — Alessandro de Oliveira Feitosa

Pesquisar neste blog ou na Web

MINHAS PÉROLAS

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A NAVALHA RITUALÍSTICA ("Eu preciso muito deixar acontecer o momento da renovação, trocar de pele, mudar de cor." — Caio Fernando Abreu)

 


A NAVALHA RITUALÍSTICA ("Eu preciso muito deixar acontecer o momento da renovação, trocar de pele, mudar de cor." — Caio Fernando Abreu))

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Metaforicamente, sou eu quem tem a função da raspagem neste meu tempo. Ainda que me prenderam em uma casa solitária, fiz um buraco na porta — estreito, mas suficiente — e dele saí para o mundo, representando a navalha poderosa que empunho. Cumpro essa responsabilidade porque uma grande necessidade me chama: alisar, cortar e raspar as asperezas. Os amigos da escola não me esperam mais para conduzir-me ao teatro; para eles, eu era apenas o palhaço do circo. Procurei-os, mas não os encontro, pois a pandemia nos distanciou. Restou-me apenas a espera, sozinho, no ponto de ônibus. No auge do desespero, vieram os amigos da igreja, que me levaram ao teatro: era tempo do ritual, o cenário já montado. No centro, um bolo ornamentado boiava numa bacia com água, entre galhos de rosas, compondo um batismo sagrado diante dos espectadores. Cheguei confuso, e em voz alta perguntei: “O que devo fazer?”. Uma voz respondeu: “Você é a Navalha que corta o bolo”.

Parece não ter relação, mas ao despertar do sonho, pesquisei o significado ritualístico da navalha. “Ok, Google, o que é uma navalha?” — “Objeto semelhante a um canivete, que abre e fecha, especialmente afiado, como uma gilete, usado em tempos passados para raspar a barba e os cabelos. A palavra deriva do francês antigo rasor, de raser — raspar. Mulheres da vida noturna a utilizavam por ser discreta e perigosa, escondendo-a na meia-cinta, junto à coxa, como arma de defesa. Um corte de navalha sangra intensamente pela perfeição do corte e pode levar à morte por hemorragia.”

A navalha sobreviveu e se adaptou. Assumiu novas formas, mas permanece no universo humano: corta cabelos que crescem demais, restaura a limpeza da cabeça e abre espaço para que novos fios surjam com mais força. Cabeça raspada é sinal de submissão ou iniciação, enquanto o cabelo simboliza vitalidade, erotismo, força, vaidade, virtudes e até poderes espirituais ou demoníacos, quando exagerado ou doente.

Entre o sonho enigmático e a realidade pesquisada, percebo que a navalha atravessa não apenas a pele, mas também o tempo e a simbologia das culturas. Não é à toa que os profetas, em suas tradições, associaram o cabelo e a barba à honra, à força e até à identidade espiritual do homem (cf. 2Sm 10,4; Ez 16,7; Pr 16,31). Quando a lâmina aparece, seja no ritual ou no corte cotidiano, ela não cumpre só a função de limpar, mas também de separar: distingue o puro do impuro, o sagrado do profano, o que permanece do que deve ser descartado. Assim, meu sonho não se rompe como devaneio isolado, mas se prolonga em reflexão sobre o poder de cada gesto aparentemente banal. E se raspar a cabeça, por vezes, é vergonha, noutras se torna sinal de reinício, lembrando que a perda pode ser também a preparação de um novo nascimento.

Em contrapartida, raspar a cabeça é quase sempre interpretado como desonra, tanto para homens quanto para mulheres (cf. 2Sm 10,4). Apenas em casos de luto o símbolo do cabelo se enfraquece: homens escondem a barba, carpideiras arrancam os cabelos. O ritual hebraico do bode emissário — “o cabeludo” — carregava os pecados do povo (Lv 16,21-22) e, por isso, foi associado ao demônio e à feitiçaria. Entretanto, de modo geral, o cabelo bem tratado conserva sentido positivo: da cabeleira vigorosa da juventude (Ez 16,7) aos veneráveis fios brancos dos idosos, pois “cabelos brancos são coroa de honra; a gente os acha nos caminhos da justiça” (Pr 16,31).

O ato de raspar a cabeça, portanto, raramente é neutro. É vergonha ou purificação, luto ou renascimento. Se em tempos antigos já se relacionava à desonra ou à consagração, hoje, em meio a tantas doenças transmissíveis e crises que exigem novas limpezas, talvez a navalha ainda nos convoque a repensar o que precisa ser cortado para que outra vida, mais forte, possa nascer.


-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/-/


O texto que lemos é bem interessante porque usa a metáfora da navalha para falar sobre transformações na nossa vida. Ele mistura experiências pessoais com significados históricos e sociais, o que é um prato cheio para a sociologia. Com base nisso, preparei cinco questões para vocês refletirem e discutirem em grupo. Pensem sobre as relações entre a experiência do narrador e os simbolismos da navalha que o texto apresenta.


1 - O narrador se descreve como a "navalha" que "raspa as asperezas". Baseado na sua leitura, o que essas "asperezas" podem representar no contexto da vida social do narrador, especialmente após a pandemia?

2 - O texto diferencia a "navalha" de suas funções. No contexto da narrativa, o que o ato de "raspar" ou "cortar" simboliza para o narrador? Qual é a diferença entre ser a navalha e cumprir a função de cortar?

3 - O texto menciona que a navalha pode ser usada para "separar: distingue o puro do impuro, o sagrado do profano". Como essa ideia de separação se manifesta na vida do narrador, considerando suas relações com os "amigos da escola" e os "amigos da igreja"?

4 - A navalha pode representar tanto desonra quanto purificação. Como o texto explora essa dualidade? Cite exemplos que mostram a navalha como algo vergonhoso e como algo ligado a um novo começo ou renovação.

5 - O texto termina com a ideia de que a navalha nos convoca a repensar o que precisa ser cortado para uma "vida, mais forte, possa nascer". Conecte essa ideia com a experiência do narrador e explique como a metáfora da navalha se aplica a processos de mudança social e pessoal.

Comentários

Nenhum comentário: