Entre o Falar e o Escrever ("Não se aprende a ler pela beleza das letras, mas pela necessidade das palavras." - Paulo Freire)
Ontem, enquanto corrigia as redações dos meus alunos do ensino médio, tive uma epifania sobre nossa língua portuguesa. Uma frase escrita por Maria, uma garota esperta da periferia, me fez parar: "Nós pensa que fala errado, mas nós sabe se comunicar."
É curioso como algo tão simples pode despertar tantas reflexões. Olhei pela janela da sala dos professores e vi o Brasil real passando diante dos meus olhos. Um Brasil com 15 milhões de analfabetos e outros 33 milhões de analfabetos funcionais – pessoas que passaram pela escola, mas não dominam verdadeiramente a leitura e a escrita.
Lembrei-me da polêmica recente sobre aquele livro didático que propõe a aceitação de variações linguísticas. "Você pode falar 'os livros é' mas fique atento, pois corre o risco de sofrer preconceito linguístico", dizia o texto. Na sala dos professores, o debate foi acalorado. Alguns colegas defendiam fervorosamente a norma culta como única forma aceitável de expressão. Outros argumentavam pela valorização das variantes populares.
Naquela tarde, caminhando para casa, parei num boteco da esquina. O dono, seu Zé, me contou histórias de sua infância no interior de Minas com uma eloquência que nenhuma gramática poderia ensinar. Sua fala, repleta de expressões regionais e construções que fariam qualquer gramático estremecer, transbordava vida e sabedoria.
"Nóis trabaiava na roça desde pequeno, mas meu pai sempre falava que a vida não é só pra trabaiá, é pra vivê também," contou-me Seu Zé, servindo um café forte. Na beleza daquela frase, encontrei mais verdade do que em muitos textos academicamente irrepreensíveis.
Voltei para casa pensando nas palavras de Fernando Pessoa: "Quem não vê bem uma palavra, não vê bem uma alma." Talvez o problema não esteja tanto na forma como falamos, mas na incapacidade de reconhecermos a riqueza dessa diversidade.
A língua é viva, pulsa nas ruas, nos bares, nas escolas, nas periferias. Muda, transforma-se, reinventa-se. O português brasileiro tem sabor, tem ginga, tem identidade própria. Quando Manuel Bandeira disse que "o povo é que fala gostoso o português do Brasil", ele captou essa essência.
Hoje, enquanto escrevo esta crônica, penso no dilema diário de professores como eu. Como equilibrar o respeito às variantes linguísticas com a necessidade de ensinar a norma padrão? Como demonstrar que conhecer a norma culta é uma ferramenta de poder sem desvalorizar a fala popular?
A democratização do ensino trouxe para a sala de aula uma diversidade linguística que antes permanecia escondida. Não estamos mais falando apenas para aqueles 20% da população letrada de classe média. Estamos lidando com o Brasil real, com suas múltiplas formas de expressão.
Talvez a solução esteja em um caminho do meio: valorizar as variantes linguísticas como expressões culturais legítimas e, simultaneamente, oferecer aos alunos o domínio da norma culta como ferramenta de acesso social. Afinal, a língua não deveria ser um instrumento de exclusão, mas de conexão.
Quando voltar à sala de aula amanhã, olharei para a redação de Maria com outros olhos. Corrigirei suas inadequações à norma culta, sim, mas também valorizarei a riqueza de sua expressão. E quem sabe, um dia, não teremos mais que escolher entre falar "errado" e escrever "certo". Talvez possamos apenas celebrar as muitas vozes que compõem o coro da língua brasileira.
Porque, como me ensinou seu Zé entre goles de café: "As palavra é que nem passarinho – elas só vale quando tá voando livre por aí."
Preparei 5 questões discursivas simples com uma perspectiva sociológica:
1. A frase da aluna Maria, "Nós pensa que fala errado, mas nós sabe se comunicar", revela uma tensão entre a norma culta e a comunicação efetiva. Sob uma perspectiva sociológica, como podemos analisar essa percepção de "falar errado" e quais implicações sociais ela pode gerar para os indivíduos, especialmente no contexto da educação e do mercado de trabalho?
2. O texto menciona a polêmica em torno da aceitação de variações linguísticas no ensino. Do ponto de vista da sociologia, como a valorização ou a desvalorização de diferentes variantes linguísticas pode impactar a identidade social e o sentimento de pertencimento de grupos específicos na sociedade brasileira?
3. O encontro do professor com Seu Zé no boteco ilustra a riqueza e a sabedoria presentes na fala popular, mesmo que distante da norma culta. Sob uma perspectiva sociológica, como podemos entender o valor social e cultural dessas formas de expressão e qual a importância de reconhecê-las no contexto educacional?
4. O professor reflete sobre o dilema de equilibrar o respeito às variantes linguísticas com a necessidade de ensinar a norma padrão. Do ponto de vista da sociologia da educação, quais são os desafios e as possíveis abordagens para lidar com essa diversidade linguística em sala de aula de forma inclusiva e eficaz?
5. A democratização do ensino trouxe para a sala de aula uma diversidade linguística antes menos visível. Sociologicamente, como essa mudança no perfil dos alunos impacta o papel da escola e as práticas pedagógicas em relação ao ensino da língua portuguesa, visando a promoção da igualdade de oportunidades?
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