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terça-feira, 18 de março de 2025

A Agulha que os Uniu ( "O conhecimento sem responsabilidade é perigoso.")

 

A Agulha que os Uniu ( "O conhecimento sem responsabilidade é perigoso.")

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Há momentos em que a rotina escolar é interrompida por eventos que mudam tudo. Naquela sexta-feira, a atmosfera parecia ser a de sempre: o sol de março aquecendo as salas de aula em Laranja da Terra, o cheiro de giz no ar, o burburinho dos adolescentes nos corredores da escola estadual. Ninguém poderia imaginar que uma simples aula de ciências experimentais transformaria não apenas aquele dia, mas semanas inteiras de vida para todos na comunidade.

Foi no intervalo que a notícia começou a se espalhar. Grupos de alunos se aglomeravam, cochichando com expressões alarmadas. "Você fez o teste? Usou a mesma agulha?" As palavras flutuavam pelo pátio como pássaros agourentos. O professor de português notou algo estranho ao ver Mariana, uma aluna da 3ª série conhecida por sua seriedade, com o semblante preocupado.

"Professor, o senhor não ficou sabendo? Na aula de química, estávamos fazendo um experimento para descobrir nossos tipos sanguíneos e..." Ela hesitou, a voz embargada, "o professor usou a mesma agulha em todo mundo."

Um calafrio percorreu a espinha do professor. Mesmo sem ser da área da saúde, qualquer um compreenderia o risco. A imagem da mesma agulha perfurando dezenas de dedos adolescentes formou-se na mente de todos como um pesadelo em plena luz do dia.

Na sala dos professores, o caos reinava. A coordenadora pedagógica, sempre tão composta, gesticulava freneticamente ao telefone. "Sim, quarenta e três alunos. Todos precisam ser examinados imediatamente." Seu olhar cruzava com o dos colegas — medo, responsabilidade, culpa, tudo misturado nas pupilas dilatadas.

A notícia se espalhou rapidamente por Laranja da Terra, como fogo em palha seca. A cidade, normalmente tão pacata, foi tomada por um redemoinho de ansiedade coletiva. Pais chegaram desesperados à escola, alguns chorando, outros gritando por explicações. O professor de química, até então admirado por seu entusiasmo em tornar a ciência tangível, foi escoltado para fora do prédio, cabisbaixo, carregando uma caixa com seus pertences.

Alguns professores acompanharam os alunos ao hospital municipal. A sala de espera transbordava de adolescentes tentando disfarçar o medo com piadas nervosas. Carlos, um garoto tímido da 2ª série, sentava sozinho num canto. O professor de português se aproximou dele.

"Está tudo bem?"

O menino levantou os olhos marejados. "Professor, minha mãe tem HIV. Ela não me contaminou porque os médicos cuidaram de tudo quando nasci. E agora... agora pode ter sido tudo em vão."

O peso daquelas palavras atingiu o educador como um golpe físico. Não se tratava apenas de exames e procedimentos — eram vidas, sonhos, futuros que tremiam diante do desconhecido.

Nos dias seguintes, uma sucessão de reuniões tumultuadas tomou conta da cidade. A secretária de educação, normalmente tão protocolar, chorou durante uma videoconferência. Pais abraçavam seus filhos no estacionamento da escola como se pudessem protegê-los retroativamente. A solidariedade nasceu em meio ao caos — famílias oferecendo apoio umas às outras, médicos voluntariando-se para esclarecer dúvidas após o expediente.

O pior, no entanto, foi o estigma. Uma aluna soluçava no banheiro: "Ninguém quer sentar comigo no ônibus." Mesmo com os primeiros resultados negativos, o medo havia criado fronteiras invisíveis entre os adolescentes.

Durante uma aula extraordinária sobre empatia e saúde, organizada pelo professor de português, um dos alunos levantou a mão.

"Professor, por que isso aconteceu? Não ensinaram ao professor de química que não se compartilha agulhas?"

Houve um silêncio por alguns segundos. O professor buscava as palavras certas.

"Às vezes," respondeu finalmente, "mesmo pessoas inteligentes cometem erros graves. É preciso mais que conhecimento para sermos responsáveis — é preciso consciência. E talvez este seja o aprendizado mais importante que levaremos desta experiência."

Um mês depois, os alunos entraram em sala de aula, diferentes. Havia uma sobriedade em seus olhares que não existia antes. Os resultados dos segundos testes chegaram no dia anterior — todos negativos, para alívio de toda a comunidade. Mas algo havia mudado para sempre naquela escola.

O professor percebeu isso ao passar pela sala de ciências e ver um novo cartaz feito pelos próprios alunos: "O conhecimento sem responsabilidade é perigoso." Abaixo, as assinaturas de todos os quarenta e três estudantes envolvidos no incidente.

Uma única agulha os feriu. Mas também os uniu em uma lição que nenhum currículo escolar poderia ensinar — sobre fragilidade, responsabilidade, e o valor da saúde que tão facilmente tomamos por garantida. E, principalmente, sobre como ações, mesmo as aparentemente pequenas, podem ter consequências que se espalham como ondas em um lago tranquilo.

Laranja da Terra continuava a mesma, com o sol ainda brilhando sobre os telhados coloridos, o sino da escola tocando nos mesmos horários. Mas algo sutil e profundo havia mudado em cada um deles. Como uma cicatriz invisível que, mesmo curada, nunca os deixaria esquecer.


https://g1.globo.com/es/espirito-santo/sul-es/noticia/2025/03/18/mais-de-40-alunos-vao-parar-no-hospital-apos-usarem-agulha-compartilhada-em-aula-no-es.ghtml (Acessado em 18/03/2025)


Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples, baseando-me nas ideias principais desta crônica:

1. A crônica narra um evento inesperado que gerou grande comoção na comunidade escolar de Laranja da Terra. Sob uma perspectiva sociológica, como podemos analisar a reação da comunidade (alunos, professores, pais) diante desse acontecimento e quais elementos sociais contribuíram para a disseminação da notícia e do sentimento de apreensão?

2. O texto destaca o medo e a preocupação dos alunos, especialmente no relato do menino Carlos sobre o histórico de HIV na família. Do ponto de vista da sociologia da saúde, como o estigma associado a doenças como o HIV pode impactar as relações sociais e a experiência individual em situações de vulnerabilidade como a descrita na crônica?

3. A crônica descreve a reação da coordenadora, do professor de química e da secretária de educação diante do ocorrido. Analisando o papel da escola como uma instituição social, como podemos interpretar as diferentes manifestações de responsabilidade, culpa e solidariedade por parte desses atores sociais?

4. O texto relata que, apesar dos resultados negativos dos exames, houve um estigma em relação aos alunos envolvidos. Sob uma perspectiva sociológica, como o medo e a falta de informação podem levar à criação de fronteiras sociais e à discriminação dentro de um grupo, mesmo diante da ausência de uma ameaça real comprovada?

5. A reflexão final do professor sobre a importância da consciência e da responsabilidade, além do conhecimento técnico, para evitar erros graves, pode ser analisada sob o prisma da sociologia da moralidade e dos valores sociais. De que maneira a internalização de valores como responsabilidade e cuidado com o outro contribui para a manutenção da ordem social e para a prevenção de eventos como o narrado na crônica?

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